Como a matemática, a prosa de Rubem Braga é uma ciência exata. Nela, como numa tábua de logaritmos ou numa equação, nada está fora do lugar, nada é supérfluo, excedente, sem motivo. Braga dirigia e comandava as palavras da mesma forma como um matemático maneja os números.
Joel Silveira
A sentença do amigo Joel Silveira, craque do jornalismo literário brasileiro que cruzou o caminho de Rubem Braga quando ambos cobriam a Segunda Guerra, na Itália, não deixa dúvidas: armado de muito lirismo e uma linguagem acessível e sintética, o Velho Braga (como ele se autodefinia desde a juventude) transcendeu o tolo preconceito que pretendia legar à crônica um papel secundário na produção literária do País. Ao dar continuidade a uma tradição marcada pela excelência de Machado de Assis e a irreverência de João do Rio, fez do gênero grande arte e deu a ele acentos modernistas. A despeito de não ter escrito um único romance, Rubem Braga tornou-se um dos maiores nomes da prosa brasileira.
O escritor e jornalista capixaba, de Cachoeiro do Itapemirim, teria completado 100 anos no último dia 12 de janeiro e as celebrações estão repletas de boas novas. A principal delas, a exposição interativa Rubem Braga – O Fazendeiro do Ar. A mostra, que será aberta em Vitória no início de março, é prato cheio para os fãs se fartarem do universo mágico do cronista.
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Dividida em seis módulos temáticos – Capital Secreta do Mundo, Cachoeiro, Redação, Passarinho, Mulher, Guerra e Cobertura –, a exposição tem curadoria do jornalista e também cronista Joaquim Ferreira dos Santos, que teve carta branca da família para esmiuçar o rico acervo pessoal deixado pelo escritor. Os módulos oferecerão uma espécie de radiografia das principais facetas do Velho Braga. Recordarão a infância do cronista, terreno memorial inspirador e tão recorrente em seus textos. A amizade do inseparável cão Zig, a pesca de piabas no Córrego Amarelo, vizinho a sua casa, e as aventuras de menino serão retratadas em imagens e documentos pessoais. A notória obsessão de Braga pelas mulheres também será evidenciada, com ênfase na relação de décadas de “amizade colorida” entre ele e a atriz Tônia Carrero.
Apaixonado por outras tantas mulheres, Braga foi casado uma única vez, com a escritora Zora Seljan, com quem teve seu único filho, Roberto Seljan Braga. Suas atuações como Embaixador do Brasil, a convite do ex-presidente Jânio Quadros, no Marrocos, em 1961, e como correspondente de guerra do jornal Diário Carioca, na Itália, também serão lembradas na mostra. Entre 1944 e 1945, quando acompanhou a Força Expedicionária Brasileira, o então repórter testemunhou experiências sombrias que, depois, foram relatadas no livro de crônicas Com a FEB na Itália, publicado em 1945.
Parte significativa do ambiente expositivo reproduzirá o habitat do precoce jornalista, que começou a atuar aos 15 anos, quando ingressou no ofício de repórter no Correio do Sul, jornal diário criado em 1928, em Cachoeiro do Itapemirim, por seus irmãos Armando de Carvalho Braga e Jerônymo Braga. Na empresa da família, o futuro cronista – que passou a assinar suas primeiras observações do cotidiano aos 21 anos, em 1934, e debutou em 1936, com o livro O Conde e o Passarinho – também atuou ao lado de seu outro irmão, o jornalista e poeta Newton Braga. A paixão do Velho Braga pela natureza, um ecologista avant la lettre, também será ressaltada na mostra por meio de sua obsessão por pássaros e uma réplica da área externa da cobertura onde Braga morou por quase quatro décadas, em Ipanema, na rua Barão da Torre. Ponto de encontro da nata da intelectualidade carioca, o lar doce lar do escritor era uma ilha verde em meio ao mar de concreto da Zona Sul, repleta de plantas e até de árvores frutíferas – goiabeira, mangueira, pitangueira e um pé de romã.
A cenografia da mostra foi concebida por Felipe Tassara e propõe uma imersão no universo do cronista, valendo-se de recursos visuais e sonoros nos módulos expositivos. Em uma das salas, traçando uma linha cronológica, retratos do escritor, em diversas fases de sua vida, estarão expostos (Braga era também apaixonado por fotografia).
Dez caixas suspensas instigarão e deixarão revelar, aos curiosos, textos, documentos e fotos de diversos períodos, no módulo chamado Capital Secreta do Mundo, em alusão ao apelido supostamente dado pelo cronista à sua terra natal (há quem defenda que a expressão foi cunhada pelo amigo Vinicius de Moraes, em tom de deboche). Em Redação, o ambiente será coberto, do chão ao teto, por reproduções de páginas de jornais. Prolífico, o cronista, que também atuou como crítico literário, escreveu para mais de 30 veículos de imprensa. No espaço, também estarão dez máquinas de datilografar com tablets integrados a elas, reproduzindo os textos já publicados. No módulo Guerra, dez aparelhos telefônicos da década de 1940 apresentarão jingles, músicas, excertos de programas de rádio e noticiários – registros históricos que reconstituem os dias difíceis no front.
