Easy Rider: os herdeiros sem causa

Durante o ano, rodam pelo País milhares de motociclistas inspirados pelo filme Easy Rider, um road movie norte-americano de 1969, escrito por Peter Fonda, Dennis Hopper e Terry Southern. O filme conta a história de dois motoqueiros malucões, vividos por Fonda e Hopper, que atravessam os Estados Unidos em busca de liberdade. A obra é considerada um marco da contracultura e inspirou toda uma geração, discutindo conflitos sociais e tensões na América da década de 1960, tal como a ascensão e queda do movimento hippie, o uso de drogas e o estilo de vida em comunidades.

Hoje, a coisa é um tanto diferente. Muitos quarentões e suas possantes motocicletas rasgam as estradas do País em busca dos encontros de motos. Nesses encontros, os motociclistas se reúnem para ouvir rock’n’roll, tomar uísque e cerveja e falar de motos, é claro. Não existe ideal social, tampouco político, é puro vento na cara. A única coisa que pode desequilibrar o ambiente é a discussão sobre qual a melhor moto – algo parecido com a velha rivalidade entre torcedores de diferentes times de futebol.
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Um dos principais encontros do País é o de Tiradentes, no sul de Minas Gerais. Esse evento acontece desde 1992, quando cerca de 40 motociclistas apaixonados pela marca Harley-Davidson decidiram se reunir ali todo último final de semana de junho. De lá para cá, já se vão 18 anos e muita história.

Diário de motocicleta
Sou jornalista e motociclista há muito tempo, desde a época em que nem tinha idade para isso. Sou membro do motoclube Arcanjos, de São Paulo, e viajo com minha Harley-Davidson Softail pelas estradas do País. Depois de muitos quilômetros na bagagem, resolvi dividir com vocês um pouco desta emoção.

Acompanhei um grupo, logicamente com minha possante, rumo a Tiradentes. De São Paulo até lá, são pouco mais de 600 km. Se o percurso for feito pela rodovia Fernão Dias, a distância diminui um pouco e se torna mais rápido. Nosso grupo decidiu pelo caminho mais longo, pelo Vale do Paraíba. Quando se viaja de moto, aquela velha máxima de que a reta é o menor caminho entre dois pontos deixa de ser interessante. Sobre uma moto, o bom é fazer curva. As estradas alternativas, normalmente são sinuo-sas, íngremes e com pouco trânsito. São mais agradáveis e também mais seguras. Por essas estradas, é comum encontrar crianças acenando à beira do acostamento e, quando a gente para, sempre aparece alguém para conversar. As pessoas querem saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Elas ficam fascinadas com as motos, perguntam qual a marca e a cilindrada e logo soltam: “Quanto dá essa moto?”. Nosso grupo só tem moto custom – aquela de estilo estradeira. Explicamos que o objetivo de nossas máquinas não é alcançar grandes velocidades, mas sim ter conforto e segurança em longas distâncias. Normalmente, nos rostos desses expectadores aparece um sinal de decepção.

Pé na estrada
Quinta-feira, 8 horas da manhã. O ponto de encontro é o primeiro posto da rodovia Ayrton Senna, 10 km da capital. Mochila com poucas roupas, macacão impermeável, câmera fotográfica e algumas ferramentas devidamente presas à moto. Capacete, botas e a velha companheira – jaqueta de couro, com proteção nos ombros e nos cotovelos – em seus lugares. Tudo está pronto, pé na estrada.

Sigo viagem com um grupo de oito motos, a maioria, membro do motoclube Arcanjos. Havia um acidente na rodovia, e o caminho estava complicado. Muito trânsito. Nesse tipo de viagem, atrasos costumam gerar discussões e animosidades dentro do grupo, porém estavam todos no horário. A ansiedade era tanta que teve gente que nem dormiu direito e saiu de casa antes de o dia clarear.

