Ela não é carioca

Morena jambo, 1,70 m, 22 anos, uma pinta no lado direito do queixo, cabelos anelados e falando um português com todas as expressões da moda, Mayra Andrade engana à primeira vista. Parece uma brasileirinha da gema. Mas quem a conhece de perto, caso da cantora Mariana Aydar, garante que o sotaque português volta assim que se aproxima de um compatriota cabo-verdiano. Shows nos Sescs e no Bourbon Street paulistano marcaram sua segunda visita ao Brasil.

Produzido por Jacques Ehrhart, responsável por álbuns de Henri Salvador e Camille, entre outros, Navega, o disco de estréia que Mayra está divulgando em uma agenda concentrada na Europa com shows marcados até maio de 2008, inclui músicas de compositores de Cabo Verde com uma roupagem atual. São nomes desconhecidos entre nós, como Kaká Barboza (“Dimokransa”), Calu Princezito (“Lua”), Nhelas Spencer (“Poc li Dente é Tcheu”) e Betú (“Nha Nobréza”), com destaque para Orlando Pantera, um ídolo das novas gerações falecido prematuramente em 2001, de quem Mayra gravou “Lapidu na bo”, “Tunuka”, “Dispidida” e “Regasu”. A própria Mayra compôs “Mana, Nha Sibitchi” e a música-título, em parceria com Patrice Larose. A saborosa “Comme s’il en Pleuvait”, a única em outra língua, é uma canção do francês Tété sugerida pela cantora, que se inspirou em uma mendiga das ruas de Praia, capital de Cabo Verde, onde vivem os pais de Mayra.
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Nascida em Cuba, dez anos após a independência de Cabo Verde, por razões médicas – seu pai era um militar de esquerda formado na ex-União Soviética -, Mayra viveu em Praia até os 6 anos e depois morou com a família no Senegal, em Angola e na Alemanha. Aos 16 anos, já se apresentando como cantora, foi selecionada para representar Cabo Verde nos Jogos da Francofonia realizados no Canadá, onde conquistou a medalha de ouro e uma bolsa do Parlamento para estudar canto em um país francófono de sua escolha. Cantou uma balada em francês e três músicas pinçadas do riquíssimo folclore de seu país – que tem, entre outros ritmos, morna, coladeira, batuque, funaná, colá, mazurca. Escolheu Paris para estudar e vive lá até hoje em um apartamento na Île Saint-Louis. De sua janela, às vezes vê Chico Buarque passar com uma baguete debaixo do braço. Mas sua ligação com a música brasileira não se resume a isso.

Leãozinho
Começou a cantar ainda criança e costuma brincar que seu primeiro hit foi “Leãozinho” (Caetano Veloso) aprendido com um primo-irmão e padrinho em Portugal, onde Mayra passava as férias. Além do ouvido musical, sua facilidade em assimilar nosso modo de falar vem do fato de ser do sul. Segundo Mayra, o crioulo, idioma falado nas dez ilhas, tem duas vertentes: o barlavento, do norte, mais cantado; e o sotavento, mais “comido”, mais inteligível para quem é do Brasil. Santiago, onde fica Praia, foi a primeira ilha povoada, na qual a herança africana mais se conservou. Outro ponto de contato com nosso país foi Paris, em que a world music tem um espaço muito grande, muitas vitrines. Mayra aproximou-se da colônia de músicos brasileiros, bem grande por sinal, por intermédio de Rémy Kolpa Kopoul, jornalista que trabalhou no Libération, fundador da eclética Radio Nova parisiense, considerado o introdutor da música brasileira em Paris – ainda se lembra da primeira entrevista que fez com Caetano nos anos 1970. Lá, Mayra conheceu, entre outros, Lenine, Seu Jorge e Gilberto Gil, Caetano Veloso e Jacques Morelenbaum, com quem se apresentou recentemente em Angola. A cantora esteve no Brasil em 2003 para gravar “Amor Cuidado”, música de Wagner Tiso e Caique Botkay, com letra da poetisa Elisa Lucinda,
para o Dia Mundial de Luta contra a Aids, com a participação de brasileiros como Chico Buarque, Zélia Duncan e Mart’nália e lusófonos como Filipe Muquenga, de Angola, e Filipa Pais, de Portugal.

Voz guia
Navega foi gravado ao vivo em estúdio, com uma banda de base liderada pelo guitarrista cabo-verdiano Kim Alves, pelo baixista camaronês Etienne Mbappé e pelo percussionista brasileiro Zé Luiz Nascimento, além de participações especiais, como do acordeonista malgaxe Régis Gizavo, do celista francês Vincent Segal e do brasileiro Hamilton de Holanda, o “Mago do Bandolim”. A energia foi tanta que muitos dos vocais aproveitados no disco eram originalmente a voz guia que Mayra cantou para embalar as execuções. E é essa energia que brota no palco, onde a cantora brilha acompanhada por uma banda composta exclusivamente por brasileiros – Zé Luiz Nascimento (bateria e percussão), Ricardo Feijão (baixo), além dos guitarristas Nelson Ferreira e Tarcísio Gondim, que se revezam nos violões e cavaquinhos. Seja acompanhando-se ao violão, seja valendo-se de uma barra de ferro em que batuca com uma faca – seu duelo com Zé Luiz em “Navega” é de deixar muito percussionista envergonhado -, Mayra aparenta muito mais idade do que tem.

Mesmo nova, a cantora já tem um quadro com sua imagem no Palácio da Cultura da capital cabo-verdiana ao lado do retrato de Cesária Évora. Da lendária cantora, Mayra diz que a maior influência que sofreu guarda relação com o que Cesária fez e tem feito por Cabo Verde, apesar de ter sido reconhecida tardiamente – como uma Clementina de Jesus. Mesmo porque, além de música brasileira, o que Mayra mais ouve é o reggae da família Marley, Lauren Hill, Sean Lennon, Amy Winehouse, os franceses do Phoenix, música africana, flamenco, música indiana e, confessa em um dos raros momentos em que demonstra seus 22 anos, Red Hot Chili Peppers e Guns N’Roses.


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