Elas também gostam de mesa-redonda

Outro dia, jantando em casa de amigos, pedi licença para espiar o resultado de um jogo de futebol. Sabia muito bem que o jogo estava sendo transmitido pela televisão e só não estava assistindo desde o início por pura covardia: era aquele Fluminense x Argentinos Juniors, pela Copa Libertadores da América, em que o Flu tinha apenas 8% de chance de classificação – e eu temia pelo pior. Mas espiar não custava nada.

Perante o meu interesse pelo andamento do jogo, uma amiga minha, dos tempos da faculdade, virou-se, admirada, e disse: “Não sabia que você gostava tanto assim de futebol!”.
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Ouvi aquilo, ofendida. Quem ela pensava que eu era? Talvez a “grã-fina das narinas de cadáver”, do Nelson Rodrigues, que um dia entrou no Maracanã e perguntou: “Quem é a bola?”. As mulheres tendem a achar que as mulheres não gostam de futebol.

Ora, bolas (com e sem trocadilho), mesmo nos períodos em que estive um pouco afastada do assunto, sempre acompanhei à distância a situação do meu time, o Fluminense. E posso me jactar de algumas proezas: sei muito bem como é a regra de impedimento, conheço as características de um meia, de um ponta, de um centro-avante, posso descrever coisas como “sem-pulo” e “da figura A para a figura B”, e adoro assistir às resenhas de futebol no domingo à noite, só trocando de canal quando elas não param de falar nos times de São Paulo. Portanto, exijo respeito.

Meu amor pelo futebol tem passado, tem história. Frequentei muito os estádios quando era jovem e, entre outras façanhas, fui àquele jogo que foi recorde oficial de público no Maracanã em todos os tempos, o Brasil x Paraguai, pelas eliminatórias da Copa de 70, com 180 mil pessoas assistindo e Pelé em campo (foi o autor do único gol) – e digo recorde oficial, porque o verdadeiro recorde foi na trágica final da Copa de 50, quando ainda não se contava o número de espectadores.

“Mas não pensem vocês”, continuei, “que sou dessas mulheres que só gostam de futebol durante a Copa do Mundo. Gosto de futebol todos os anos, o ano inteiro, e sou perfeitamente capaz de me sentar à poltrona para assistir a Ituano x Ipatinga na TV, depois de escolher um deles para torcer.”

Todo mundo riu – até a amiga da faculdade. E então a conversa enveredou para a relação entre literatura e futebol. Enquanto isso, na televisão ligada baixinho pelo anfitrião – apenas para que eu acompanhasse a marcha do placar -, o jogo continuava. Era uma agonia. Toda vez que o Fluminense ficava na frente, os argentinos iam lá e empatavam: 1 x 0, 1 x 1, 2 x 1, 2 x 2, 3 x 2 – o que aconteceria agora? E o Fluminense precisando ganhar por dois gols de diferença! Talvez só o Sobrenatural de Almeida, aquele outro personagem de Nelson Rodrigues, pudesse ajudar. Um fantasma amigo, capaz de influenciar um placar, de operar milagres tricolores.

E foi então, ao pensar em fantasmas, que – só para me distrair – comecei a contar uma história para os amigos.

* * *
Houve um domingo, um domingo em especial, há muitos anos, em que o Maracanã se pintou de verde e grená, de preto e branco. Era o dia 27 de junho de 1971 e eu estava lá, no meio de mais de cem mil pessoas. Era final de Campeonato Carioca e jogavam Fluminense x Botafogo. Naquela tarde, o Maracanã rugia, o povo ululava, gritando seus cantos de guerra, como acontece desde antes da criação do universo (Nelson, sempre ele). Lembro que, a toda hora, eu parava e ficava observando aquela multidão se mexendo como um monstro colorido. E foi assim que, aos 43 minutos do segundo tempo, não vi direito quando a bola entrou. Fluminense 1 x 0. Era o gol do título.

Os botafoguenses choram que houve falta, que o gol foi ilegal. Eu não vi nada. Só me lembro do estrondo, do grito imenso, dos pulos e abraços. E, em seguida, de ter visto uma imagem que guardei comigo mais do que todas as outras, com nitidez impressionante.

Enquanto a torcida tricolor comemorava, avistei, alguns metros abaixo de mim, andando de um lado para outro na arquibancada, um homem gordinho e careca, enrolado em uma bandeira. Estava coberto de talco da cabeça aos pés. Mas o que nele me chamou a atenção foi a expressão de fervor. Chorava, soluçava mesmo. E seus olhos úmidos pareciam dois cristais cravados naquela face de pedra, em cujo branco as lágrimas abriam caminho, como veios. Era lindo, era plástico. Nunca mais me esqueci daquele rosto.

Muitos anos depois, eu o revi na televisão. Só então fiquei sabendo que era um tricolor folclórico, de nome singelo, bem brasileiro – Guilhermino Santos -, cujo apelido era o Careca do Talco, porque sempre se cobria de talco ou pó de arroz para ir ao Maracanã. Achei graça, relembrando sua expressão apaixonada, que vira um dia. E, não muito tempo depois, li a notícia nos jornais: Guilhermino, o Careca do Talco, tinha morrido, vítima de um derrame, aos 68 anos.

Os anos se passaram. Até que outro dia, ao ver as fotografias do Maracanã vazio, em obra para a Copa do Mundo de 2014, tornei a pensar nele. Dentro do gigante alquebrado, em meio às arquibancadas destroçadas, sem grama, sem torcedor, sem colorido – ali, naquele lugar ideal para ser assombrado -, talvez o Careca do Talco vagasse agora. Quem sabe, com o estádio deserto, por entre aquelas montanhas de entulho, alguém já não tenha tido uma visão de sua figura incorpórea, flanando em meio a uma nuvem de talco, uma névoa de pó de arroz, um tanto embaçada, como costumam ser as visões? Todo branco, os olhos aquosos, a expressão perdida em algum gol eterno.

Um anjo flou, um anjo Flu, doce fantasma que escolheu vagar pelo lugar que tanto amou, onde sofreu e foi feliz. E de onde continua torcendo pelos gols impossíveis do Fluminense.

* * *
Terminei de falar. As pessoas estavam paradas, me olhando, em silêncio. Ao fundo, os ruídos do jogo, na televisão ligada bem baixinho. E foi quando ouvimos um alarido. Todos os olhares convergiram para a tela. Fred tinha feito o quarto gol. Aos 43 minutos do segundo tempo, o Fluminense estava classificado. Era mais um milagre tricolor. Com certeza, àquela hora, em alguma nuvem de pó de arroz etéreo, um anjo gordinho chorava.

**Escritora com mais de dez livros publicados, sendo o mais recente O Prazer de Ler, pela editora Casa da Palavra.


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