East 13th Street

O ministro Gilberto Gil comprou um apartamento no East Village, em Manhattan. Custou US$ 1,34 milhão. Grana transferida legalmente, com passagem carimbada pelo Banco Central. Foi barato para dois dormitórios na região. Mas lembro do tempo em que, com a mesma importância, seria possível comprar todo um quarteirão naquelas freguesias. O que se tinha eram cortiços, ruas imundas e perigosas, onde até as baratas andavam armadas. A fotógrafa Nellie Solitrenick, no começo dos anos 1980, alugou um estúdio por lá. Planejava fazer a mudança em dois turnos. Descarregou a primeira leva na nova moradia. Quando voltou com o segundo volume, já haviam roubado tudo o que chegara antes. Nellie nunca se arriscou a dormir no local.

Na rua onde o ministro terá endereço americano – East 13th Street – o barulho que saía dos inferninhos da vizinhança tornava desnecessários os equipamentos de som particulares: tinha fundo musical dia e noite para a comunidade. E era época do punk rock. Ninguém, no entanto, ligava para a algazarra, pois só ficava em casa quem estava aterrado pela heroína. Um estado de inércia que tornava muito mais difícil o trabalho das baratas em enxotar o roommate.
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Quase na esquina da Rua 13 com a Terceira Avenida, havia um bar mexicano, o Burrito Bandito. Um estabelecimento que parecia ter saído de um mau filme do Quentin Tarantino. Numa tarde quente, o cantor Cazuza estava numa das mesinhas da calçada. Tomava uma taça gigante de margarita. Passou um mendigo que pediu esmola. Cazuza, com dificuldade, tentou tirar um trocado do bolso do jeans apertado. Nesse minúsculo intervalo, o pedinte calmamente pegou o copo e entornou a birita toda, como se a despejasse num ralo. Colocou o recipiente vazio de volta, e estendeu a mão à espera do dinheiro. Como se nada houvesse acontecido. Ganhou US$ 1.

Mais a leste dali, numa área conhecida como Alphabet City, as ruas eram acarpetadas com corpos de junkies – viciados – mortos por overdose. Na Clinton Street tinha um mocó, com uma janela parecida com uma bilheteria de cinema. Só que, em vez de vidro, havia uma lâmina de aço reforçado, com aquele pequeno semicírculo de abertura na base. A freguesia formava fila. Cada um colocava o braço dentro do buraco, levando à mão uma nota, de US$ 5, US$ 10, US$ 20 etc., e recebia o pico correspondente à quantia. Muitos morriam antes de chegar à esquina. Não havia troca de agulhas, o que garantia infecções aos sobreviventes. O dono da boca de heroína pagava uns gorilas para carregar os abatidos para outro local. As vítimas não faziam boa publicidade.

O prédio do ministro é novinho, chama-se A Building e tem mármore no piso. Foi erguido na esteira da especulação imobiliária que expulsou junkies, artistas e malucos generalizados do pedaço. Hoje a população é basicamente constituída de jovens japoneses e europeus ricos – que sonham em viver uma onda underground que já não existe mais. O East Village foi transformado numa Disneylândia da contracultura. Gil – chamado de “Pioneiro Psicodélico” no anúncio da compra feito pelo diário New York Observer – arrisca-se a virar atração do parquinho. Uma espécie de Mickey Mouse pós-moderno. E não faria feio, afinal o CBGB – clube que era o epicentro da vanguarda musical nova-iorquina – acabou transfigurado numa butique do estilista John Varvatos.

O arquiteto da loja, num lance “criativo”, resolveu manter o décor antigo, com grafites e pôsteres de shows. Trata-se da primeira vez que ternos e gravatas entram no recinto. Imagino que mandaram dar uma mão de tinta nas obscenidades do antigo banheiro unissex. Espera-se também que tenham utilizado megalitros de aromatizante no combate à catinga acumulada em anos de suor, sangue, bebidas e outros complementos do rock.


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