“A história dos sobreviventes do ebola é muito pesada”

Patrícia em estrada na Serra Leoa. Foto: Avener Prado/ Folha de S. Paulo
Patrícia em estrada na Serra Leoa. Foto: Avener Prado/ Folha de S. Paulo

A repórter especial da Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello não ficou com medo quando foi avisada de que iria viajar para Serra Leoa, na África Ocidental, um dos países mais afetados pelo recente surto de ebola. Ao contrário: se entusiasmou. A cobertura de uma das doenças mais fatais da história da humanidade e que já matou 2.107 pessoas no continente desde início do ano durou dez dias, além das escalas de voos em países europeus. Neste período, se emocionou, temeu esbarrar em pessoas comuns na rua e se impressionou com a pobreza de uma das regiões mais pobres do mundo. Em Serra Leoa, 430 pessoas já morreram contaminadas pela doença, além de 34 mortes prováveis e 12 suspeitas, que aumentam este dado para 476 mortes, segundo a OMS.

Além de Patrícia, esteve com ela o repórter fotográfico Avener Prado, que fez as imagens durante a cobertura. Na edição impressa de Brasileiros deste mês, você pode ler uma reportagem sobre como o Brasil está se preparando para receber possíveis doentes e o caso de um médico liberiano que sobreviveu ao vírus. Leia a entrevista:

Brasileiros – De todas as histórias que você contou em seus textos para a Folha de S. Paulo, a que mais me chamou a atenção foi a do rapaz que contraiu ebola da mãe dele, e que sabia que ficaria doente, mas mesmo assim não negou ajuda para ela. Foi o personagem desta cobertura que trouxe mais sensibilidade para você também?
Patrícia: Foi sim, inclusive porque foi uma coisa recorrente na viagem. Várias pessoas me diziam, durante a estadia em Serra Leoa, que a cultura africana tem esse laço muito forte, principalmente do filho cuidar do pai. É uma coisa mundial, mas lá é mais forte ainda. Então, um dos problemas para quebrar a cadeia de transmissão da doença na região é justamente por causa disso: se uma mãe ou um pai fica doente em casa, os filhos não vão negar tratamento para eles pensando em se contaminar com o ebola. Esse cara me falou, outras pessoas me falaram, os médicos também me falaram, que é uma doença que pega sempre a família inteira porque um vai ajudando o outro e um vai contaminando o outro, e é muito difícil quebrar isso, porque é como dizer para o filho: “Não ajude sua mãe ou seu pai”.

Brasileiros – Você se emocionou outras vezes também…
Patrícia: Muitas vezes. A história dos sobreviventes do ebola é muito pesada. O lugar inteiro é muito pobre, ainda que as pessoas sejam muito calorosas. Às vezes queria pegar uma criança no colo, abraçar, cuidar, e não poder fazer isso é muito difícil, muito pesado.

Brasileiros – Em outro texto você fala de um profissional não muito comum no Brasil: o catador de secreções. Na Índia existe bastante gente que realiza esse trabalho, por exemplo. Você encontrou muitas pessoas trabalhando nisso lá?
Patrícia: Na verdade esses caras são chamados de higienistas. Eles são serventes em hospitais que precisam limpar materiais de alto risco de contaminação, e esses caras, se você olhar a epidemia, vai ver que os que mais se contaminaram foram famílias e os profissionais de saúde, sejam enfermeiras, médicos ou esses caras que cuidam da limpeza. As enfermeiras, por exemplo, quando voltam para casa são chamadas de ebola nurses, porque todo mundo acha que elas estão levando doença para a comunidade deles. Sofrem um terrível preconceito. Todo mundo que trabalha em hospitais e centros de tratamento do vírus sofre muito preconceito.

Brasileiros – Você encontrou alguém que não acreditava na existência do ebola?
Patrícia: Não, porque eu acho que isso é uma coisa que mudou lá. Pelo que eu conversei com algumas pessoas, quando o surto começou, ainda existiam muitas superstições, como as que diziam que a doença era bruxaria, ou que a doença tinha sido trazida pelos brancos, ou que para se infectar com ebola bastava entrar em um hospital, e agora estão fazendo uma campanha de conscientização nos países afetados que melhorou muito essa situação. Pessoas da ONG Médicos sem Fronteiras e dos governos entram nos vilarejos para avisar as pessoas que o ebola existe, que é uma doença contagiosa, que não pode comer carne de caça, como morcego, macaco, porco-espinho, que não pode encostar em doentes no hospital, então essa parte de conscientização está muito forte. Tem muitas pessoas na rua com camisetas escritas Ebola Is Real também. Mas no começo havia mesmo essa crença de que o ebola era uma invenção ou uma bruxaria.

