Soa esdrúxulo afirmar, mas é possível concluir. A crise de abastecimento de água que assola o Estado de São Paulo trouxe um ponto positivo: tornou urgente a conscientização de que é preciso reinventar a gestão de nossos recursos hídricos. Quem afirma, em entrevista à Brasileiros, é Newton de Lima Azevedo do World Water Council (WWC), o Conselho Mundial da Água. A entidade não governamental defende o insumo vital em âmbito global, agrega cerca de 300 instituições de 70 países e foi criada na França, em 1996, na cidade de Marselha. No WWC, Azevedo exerce o papel de governador, como são chamados os representantes de cada uma das nações filiadas. A entidade também é presidida, desde 2013 e até 2017, por outro brasileiro, o engenheiro civil Benedito Braga, acadêmico da USP, com décadas de atuação nas questões relativas à defesa da água.
Azevedo também é vice-presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB) e está na linha de frente de um compromisso firmado pelo Brasil em fevereiro último: sediar em 2018, na capital federal, Brasília, o 8o Fórum Mundial da Água. A realização do evento no Brasil é providencial. Converge com a intenção do WWC de ampliar suas políticas globais, pois essa é a primeira ocasião em que o fórum será realizado em um país do Hemisfério Sul (a 7a edição acontecerá na Coreia do Sul, em abril de 2015), e permitirá o aprofundamento de soluções para o enorme déficit na América Latina.
Somente no que tange às demandas de saneamento básico do continente, mais de 300 milhões de cidadãos não têm esgoto tratado, sendo que um terço deles vive no Brasil. Em nosso território, além dos dejetos orgânicos e químicos, que contaminam lagos, rios e oceano, ainda há estados da Federação, como o Piauí, que desperdiçam até 60% da água potável tratada pela precariedade da rede de distribuição. Mas a questão do abastecimento para o consumidor comum, que demanda 10% da água tratada, segundo o WWC, é só a ponta do iceberg de uma gestão irresponsável intimamente ligada ao poder privado. Setenta por cento da água potável do País tem uso indiscriminado no agronegócio. Outros 20% destinam-se à indústria, que começa a ensaiar mudanças de hábitos, desde que passou a ser penalizada com multas severas. Como veremos a seguir, é possível ser otimista, mas ainda há muito a ser feito para resgatarmos a água perdida.
Brasileiros – Como se deu a escolha do Brasil para sediar o 8o Fórum Mundial da Água?
Newton de Lima Azevedo – O argumento mais forte que defendemos para trazer o fórum ao Brasil foi: “Se o conselho quer realmente ser tratado como Conselho Mundial da Água, tem que ser, de fato, mundial”, pois esse será o primeiro fórum no Hemisfério Sul. Havia nove concorrentes e, no final, sobraram dois: o Brasil, com sede em Brasília, e a Dinamarca, com sede em Copenhague. E é bem difícil comparar Copenhague com Brasília, pois são cidades com realidades totalmente diferentes. Por aqui, ainda temos cem milhões de brasileiros sem acesso a esgoto tratado. E esse chamamento de trazer o fórum para a América do Sul foi estratégico, já que em todo o continente há 300 milhões de pessoas sem saneamento básico. Cem milhões aqui e outros 200 nos outros 12 países. Com todo o respeito a Copenhague, lá se discute o terceiro derivado do crédito de carbono, mas aqui ainda temos cocô indo para os rios, os lagos e o mar. No Brasil água ainda é um “bicho” indomado. Fomos para a votação aberta e tivemos 23 dos 35 votos.
Em 2018, haverá um novo pleito presidencial. Nos próximos quatro anos, até a realização do fórum, que medidas devem ser cobradas do presidente que será eleito em 2014?
Quem está assinando esse contrato com o WWC é a cidade de Brasília, com o aval do governo federal, por meio do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério do Meio Ambiente. Assinaremos o contrato em 15 de setembro próximo e pretendemos blindar o evento de qualquer conotação política. Para mantermos essa chama acesa, há uma ação fundamental, que também dependerá do apoio governamental: estamos fazendo um projeto que começará a ser implantado imediatamente após o próximo fórum, que acontecerá na Coreia do Sul, em 2015. Um programa que se estenderá do final do próximo ano até seis meses após o fórum do Brasil, em 2018, quando entregaremos todos os relatórios e encaminhamentos para o país sucessor. Pretendemos “irrigar” discussões em nossa sociedade e precisamos do apoio da imprensa para conscientizar a opinião pública.
Independentemente do fórum em 2018, o Brasil já exerce o papel de protagonista dessas questões na América Latina?
