A CPI que investiga a rede de influência de Carlinhos Cachoeira no centro do poder, em Brasília, já não tem dúvidas de que as atividades do contraventor eram amparadas por um aparato de espionagem de dar inveja às melhores polícias. Com tentáculos no Congresso, no Judiciário e no Executivo, Cachoeira acompanhava com informações precisas e tão de perto a vida do País, que soube até o momento certo para migrar do crime para a legalidade, optando pela construção civil em parceria com a Delta Construções. O segredo de Cachoeira foi organizar uma central de espionagem pela qual gravitavam ex-agentes da comunidade de informações, alguns do extinto Serviço Nacional de Informações, de triste memória, e outros com passagem pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

Preso, Cachoeira contratou os melhores advogados do País – liderados pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos –, transformou a CPI num roteiro de testemunhas mudas e, de quebra, produziu um novo abalo à República ao virar pivô do conflito entre o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em versão divulgada por Mendes, durante encontro mediado pelo ex-ministro Nelson Jobim, em Brasília, no dia 26 de abril, Lula teria dito a Mendes, o pior de seus adversários, que tinha interesse no julgamento do mensalão. O detalhe estranho é que Mendes esperou quase um mês para manifestar sua “indignação” ao que considerou uma chantagem de Lula, para tentar “melar” o julgamento do caso da década.

Outro detalhe estranho no episódio é que Mendes só decidiu revelar o encontro ao presidente do STF, Ayres Britto, três dias antes de a revista Veja sair com a reportagem sobre o assunto. Sua obrigação era levar o caso às reuniões reservadas do STF ou formalizar uma denúncia na Procuradoria Geral da República. Mendes, no entanto, preferiu esperar que a notícia ganhasse repercussão para responsabilizar Lula pela montagem de uma “central de informações falsas” sobre suas supostas relações com Cachoeira, incluindo uma viagem no avião do contraventor. Como se não bastasse, Mendes acusou, ainda, o ex-presidente de tentar chantageá-lo. Disse que estava lidando com “gangsters” e que o objetivo era intimidar o STF às vésperas do julgamento do mensalão.

A única parte sobre a qual não há dúvidas é que o encontro ocorreu. Jobim, o anfitrião, negou que Lula tivesse pedido o adiamento do julgamento ou sugerido que Mendes tenha viajado em um avião de Cachoeira. O belicismo no uso do verbo, a profusão de frases de efeito para atacar quem elege como adversário e equívocos que beiram à paranoia fazem parte do perfil de Mendes. Em nota, Lula também negou a versão de Mendes. “Meu sentimento é de indignação”, afirmou o ex-presidente. Dois dias depois, a presidenta Dilma Rousseff , sem fazer nenhuma referência à polêmica, homenageou Lula em cerimônia no Palácio do Planalto sobre as Metas do Milênio. “As pessoas nos lugares certos e na hora certa mudam os processos e transformam a realidade”, disse Dilma, antes de ser interrompida pela plateia, que se levantou e entoou “Olê, olê, olé, olá, Lula, Lula”. O ex-presidente não participou da cerimônia mas, pouco depois, almoçou com Dilma no Palácio da Alvorada.

O auge do delírio conspiratório do ministro do Supremo ocorrera na véspera, quando Mendes disse que Lula e o PT estariam sendo abastecidos pelo delegado Paulo Lacerda, que teria como braço direito o araponga Idalberto Matias, o Dadá, e como meta, destruí-lo. Diretor da Polícia Federal durante o ciclo de operações contra a corrupção entre 2003 e 2007, Lacerda acabou exonerado do comando da ABIN em 2008. O motivo foi a acusação de que a ABIN teria grampeado um telefonema entre Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Na época, Mendes armou um escândalo e anunciou que chamaria o então presidente Lula “às falas”. Mais tarde, ao se dar conta de que o grampo não existiu, o ministro justificou sua atitude com uma explicação de corar um primeiranista de Direito: o diálogo que recebera em um papel apócrifo transcrevendo a suposta conversa era “verossímel”. Hoje, aposentado pela Polícia Federal, Lacerda decidiu quebrar o silêncio a que havia se proposto ao ver seu nome citado de novo por Mendes. “Ele está exaltado, sem controle”, reagiu o delegado, classificando as declarações de Mendes como “levianas, irresponsáveis, mentirosas” e impróprias a uma autoridade da mais alta Corte do País.