Brasileiros – E as pessoas estão evitando mesmo o toque? Imagino isso porque estamos falando de uma região muito habitada e com um clima quente.
Patrícia: É calor, mas estávamos na época de chuva, então não era apenas aquele calor infernal. Eu diria que estava, 37º, 38º graus, então eu achava tranquilo. Tem muita gente conscientizada sobre isso, principalmente em setores onde as pessoas são mais instruídas, como hoteis e hospitais. Nesses grupos, as pessoas realmente estão seguindo essa coisa do No Touch e não se tocam. Mas se você vai num mercado, com aquele bando de gente, lotado, é meio utópico acreditar que você não vai esbarrar em ninguém, ainda que as pessoas tentem. Está todo mundo lavando as mãos com água e cloro, mas em algumas circunstâncias é impossível não acontecer o encontro com outras pessoas, como por exemplo em um mercado de rua.

Brasileiros – Você notou algum tipo de presença do governo de Serra Leoa, assim como temos visto as ações do governo da Libéria, por exemplo?
Patrícia: O conceito de Estado é muito diferente na África, ainda mais em um país que viveu um período de guerra civil. É um país onde as instituições não funcionam muito bem. Apesar disso, eles estão tentando, fazendo campanha de conscientização, declarando que quem esconder doentes de ebola terá pena de dois anos de prisão ou colocando o exército para visitar as áreas mais afetadas, mas existem problemas institucionais de um Estado que não funciona bem, como a corrupção, com propinas sendo pagas nas barreiras de isolamento, por exemplo. O governo tenta, mas é difícil. Uma coisa que ilustra bem isso e que me deixou bastante decepcionada acontece em Kailahun, na Serra Leoa, um dos lugares mais afetados: existem quatro ambulâncias para atender 480 mil pessoas. Isso é o governo. E pese nisso o fato de o governo de Serra Leoa já ter boa parte do orçamento baseado em doações externas. Mesmo assim são quatro ambulâncias para 480 mil pessoas! Portanto, a ação estatal é muito limitada.

Brasileiros – O que mais te chamou a atenção em Freetown, capital de Serra Leoa?
Patrícia: A cidade é muito pobre, tem muitas favelas e, em relação a doença, não dá para sentir o vírus em Freetown. Não que as pessoas não estejam neuróticas, lavando as mãos toda hora, indo em hospitais, mas não é como na Libéria, onde a capital, Monróvia, foi muito afetada pelo surto. Freetown não é foco da doença. Agora tem duas coisas que me chamaram atenção: a pobreza e a sujeira. Muita gente pobre, muita mesmo, e muita sujeira, com lixões a céu aberto por toda parte da cidade.

Brasileiros – E em toda a cobertura, o que mais te chamou a atenção, seja um personagem, um momento, uma imagem?
Patrícia: É difícil. Teve muita coisa, eu não sei nem dizer. Muitas imagens, muitas pessoas, como os médicos que estão lá, desde o do MSF como o do Estado, que são mais herois ainda, porque estão enfrentando a doença sem material adequado, sem financiamento do governo. Tem também essas histórias como a do rapaz que não negou dar a mão para a mãe. Imagina: como você vai negar dar a mão para a sua mãe, mesmo em uma epidemia? Onde todo mundo é suspeito, todo mundo pode estar com ebola na sua casa. Em tese, você não pode ajudar, mas você tem a obrigação de ajudar por ser filho, enfim, todas essas coisas me marcaram. O motorista que me acompanhou era um cara incrível, o motorista do programa de alimentação da ONU, que ia todos os dias em vilarejos para entregar comida para pessoas que estão em quarentena. Porque assim: toda vez que são identificados doentes, as casas deles são colocadas em quarentena, ficam separadas, e as pessoas não conseguem entregar comida. Assim, se as pessoas não morrem de ebola, morrem de fome. O trabalho desse motorista, portanto, é muito arriscado, porque ele está sempre no foco da epidemia.

Brasileiros – Você encontrou brasileiros lá?
Patrícia: Sim, encontrei dois. Um é o embaixador do Brasil em Serra Leoa, o Jorge Alcazar. A embaixada brasileira em Freetown foi aberta ainda no governo Lula e fez parte daquela iniciativa do presidente Lula de construir uma ofensiva na África para aumentar as relações com o continente africano. Então, o Alcazar faz tudo lá. A embaixada é só ele. Ele nos ajudou bastante, nos encontramos lá e foi ótimo. O outro foi um pastor da igreja Universal, que está em Serra Leoa há seis meses.

Brasileiros – O Clóvis Rossi publicou um texto contando uma pequena historinha do diálogo entre você e ele quando da notícia que você iria para Serra Leoa, em que ele te chamou de louca. Você sentiu medo de se infectar?
Patrícia: Várias pessoas tiveram essa reação, mas é o que eu disse: não foi loucura. Tomamos todos os tipos de cuidados e eu encontrei vários outros jornalistas lá, como os do New York Times, do Washington Post, por exemplo As pessoas não são malucas, elas sabem como acontece a contaminação e tomam muitos cuidados. Tem risco? Tem, mas foi tudo feito com bastante cuidado.


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