A educação do poder

O diretor  - Foto: Luiza Sigulem
O diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV, Luiz Artur Ledur Brito – Foto: Luiza Sigulem

Em um momento no qual o Estado brasileiro enfrenta uma crise estrutural, as discussões estão centradas na necessidade de uma reforma política que altere o processo de escolha dos governantes e dos parlamentares. Contudo, não basta impedir que as empresas continuem financiando aberta ou veladamente as campanhas eleitorais em troca de benefícios na administração. É preciso melhorar a formação dos gestores, para municiar o governo de técnicos capacitados a implementar políticas públicas mais transparentes e eficazes.  

A carência de profissionais qualificados nessa área é muito grande, mas vem sendo atenuada graças à multiplicação dos cursos de Administração Pública no Brasil. A primeira graduação com esse perfil surgiu em 1952, quando a Fundação Getulio Vargas criou, no Rio de Janeiro, a Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap). O modelo da Ebap foi reproduzido por outras 28 instituições de ensino superior que chegaram a abrir cursos de Administração Pública no Brasil nas décadas de 1950 e 1960, quando os governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964) estavam empenhados em racionalizar e profissionalizar a gestão do Estado.

Com o golpe de 1964, porém, o ensino da Administração Pública entrou em declínio: os novos dirigentes do Estado acreditavam que a gestão do governo em nada se distinguia da administração de uma empresa, uma vez que as reivindicações das camadas majoritárias da população já não precisavam ser levadas em conta. Além disso, não convinha colocar obstáculos à manutenção do clientelismo no plano local, uma vez que este era largamente usado pelos aliados civis do regime. Sem nenhum incentivo do Estado, quase todos os cursos de Administração Pública acabaram sendo fechados ou convertidos em cursos para administradores de empresas. A Faculdade de Economia e Administração da USP, por exemplo, extinguiu sua graduação em Administração Pública em 1969, e até mesmo a FGV do Rio, a pioneira, encerrou o seu curso em 1982.

No início dos anos 80 só havia restado o curso da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV, criado em 1969 por meio de um convênio com o governo paulista. Financiado com recursos públicos, o curso era gratuito e oferecia 50 vagas em Administração Pública. A gratuidade foi eliminada em 1996, quando o governador Mario Covas (PSDB) cancelou o convênio, mas a escola manteve o curso. Nessa época, a procura por administradores públicos estava começando a aumentar. Assim, em 1989 a Unesp de Araraquara criou uma habilitação nessa área. Cinco anos depois, em 1994, a Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, instituiu a sua Escola de Governo. Esse movimento ganhou impulso após a reforma administrativa realizada por Luiz Carlos Bresser-Pereira no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que instituiu a Lei de Responsabilidade Fiscal, e se consolidou nas gestões de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Hoje existem 184 cursos de formação de gestores, dos quais 115 são oferecidos por universidades públicas.

Quem absorve tantos profissionais? Em grande parte eles vão para o próprio setor público, que ganhou enormes atribuições após a Constituição de 1988: a partir daí surgiu o embrião de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil. Mas existe também uma grande demanda do chamado terceiro setor – fundações, organizações sociais, organizações não governamentais, movimentos sociais, organizações comunitárias –, que fazem parcerias com o Estado, e ainda das empresas privadas que têm relações com o setor público (por meio de licitações, parcerias, concessões). Por isso esses cursos hoje não pretendem apenas fornecer bons servidores públicos, mas sobretudo formar profissionais capazes de atuar em rede com uma multiplicidade de atores na sociedade civil.