Sim. O Brasil tem uma legislação forte e os modelos de negócio existem. A questão das Parcerias Público-Privadas (PPPs) ainda é alvo de tabus, mas é inegável que elas também evoluíram. É importante dizer que o WWC não tem nenhuma vertente ideológica. Ele é pragmático, assim como a questão da água, que é bem objetiva. Um exemplo: para universalizar o acesso a esgoto e água potável no Brasil em 30 anos, precisamos investir R$ 20 bi por ano. Com todo o esforço que o governo federal tem feito, chegamos a R$ 9 bi. Então, das duas uma: ou universalizaremos esses serviços em 50 ou 60 anos, ou teremos de criar um ambiente jurídico-institucional que faça existir agências reguladoras e atrair aporte financeiro. A questão é que, no Brasil, para a iniciativa privada, os serviços ligados à água concorrem com outras áreas de infraestrutura. Daí o investidor pensa: “Concessão de rodovias é um puta negócio! E não é que a energia é ainda melhor?!”. Até o cara pensar que saneamento é legal, demora… Mas a questão é que não dá mais para ficar nessa. Temos de rever o que significa ser “legal”. O saneamento tem restrição da participação privada porque ainda há um discurso babaca, em minha opinião, de dizer que água é direito do cidadão e dever do Estado, mas aí o cara morre de sede ao lado da plaquinha em que isso está escrito.
E como podem ser integradas as ações do Estado com a iniciativa privada?
Nos últimos dez anos, houve evolução das PPPs, mas o setor de recursos hídricos pode e deve amadurecer ainda mais. É preciso melhorar as gestões integradas, pois temos um arcabouço jurídico de razoável para bom. É preciso que a sociedade também se conscientize e cobre essas ações. No caso de São Paulo, é terrível dizer isso, mas a crise colaborou para a penetração da discussão na sociedade. Há pesquisas que dizem que a falta de água, claro, é problema dos que mais sensibilizam o brasileiro. Já com relação ao esgoto, o cidadão não tem a menor ideia do problema que enfrentamos e não quer saber. Ele aperta a descarga e está pouco se importando se aquilo caiu no colo do vizinho da rua de trás. São esses conceitos que a gente quer bater de frente, porque temos água num nível razoável de abastecimento e qualidade. Já o esgoto é essa vergonha. Inadmissível pensar que, em um País que é a sétima potencia mundial, o cocô das pessoas vai direto para o rio ou para o mar.
E por que isso ainda é tolerado?
No Brasil, o saneamento é tratado como o primo pobre da infraestrutura. Mas se não temos esgoto, de quem é a culpa? Costumo dizer que é como no casamento, se a relação não vai bem, nunca existe culpa de um lado só. Então, há uma série de “culpas” e de “culpados”. A começar pelo problema cultural. O Brasil parece não ter mesmo a real dimensão do impacto desse descaso. Basta dizer que para cada real investido em saneamento básico podemos economizar quatro em saúde pública. Mas o problema mais sério é, sem dúvida, a atomização da responsabilidade. Veja o exemplo das telecomunicações, hoje em dia, temos mais celular do que pessoas no Brasil. Há pouco mais de 20 anos, ter uma linha telefônica por aqui era investimento. Não há dúvida de que quando você tem a concentração da regulação e do controle em âmbito federal é mais fácil ser eficaz. Agora, com relação ao saneamento, há uma confusão absurda, pois o responsável – último na hierarquia, mas o primeiro por ser o executor – é o prefeito. No Brasil, deve haver umas 300 cidades com prefeitos porretas, empenhados em levar saneamento básico à sua população, mas há também outras três mil nas quais o prefeito é o Toninho da Farmácia que tem outros mil problemas para lidar antes de querer fazer um plano municipal de saneamento. Não estou, com isso, dizendo que temos de fazer uma espécie de “Sanebras”, mas a dificuldade é não ter essa gestão integrada entre Federação, Estados e Municípios.
Hoje, qual é a realidade de nossas estatais de saneamento?
Temos, hoje, 26 empresas estatais de saneamento básico. Dessas, 20 estão quebradas e têm a despesa maior do que a receita. Ou seja, se não há dinheiro nem para sobreviver, como é que terá para investir? O pior é que existem programas do governo federal para ajudar a revitalizar essas empresas com apoio da iniciativa privada, mas elas simplesmente não se movimentam. Embora, do ponto de vista constitucional, o governo federal não tenha ingerência para falar com esses Estados, ele teria o direito moral de chamar o governador e o presidente de cada uma dessas companhias para uma conversa franca. Afinal, essas 20 empresas são responsáveis por 70% dos serviços prestados para a população brasileira. Daí, você chama o cara e diz: “Ótimo que você veio até aqui. Não tenho nenhuma ingerência sobre seu Estado, mas ofereço a você um cardápio de três ou quatro soluções para revitalizar sua companhia de saneamento. Caso contrário, não vamos atingir a meta de, até 2030, universalizar o saneamento básico e a água potável no Brasil”. Em última instância, o cara tem o direito constitucional de dizer: “Não quero nenhuma das três alternativas. Vou voltar para minha cidade e continuar naquela pindaíba”. O problema é essa diluição e atomização das responsabilidades.
Como o senhor interpreta a crise em São Paulo?