Quando rodamos em grupo pelas estradas, algumas regras devem ser seguidas. Normalmente, o mais experiente da turma assume a última posição, fechando o grupo. A moto com menor autonomia, em nosso caso, uma Honda Shadow 750 cc, pilotada pelo Arcanjo Roberto Totoli, o velho Baka, 51 anos, dono da Velo Bakar, uma loja especializada em velocímetros, vai à frente. O grupo deve sempre ocupar a faixa da direita da rodovia, posicionando-se lado a lado de forma intercalada, como as marcas de passos na areia. A distância entre as motos deve ser proporcional ao aumento da velocidade. Outro detalhe importante é eleger o pagador de pedágio. A fim de minimizar o tempo despendido nos guichês, escolhemos um dos integrantes do grupo, quase sempre o mais novo, para pagar por todos. O escolhido foi o Ailton de Souza Almeida, 45 anos, que trabalha com comércio de roupas e viaja com uma Harley-Davidson Heritage. Ele vai à frente, desce da moto, pega o dinheiro e paga. Enquanto o funcionário efetiva a operação, o restante do grupo é liberado e passa pela cancela rapidamente, sem a necessidade de tirar luvas e capacete. O pessoal da fila agradece.

Depois de passar por um trecho onde qualquer paisagem renderia um cartão-postal, surgem alguns quilômetros de curvas fechadas e íngremes, em pista simples sem acostamento. Chega-se a um mirante. No local, exatamente onde passa a linha que divide São Paulo de Minas Gerais, existe uma estátua de Nossa Senhora Aparecida ao lado de um boteco. Esse ponto é um tradicional marco do trajeto. Ele fica no topo da serrinha e muitos motociclistas param ali, alguns para comemorar a emocionante subida sinuosa, outros para aliviar o tremor das pernas. Quem não tem muita experiência sofre um bocado para encarar o serpenteado da estrada. “Há momentos em que a roda de trás quer passar a da frente”, diz Adriano Pak, 55 anos, fotógrafo e fundador do Arcanjos Motoclube, em referência à subida que fez em grande estilo com sua Harley-Davidson Ultra Classic, a maior moto do grupo.

Pausa para o almoço
O sol já está a pino. Todos tiram seus casacos por causa do calor intenso. O clima quente combina com estradas arborizadas, como as da Serra da Mantiqueira. Paramos em Caxambu (MG) para almoçar. Os restaurantes ao longo do caminho preparam mesas amplas para acolher os viajantes. O interessante é que os proprietários já reservam mesas menores para os capacetes. Quem não é do meio não deve entender nada. O prato mais comum entre os motociclistas é a picanha. Não tem erro: pode pedir que todos ficam satisfeitos. Desta vez, fomos politicamente corretos. Ninguém bebeu, afinal não combina muito mesmo. Durante o almoço, o também Arcanjo Pedro José de Sousa Martins, 48 anos, o Pedrão da X-Brasil, dono de uma Harley-Davidson Ultra Classic, 1995, comentou: “Estamos ficando velhos, este ano, só tem Coca-Cola na mesa”. Fato comemorado pelo policial Fabiano Matias Aieres, 34 anos, o Bio, Arcanjo dono de uma Harley-Davidson Dyna Glide.

Vento na cara
Quando se viaja de moto, a sensação é a de sermos parte da paisagem, isso é intenso. Talvez por estarmos acostumados a ver as coisas passarem pela janela, quando estamos de carro. Sobre uma moto não há limites, o contato com a cena é real, estamos lá. É um processo ativo, o nível de concentração é muito alto, mas nem por isso deixamos passar despercebidos detalhes, como o asfalto, que está a 15 cm de nossos pés, muitas vezes impreciso, devido à velocidade que, mesmo assim, se esticarmos a perna, podemos tocá-lo. Dentro de um capacete, você conversa com você mesmo, é quase uma sessão de terapia. Diferentemente do nosso dia a dia, naquele momento o mundo passa lentamente. Podemos pensar sobre quase tudo sem aquela sensação de perda de tempo.

Enfim, Tiradentes
Depois de quase oito horas de viagem, chegamos. Na entrada da cidade, motos passam roncando seus motores. Os motociclistas, com cabelos e barbas ao vento, não parecem sentir a brisa gelada. Não há um bar no caminho que não tenha motos na frente e um bando de motoqueiros em seu interior. É motoqueiro mesmo, essa discussão de motoqueiro x motociclista é balela. É a mesma coisa, ambos são aficionados por suas bikes.