Ex-desembargador e secretário nacional Antidrogas no governo Fernando Henrique Cardoso, o jurista Wálter Maierovitch acha que o excesso de leviandade nas declarações contra Lula e Lacerda é um sintoma de que Gilmar Mendes saiu novamente do eixo. O juiz lembra que em 2008, como presidente do STF, Mendes além de criar um escândalo nacional em torno de um grampo inexistente, também entrou em conflito com o juiz Fausto de Sanctis, da Justiça Federal paulista. Em duas ocasiões, ele derrubou duas ordens de prisão da primeira instância do Judiciário do banqueiro Daniel Dantas, na Operação Satiagraha.

Maierovitch enxerga na atitude de Mendes duas constatações jurídicas: o ministro se autoimpediu de participar do julgamento do mensalão e, pelas ofensas à honra do ex-presidente, poderia ser processado criminalmente. A sorte de Gilmar Mendes é que Lula, que mais assopra do que morde, não deve levar isso em frente. “O mais grave é que ele está atuando em uma atividade político-partidária proibida pela Constituição aos membros do STF. Depois do encontro com Lula, ele foi a outro, em Brasília, com a cúpula do DEM”, diz Maierovitch.
Quando Mendes desfechou os ataques destemperados contra Lula, os ministros do Supremo já haviam definido até o tempo que as partes terão para se manifestar no julgamento do mensalão. Mas, como Mendes calcula todos os passos, é provável que tenha prospectado alguns cenários possíveis com o aguaceiro provocado por Cachoeira: podem surgir novas acusações contra ele na CPI e o conflito com Lula ajudaria a reduzir eventuais danos. Em versão mais política, Mendes estaria preparando terreno para sair candidato ao governo de Mato Grosso, sua terra natal, quando deixar o STF. Aproveitaria, então, o momento em que Lula e PT travam uma queda de braços com a Veja e Folha de S.Paulo sobre a existência ou não do mensalão como modus operandi, para obter apoio político.

O dado ruidoso no cenário é a capacidade de Cachoeira entrelaçar os dois temas por meio do esquema de espionagem que montou desde que gravou, em 2004, o ex-número 2 da Casa Civil, Waldomiro Diniz , durante a gestão do ministro José Dirceu. Também saiu desse mesmo esquema a espionagem que traria à tona escândalos como o do mensalão e o grampo que, embora inexistente, abalou a República. A história permaneceria na galeria dos casos insolúveis se as operações Vegas e Monte Carlo não trouxessem detalhes secundários ao que se investiga atualmente.

Um desses detalhes mostra indícios de que a conversa entre Demóstenes e Mendes pode ter sido escutada por arapongas que trabalharam para Cachoeira, e confirma que o grampo nunca existiu. Policiais encarregados de decifrar o enigma reforçaram a suspeita de que o telefone sob controle era o de Demóstenes, por meio de um prosaico registro das conversas pelo aparelho de rádio Nextel presenteado pelo contraventor ao senador e a vários membros de seu grupo. Os diálogos daqueles que usavam os aparelhos ficavam registrados na “central” de Cachoeira. A transcrição da conversa entre Demóstenes e Mendes teria sido passada a jornalistas da Veja, que não apenas deram chancela de grampo, como também atribuíram o feito a agentes da ABIN no exercício de suas funções legais. A CPI está destrinchando esse mistério e as relações de Cachoeira, mas ainda hesita em avançar no rumo mais delicado desse processo: os limites da investigação jornalística, uma atividade em alta desde a imprensa ajudou a derrubar ex-presidente Fernando Collor de Mello.


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