Com esse objetivo, a FGV de São Paulo promoveu, em 2011, uma enorme reforma de seu curso de Administração Pública. Como explica Luiz Artur Ledur Brito, diretor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (Eaesp) da FGV, “nós não estamos formando funcionários públicos: estamos preparando profissionais com uma formação, com um ethos, que podem atuar no governo, em fundações, organizações sociais, empresas. Hoje há um debate sobre o papel das escolas de negócios. Com todos esses escândalos de corrupção que existem no Brasil, há uma crítica às escolas de negócios que só focam o business. Queremos preparar profissionais para serem líderes na sociedade. Um profissional formado num curso de Administração Pública pode perfeitamente atuar no mundo empresarial em uma função que tenha relação com o setor público ou que tenha impactos na sociedade. Por exemplo, em concessionárias, em órgãos reguladores. Existe hoje um grande mercado de trabalho, um mercado emergente, para profissionais com essa formação, e ele está se consolidando. Isso é novo”.

Daí a decisão de eliminar a antiga superposição entre Administração Pública e de Empresas na FGV: “Temos dois cursos de graduação totalmente independentes. No passado havia uma superposição entre Administração Pública e Administração de Empresa. Havia muita gente que fazia Administração Pública, mas ia trabalhar como administrador de empresas. Hoje deixamos o curso de Administração Pública mais alinhado para os alunos aos quais ele é destinado”.

O vice-coordenador do curso de Administração Pública, Marco Antonio Carvalho Teixeira, explica que antes “a Administração Pública era uma área de formação dentro do curso de Administração. Nós tínhamos 200 vagas no vestibular: 150 eram para a formação em Administração de Empresas, e 50 para a formação em Administração Pública. Mas era o mesmo vestibular. Havia dez mil alunos prestando vestibular, e essas 200 vagas eram ocupadas pelos 200 primeiros colocados. O que acontecia? As 50 vagas de Administração Pública eram ocupadas, em sua maioria, por candidatos que desejavam a Administração de Empresas, mas não estavam entre os 150 primeiros colocados. Então eles faziam Administração Pública porque queriam fazer a FGV. E faziam na esperança de poder passar para a outra habilitação. Muitos daqueles que não conseguiam a transferência se formavam em Pública, mas iam trabalhar no mercado de empresas”.

Segundo Teixeira, “percebemos que estávamos apenas formando administradores públicos, mas não estávamos entregando administradores públicos. Era um problema muito sério: de 50 alunos, 45 queriam ter feito Administração de Empresas, só cinco queriam pública. Os primeiros 45 negligenciavam as disciplinas de Administração Pública, o que atrapalhava o desempenho de todo mundo”. Assim, em 2011, a FGV separou os dois cursos e transformou a Administração Pública em bacharelado.

“E, para garantir que o aluno não prestasse vestibular só para entrar na FGV, fizemos vestibulares separados, realizados no mesmo dia. Hoje, quem presta vestibular para Administração Pública quer fazer Administração Pública”, explica o vice-coordenador. Na época ainda havia certo receio sobre a demanda de vagas para o novo curso: “Esse foi um risco danado. Será que vai ter demanda? Mas decidimos correr esse risco”.

Deu certo. Inicialmente, em janeiro de 2012, foram oferecidas 50 vagas anuais. Em 2013 passaram a ser oferecidas mais 50 vagas, em junho. A procura segue crescendo: no vestibular há dez candidatos para cada vaga. “Nossa evasão é de apenas 3%. Porque trabalhamos com gente que quer fazer o curso”, diz Teixeira.

Currículo novo

De acordo com ele, o fato “de montar um currículo dirigido especificamente para o administrador público faz diferença. A gente descobriu que a similaridade era menor do que esperávamos. Se você quer resolver problemas individuais, quer aumentar o lucro ou a produtividade de uma indústria, precisa fazer Administração de Empresas. Mas se quer resolver problemas coletivos, promover o bem comum, a inclusão social, você tem que fazer administração pública. As ferramentas são diferentes. Decisões de políticas públicas podem reduzir ou promover desigualdades”.