Em Passarinhos, o visitante poderá ter sua imagem captada por uma câmera e reproduzida em um telão com cenas de pássaros. No módulo Mulheres, a sala Musa será coberta por uma imagem ampliada de Tônia Carrero e também exibirá frases escritas por Braga que testemunham seu fascínio pelo universo feminino. Em Cobertura, em meio à réplica do ambiente bucólico do apartamento do autor, os encontros com os amigos serão lembrados em projeções de depoimentos audiovisuais de Ziraldo, Danuza Leão, Zuenir Ventura, Fernanda Montenegro, entre outros assíduos frequentadores.
A mostra permanecerá em Vitória, no Palácio Anchieta, até 26 de maio e no decorrer desse ano será lavada a outras quatro capitais: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife.
Notáveis -Inédito, Retratos Parisienses compila entrevistas feitas em Paris e registra o encontro com gigantes como Sartre, Picasso e Cocteau |
O QUE MAIS VEM POR AÍ Detentor dos direitos autorais da obra de Rubem Braga, o grupo editorial Record promete celebrar o centenário do autor em grande estilo. Entre os títulos previstos para serem lançados neste ano, Retratos Parisienses é a cereja do bolo e chega a surpreender o fato de a obra ter permanecido inédita por tanto tempo. O livro reportagem registra, em 31 textos, dezenas de encontros entre Braga e grandes personalidades do século 20, como o filósofo Jean-Paul Sartre, os pintores Pablo Picasso e Henri Matisse, o poeta e cineasta Jean Cocteau e o escritor surrealista André Breton, entre outros protagonistas da cultura e da intelectualidade europeia.Braga atuou por três anos na capital francesa (entre 1949 e 1952), como correspondente do jornal Correio da Manhã, onde assinava a crônica diária Recados de Paris, e realizou essas célebres entrevistas, compiladas agora, em Retratos Parisienses, com organização de Augusto Massi. O livro está previsto para ser lançado no final deste mês de fevereiro pela Editora José Olympio, um dos braços do selo Record. Antologias, livros de capa dura, uma reedição especial de 200 Crônicas Escolhidas, sua coletânea mais vendida, e outros três importantes relançamentos são prometidos pela Record. A compilação O Lavrador de Ipanema reunirá 14 crônicas, escritas entre os anos 1930 e 80, que são interligadas tematicamente pela paixão de Braga pela natureza. A expressão que dá nome ao livro foi atribuída ao cronista pelo amigo, também escritor e jornalista, Paulo Mendes Campos, em alusão às plantas e à horta que ele mantinha em sua cobertura. Pelo selo Galerinha, divisão de literatura infantil e infanto-juvenil da Record, será relançado O Menino e o Tuim, em que Braga narra a ação transformadora da infância e a emocionante amizade entre um menino e seu bicho de estimação – não por acaso, um passarinho. Escrito por José Castello e publicado originalmente em 1996, Na Cobertura de Rubem Braga, também voltará às livrarias e reúne depoimentos de amigos na casa do cronista, como Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Antônio Callado, entre outros. O livro foi editado em formato de dicionário e os verbetes levam o leitor a conhecer, em minúcias, as singularidades que faziam do lar do escritor um lugar tão especial. Fumante incorrigível, Rubem Braga morreu em 19 de dezembro de 1990, em decorrência de um câncer de laringe não tratado por ele, que dispensou quimioterapia e intervenções cirúrgicas. Dois dias antes de partir, reuniu um diminuto grupo de amigos em sua mítica cobertura, entre eles os jornalistas Otto Lara Resende, Moacyr Werneck de Castro e Edvaldo Pacote, para uma despedida emotiva e serena, ao perceber que era chegado o momento de seu ponto final. Até mesmo as providências para dar fim a seu corpo foram tomadas por ele que, pouco antes de morrer, foi ao crematório de Vila Alpina, em São Paulo, antecipar os trâmites para garantir que fosse respeitada sua vontade de ser cremado. Em segredo, o escritor também deixou o seguinte pedido ao filho Roberto: “Após a cremação do meu corpo, providencie que as cinzas sejam lançadas no Rio Itapemirim, de maneira discreta, sem cortejo e sem quaisquer cerimônias, por pouquíssimas pessoas da família e, de preferência, no local que só a sua tia Gracinha, minha irmã Anna Graça, tenha conhecimento. Nem o dia deve ser divulgado, tudo isso para evitar suscetibilidades de pessoas religiosas, amigos e parentes. Agradeça a quem pretenda qualquer disposição em contrário, por mais honrosa que seja”. Esse documento foi reproduzido na primorosa biografia Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do Ar, do jornalista Marco Antonio de Carvalho, que depois de dez anos de pesquisas e mais de 300 entrevistados, publicou o catatau de mais de 600 páginas – ainda disponível nas livrarias – ,em 2007, pela Editora Globo. A recomendação final ao filho Roberto demonstra que até mesmo em sua partida, como enalteceu o amigo Joel Silveira, Rubem Braga foi tão preciso como um matemático. |
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