Predomina no ar um misto de rock, blues, cerveja e ronco de escapamento. Neste ano, o evento, em sua 18a edição, contou com cerca de 7 mil motociclistas vindos de diversas partes do Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Estados Unidos, que também trazem em seus alforjes o espírito “sem fronteiras”.

As motos, em sua maioria, de grande cilindrada, ocupam o centro histórico e ficam paradas por causa do calçamento irregular, de pedra capistrana. O cansaço toma conta de todos, afinal é o dia da chegada. A temperatura cai. Tomamos o último gole e nos recolhemos.

Pela manhã, a névoa paira sobre a cidade. O assunto em todas as rodas, que se formavam pelas ruas de Tiradentes, era o mesmo: a viagem do dia anterior e o comportamento de cada moto perante os desafios do caminho.

Ouve-se um barulho estridente e ardido de um motor potente sendo acelerado. Era um piloto de uma dessas motos de velocidade acelerando sua máquina ao máximo, talvez para chamar a atenção de alguma garota que passava. Rapidamente surge um senhor de cabelos brancos, magro de gestos delicados e fala mansa, que se aproxima e com educação pede que o motoqueiro pare com o barulho, pois estava incomodando a todos. Para alívio geral, o sujeito, mesmo contrariado, atendeu ao pedido. Subiu na moto e foi embora. O salvador da pátria era Berg, um dos fundadores do encontro. Guilherme Berg tem 67 anos. Além de organizar o Tiradentes Moto Fest, ele e seus filhos importam peças de motos antigas “para manter as velhinhas rodando”.

No sábado, ficou difícil andar pelas ruas. Era moto e gente para todo o lado. Do meio da multidão, surge uma figura que destoa. Um tipo com a cara do Keith Richards e chapéu do Bob Dylan. Era o Jubal. Seu nome verdadeiro é José Romeiro Peres Júnior. Aposentado e com 62 anos, ele anda de moto desde os 17. Está em Tiradentes com sua Harley-Davidson Heritage. A primeira vez que veio ao encontro, há 18 anos, ele rodava pelas estradas de Minas Gerais com sua Harley Pan Hed e, em um posto de gasolina, conheceu um motoqueiro que o convidou para o evento. “Naquela época, encontros como esse eram só para ‘chegados’. Havia meia dúzia de pessoas. Fiz amizades que duram até hoje”, diz.

Jubal é o típico motoqueiro tradicional, vive no meio há muitos anos, foi discípulo de Filipe Carmona e Edgard Soares, dois ícones do motociclismo nacional. O cara é realmente uma figura. No meio da multidão, ele avista uma amiga e não se faz de rogado, prepara alguns passos de dança, tira o colete e o estende no chão para a moçoila passar. Esse é o cara.

Carpe diem
A noite de sábado foi a mais fria. Mesmo assim, as ruas estavam repletas. Eu me desliguei do grupo e fui dar uma volta. Queria encontrar um boteco regional, simples e barato. Não precisei caminhar muito. Foi só sair da praça principal. O local chamava-se “Impóriu dos Malas”. Atrás do balcão, apenas o Baixinho e sua mulher atendiam todo aquele povo. Depois de algumas cervejas, torresminho e frango frito, voltei para a praça principal. Assim, o sábado se foi.

Motos ligadas. Motores aquecidos. Saímos da pousada com destino ao ponto de entrada. Com todos presentes, é feita uma breve reunião. Caminho decidido, pé na estrada. Desta vez, pela rota mais rápida e menos sinuosa. Já no Estado de São Paulo, paramos em Bragança Paulista, cidade famosa pela produção de linguiças. Sentamos em torno de uma mesa, cada um com seu sanduíche da iguaria e começamos a planejar Tiradentes 2011. No restante da estrada, fiquei pensando que se Tiradentes estivesse vivo, olhando o jeitão dele, creio que seria um bom motociclista, poderia até ser um Arcanjo.

Salles confirma filmagem de On the Road

MAIS ESPECIAL HOMEM:
Pai, avô, craque, cidadão
O rei do costume
Instantâneos
O homem, esse deslocado
Perto do coração selvagem
Horizontes mais amplos
“Ele”


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