Como disse antes, não dá para falar de universalização de água e esgoto, se não falarmos de todo o resto. Setenta por cento da água vai para o agronegócio, 20% para a indústria e só 10% para o abastecimento da população. Então, não adianta eu ficar aqui dando cabeçada com o consumidor comum, se a indústria estiver gastando água loucamente e o agronegócio, com a irrigação e a contaminação dos lençóis por agrotóxicos, estiver destruindo tudo por aí. Mas começam a surgir instrumentos legais que estão fazendo repensar essas práticas. A indústria, por imposição da Agência Nacional de Águas (ANA), começa a entender o conceito do poluidor pagador. O industrial passou a pagar caro quando devolve a água poluída para o meio ambiente, e esse dinheiro é revertido em investimentos para a bacia hídrica. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) estão começando a ter um diálogo com o WWC.
No caso do agronegócio, além do consumo de mais de dois terços do total de água potável, ainda há a questão da intoxicação dos lençóis por agrotóxicos…
A CNA está começando a dialogar com o WWC, mas a questão é que o agronegócio é um setor gigante, que sustenta milhões de empregos no País. Além de ser um dos pilares da nossa economia, há nele quem insista no seguinte discurso: “Ou gastamos água para colocar o alimento na mesa ou não teremos alimento”. Uma visão um tanto maniqueísta. Se você for a países como Israel concluirá que há grandes avanços na questão do reúso para a irrigação agrícola – que lá é feita com o menor gasto possível de água potável. Ou seja, se a gente não se movimentar para pensar a água em todos os setores, jamais resolveremos o problema. E o maior problema de gestão hoje é a perda por ineficiência. Das 20 companhias que estão quebradas, algumas como a Agespisa, do Piauí, perdem até 60% da água tratada antes mesmo que ela chegue à população. É preciso ter gestão eficiente, mas, para tal, é preciso ter agências reguladoras que cobrem essa eficácia. A indústria começou a mudar de postura, pois a coisa passou a doer no bolso, e ela teve de rever seus processos. Os movimentos estão aí, mais velozes do que antes, mas não tão rápidos quanto necessitamos. São Paulo, hoje, não tem mesmo o que fazer, a não ser economizar água e acender algumas velas para São Pedro, porque esses projetos tomam planejamento e tempo de execução. Pesquisas de 2002 já alertavam para o que está acontecendo em São Paulo, e não dá para deixar uma metrópole dessa dimensão a mercê de São Pedro.
Até que o Brasil atinja a meta de saneamento e água potável para todos, prevista para 2030, não corremos o risco de enfrentar outras tantas crises de abastecimento?
Tem um pouco de futurologia nisso tudo, mas uma coisa é fato: quanto mais houver consciência e quanto mais veloz essa consciência for incorporada a nossa sociedade, haverá menos chance de que isso aconteça. Agora, se continuarmos do jeito que estamos, podemos nos preparar para uma crise atrás da outra. Mas sou otimista e sempre vejo o copo meio cheio. Em São Paulo, a população tem dado uma boa resposta à crise e o povo brasileiro é porreta, a hora que entende, a coisa vai. Claro, ele não entendeu ainda o problema do esgoto, mas conversas como essa são cada vez mais importantes. A sociedade precisa ter acesso a essas informações numa linguagem mais palatável para mudar seus hábitos e cobrar ações.
Ironicamente, o Brasil tem reservas subterrâneas de grande magnitude, como o Aquífero Guarani. Por que esses recursos ainda não são explorados? É possível prever quando isso acontecerá?
Existem planos para o Guarani, mas não dá para precisar quando essa água chegará até nós. O grande problema é a falta de vontade política e de consciência da real importância da água. Quando exportamos carne, também exportamos a água que foi utilizada no processo. A água transita por tudo e tem enorme valor econômico. Água é PIB. Gera e faz perder emprego. Melhora ou piora a saúde do cidadão. Há vários países pequenos em que o esgoto é tratado a ponto de torná-lo água potável. Os caras bebem a água que vem do esgoto, felizes da vida, pois ela é inclusive mais limpa do que a nossa. Há também tecnologias como a dessalinização e temos uma enorme costa litorânea. Recursos não faltam. O que falta é capacidade de empreender. Agora, se a maioria das nossas empresas de saneamento não tem dinheiro nem para trocar hidrômetros, como é que eu vou dizer a elas para fazer uma estação de reúso com membrana ultrafiltrante japonesa?
Apesar da crise em São Paulo e de todos esses problemas, sua experiência permite ao senhor sustentar uma postura otimista?
Sou otimista, assim como outras pessoas que, há mais de 20 anos, começaram a trilhar esse caminho. Em 1995, atuei em uma das primeiras concessões privadas para tratamento de esgoto, na cidade de Limeira, interior de São Paulo. Muita gente foi contra. Tomamos tiros de todos os lados. Passados 20 anos, esqueceram que havia ali uma gestão da iniciativa privada. Hoje, a cidade tem 100% de água potável e 100% de esgoto tratado. A perda é de somente 16% e há 98% de aprovação da população. Além disso, há na cidade menos de 1% de inadimplência. O cidadão paga porque está contente e satisfeito com o serviço. É preciso perceber que o pior dos mundos é: a água mais cara é aquela que não existe.
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