“Burocrata faz política: quando você lida com orçamento público, tem de lidar com perdas, tirar de um lugar para pôr em outro”, diz Marco Antonio Carvalho Teixeira, vice-diretor do curso de Administração Pública da FGV-Eaesp 

Os problemas também são diferentes. O gestor público não lida apenas com questões técnicas: “A gente vai um pouco além da ideia de formar burocratas mais eficientes porque burocrata faz política também. E, como ele faz política, precisa ter sensibilidade para tomar decisões. O desempenho gerencial faz parte de qualquer gestão, mas suas decisões têm outro tipo de impacto, de desdobramentos. A finalidade de uma decisão no campo empresarial é mais restrita e envolve menos interesses, porque seu ponto de partida é o interesse da empresa. Na gestão pública não é assim. Quando você lida com orçamento público, tem de lidar com perdas: saber como vai tirar de um lugar para pôr em outro. Não é uma questão técnica. Envolve um conjunto de questões que estão ligadas a um diálogo político”.

Cada semestre do curso tem um eixo: o do primeiro é a estrutura do Estado brasileiro; o do segundo, formação do Brasil contemporâneo. O terceiro trata de desenvolvimento; o quarto, das instituições públicas e instrumentos de gestão pública. O quinto, de gestão e políticas públicas subnacionais. O sexto, governança internacional. O sétimo e o oitavo se destinam aos TCCs. A história do Brasil, por exemplo, é contada por meio de análises de obras de arte, e as oficinas integram os conhecimentos das disciplinas teóricas. Tem muita matemática, para que os alunos tenham instrumentos para produzir diagnósticos, já que as prefeituras não têm gente para produzir indicadores.

Na faculdade não há estágio obrigatório. “Já temos disciplinas presenciais práticas”, afirma Teixeira. “Nossos alunos do sétimo semestre estão todos no exterior: alguns estão em Cuba estudando políticas de educação; outros estão no Chile estudando a cultura do país. Outros estão em Quilmes, na Argentina, estudando associativismo. Um outro grupo está na Colômbia estudando infraestrutura. E os demais estão no Equador estudando políticas de agricultura familiar”.

“Isso a gente chama de imersão. É uma experiência prática. Os alunos produzem um diagnóstico sobre cada país, suas políticas públicas, sobre a estrutura do Estado, e elaboram um diagnóstico, que deixamos com eles, em retribuição por terem recebido nossos alunos”, explica o vice-coordenador. E, assim como as imersões em outros países, o curso também promove experiências no governo federal e nas prefeituras: “A imersão nacional é em Brasília. No terceiro semestre eles vão para a capital aprender como se faz política pública em um ministério. Os alunos são recebidos pela equipe da pasta, passam uma semana ali e são avaliados pelos próprios gestores. Deixam lá um diagnóstico dos problemas e um plano de intervenção”.

Já no quinto semestre “eles fazem o que chamamos de conexão local. Neste ano os alunos adotaram municípios que perderam receita de forma abrupta porque dependiam de uma atividade econômica fortemente afetada pela crise mundial. Então foram para Triunfo (RS), que tem refinaria de petróleo; Camaçari (BA), indústria química e automobilística; Araxá (MG), mineração; Sorriso (MT), soja; e Anchieta (ES), o porto da Samarco. Desde o início do ano ficaram levantando dados e informações e depois passaram 15 dias nos municípios, entrevistando pessoas de todos os setores econômicos e vasculhando as prefeituras. O produto foi uma proposta de diversificação das atividades econômicas locais. Sete prefeitos vieram para São Paulo ver as apresentações dos alunos e levaram debaixo do braço as propostas que eles fizeram. Muitas propostas foram implementadas”.

Empregos

Os alunos deixam a faculdade empregados, devido à carência de gestores públicos no País: “Nós formamos a primeira turma agora. E todos eles já estão empregados. Todos. Há casos de alunos que ainda estavam fazendo estágios em prefeituras e já foram efetivados. Um em Osasco, outro aqui em São Paulo. Alguns tiveram de escolher entre duas propostas de emprego. Tem quatro alunos na Fundação Lemann, outro no Grupo Votorantim, outro no Banco Itaú, na Natura, no Banco Mundial. Tudo isso porque as empresas privadas também precisam de pessoas com formação na área pública, porque elas precisam se relacionar com os governos. Ainda mais agora, porque, com esses sistemas anticorrupção, todas as empresas vão precisar ter compliance (departamento encarregado de manter a empresa em conformidade com as leis). E com quem você vai trabalhar nesses sistemas? Com quem entende os dois lados da moeda, e sobretudo, com quem entende como funciona o governo. Então, formamos pessoas para cargos de gestão no setor público, mas também para empresas do terceiro setor e empreendedores”.

Como explica Teixeira, “um dos grandes problemas do setor público é a falta de pessoal capacitado. Pequenas e médias prefeituras perdem muito dinheiro porque não conseguem fazer um edital ou atender um edital. É impressionante. E o que elas gastam com consultorias porque não têm pessoal para fazer diagnósticos, para montar um plano diretor, também é impressionante. Estamos buscando atender essa demanda”.
Há deficiências mesmo nas metrópoles: “Os problemas da administração variam de acordo com a área. Nas prefeituras há falta de capacidade de fazer uma gestão de orçamento, de negociar com a sociedade ou mesmo de construir canais de comunicação. Mesmo grandes cidades não têm isso”. E exemplifica: “O prefeito Fernando Haddad se cercou de profissionais que valorizam mais a técnica do que o processo político. Boa parte do desgaste dele vem do fato de que suas decisões são construídas só dentro do governo. A capacidade de diálogo que o Haddad tem com a sociedade é mínima. É uma das grandes áreas de desgaste dele”.

Muitos ex-alunos do curso já vêm se destacando na sociedade civil. Teixeira cita, entre outros, o caso de Nina Valentini, diretora-executiva do Movimento Arredondar, a primeira iniciativa brasileira focada em microdoações (obtidas pelo arredondamento do troco em restaurantes) que vão financiar organizações sociais alinhadas com os objetivos do milênio estabelecidos pelas Nações Unidas.

Enem

A partir do final deste ano, a seleção para a área de Administração Pública deixará de ser feita pelo vestibular. Segundo Brito, no ano que vem 100% dos alunos de pública serão selecionados pelo Enem. “Vamos acabar com o vestibular. Vamos poder atrair alunos de todo o Brasil. Vamos ter uma procura maior, mais possíveis candidatos, e candidatos melhores. Isso vai contribuir para a questão da diversidade. Vamos ter mais gente de outras regiões, de outras classes sociais”.

“Não estamos formando funcionários públicos, mas preparando líderes para a sociedade”, diz Luiz Brito, diretor da FGV-Eaesp

O diretor explica que a FGV não pretende ampliar muito a oferta de vagas, porque a preocupação é manter a qualidade: “Somos absolutamente cautelosos quanto à qualidade do curso. Corremos atrás da demanda. À medida que ela cresça, nós poderemos ampliar. Mas não pretendemos crescer de maneira muito relevante. Sempre vai ser um grupo de nicho. Cem alunos por ano, talvez em alguns anos sejam 200. No Brasil isso não é nada. Nosso objetivo é formar lideranças, não é formar massa”. O objetivo é ocupar espaços estratégicos. “Temos um quadro de ex-alunos fantástico. Alunos que formamos nos anos 60, 70, 80, hoje estão em cargos relevantes. Se você pega um CEO de empresa, a maior probabilidade é que ele tenha se formado aqui”, observa Brito.

O curso não é barato: a mensalidade está atualmente em R$ 3.700. “É um curso pago, um curso caro, que traz essa limitação para o mercado. Mas temos uma série de bolsas, de gratuidades para os alunos de melhor desempenho. Temos um fundo que empresta o valor da mensalidade ao aluno, que repaga esse valor depois de se formar”, diz o diretor da escola. Dos atuais 371 estudantes do curso de Administração Pública, 147 são bolsistas. “Apesar do mito de que somos uma escola de elite, ninguém deixa de estudar aqui por falta de recursos”, afirma Brito: “Se o aluno se qualifica, a gente tem recursos para viabilizar a carreira dele”.


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