O ritual, embora bem conhecido por seus dois participantes, nunca parecia envelhecer na medida em que os anos progrediam. No final de cada tarde, quando o pôr-do-sol tropical preguiçosamente começava a inibir as brincadeiras de rua da criançada, eu não podia esperar pelo momento em que, sempre em silêncio, Lygia caminharia graciosamente em direção ao seu esconderijo favorito da sala de estar para se transformar na minha cúmplice secreta. Ela tinha certeza de que eu nunca me atrasaria para o nosso recital diário.
E como estava certa. Mais do que nada nesse mundo, todos os dias, quando eu cruzava o batente da porta da frente, o que eu realmente queria era testemunhar, do meu lugar cativo na plateia, os passos decididos e o rastro de perfume de rosas que ela deixava ao caminhar elegantemente rumo ao assento do seu modesto piano de caixa, que a havia acompanhado fielmente, por todos os momentos felizes e não tão felizes da sua vida.
Lygia Maria Rocha Leão Laporta sempre fora uma mulher muito bela e charmosa e, mesmo que a velhice lhe tivesse tingido de branco uma única mecha dos seus imaculados cabelos negros, os anos não haviam diminuído em nada o brilho apaixonado de vida que emanava dos seus olhos verdes mediterrâneos. Suas mãos, embora delicadas, carregavam em si o propósito e a sabedoria de alguém que por muitas décadas tinha explorado as infinitas combinações possíveis dos movimentos precisos, cada um deles cuidadosamente criados e ensaiados obsessivamente, primeiro em sua mente e, depois, por seus dedos ágeis, com o propósito único de traduzir uma longa sequência de notas musicais, misturadas com um grande espectro de emoções e memórias, na expressão pessoal de uma música composta pelo cérebro de algum desconhecido, séculos atrás.
Ouvir e tocar música, essa era parte da rotina da vida de Lygia depois que ela se aposentara. O resto do seu tempo era devotado a aprender tudo e qualquer coisa que ela pudesse absorver no tempo tão fugaz que define uma vida. Lygia sabia muito bem quão precioso é cada minuto dessa nossa existência mortal. Aos 38 anos, depois de perder o amor da sua vida, seu companheiro Vicente Laporta, para um tumor cerebral, Lygia teve de assumir toda a responsabilidade de prover toda a sua família, como funcionária pública da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Lygia ainda conseguiu manter vivo, por quase meio século, o sonho mais precioso de Vicente: uma escola comercial técnica criada por ele em São Paulo, em 1943, para oferecer a estudantes humildes, que não podiam ter acesso às poucas universidades existentes no Brasil daqueles dias, oportunidades de assegurar melhores empregos e uma vida melhor por meio de uma educação de qualidade. Lygia manteve essa chama acesa pelo maior tempo possível, talvez à espera de alguém que recebesse de suas mãos a incumbência de dar continuidade a essa missão de vida.
Quando ela se aposentou no meio da década de 1960, eu me transformei em seu único aluno e discípulo, parte de uma escola informal que seguia a filosofia de ensino professada por Vicente de maneira muito peculiar. Durante toda a minha infância, Lygia foi a minha melhor amiga, minha professora mais próxima, meu primeiro verdadeiro amor, a pessoa em quem eu podia confiar incondicionalmente. O primeiro museu que eu visitei foi o do Ipiranga, no dia de primavera de 1972, no qual o Brasil celebrou o sesquicentenário da sua independência de Portugal. A primeira ópera a que eu assisti foi La Bohème. A primeira vez que admirei emocionado às plácidas e preguiçosas ondas do Oceano Atlântico foi a beira-mar da cidade portuária de Santos. Em cada um desses eventos inesquecíveis, foi a mão de Lygia que me levou a um mundo novo, cheio de aventuras, mágica e pessoas diferentes. Mas nada disso se comparava às viagens que fazíamos juntos, dentro do seu pequeno escritório no segundo andar da sua casa. Lá, nós viajávamos para lugares muito além dos limites da minha vida cotidiana, sempre na direção onde apenas gente como o Capitão Kirk, Dr. Spock, a família Robinson, o Dr. Zachary Smith e seu fiel robô ousavam se aventurar. No modesto ateliê de Lygia, eu aprendi como o homem aprendeu a voar e, não satisfeito, como ele decidiu, da forma como Júlio Verne imaginou, explorar o vasto vazio que nós chamamos cosmos.
No momento em que Lygia tomava seu assento em frente daquele piano envelhecido, mas ainda capaz de emocionar uma audiência, sabendo que eu observava cada um dos seus gestos, ela parecia tomar todas as precauções na elaboração de cada um de seus movimentos, particularmente aqueles das suas mãos, como se ela quisesse que cada um deles fosse impresso nas minhas memórias por toda uma vida. Indubitavelmente, ela atingiu seu propósito, pois mesmo agora, quase meio século depois, eu ainda me recordo vivamente da maneira como ela deslizava aquelas duas mãos de menina que, como dois imponentes cisnes brancos, percorriam aquelas teclas com movimentos delicados, mas sempre determinados. Embora a seleção musical mudasse dia a dia, Lygia frequentemente devotava os primeiros instantes do seu concerto para expressar a sua devoção ao ilustre compositor polonês, Frédéric Chopin. Mesmo hoje, 40 anos depois da tarde em que Lygia executou a sua última sinfonia, eu não consigo ouvir as primeiras notas da Polonaise Héroïque de Chopin sem me sentir transportado de volta àqueles começos de noite, quando eu descobri que, fora a memória, a habilidade de aprender é o maior presente concedido para cada um de nós pelo nosso cérebro de primata. Infelizmente, a música de Chopin também estará para sempre associada na minha mente ao meu primeiro encontro inesperado e chocante com os efeitos devastadores e irremediáveis que uma moléstia neurológica insidiosa, progredindo em segredo, pode ter na vida de alguém. Pois foi nessa mesma sala de estar que Lygia inexplicavelmente fitou em silêncio o teclado do seu piano por alguns minutos, até se virar para mim e, sem mover suas mãos aptas, mas agora silenciosas, deixar dois rios de lágrimas brotarem de seus olhos confusos para me dizer que não era mais capaz de lembrar a sequência de movimentos que repetira diariamente, pela maior parte da sua vida consciente. Subitamente, todas as memórias de como produzir a música que ela tanto amava tinham abandonado a sua mente.
Sem que ninguém soubesse, Lygia vinha sofrendo, pelos últimos anos, de uma série de pequenos acidentes vasculares corticais que gradualmente e sem misericórdia destruíram boa parte das camadas superiores de seu córtex frontal e parietal. Essa epopeia de minúsculos derrames corticais resultou de uma miríade de coágulos sanguíneos – conhecidos pelo termo médico, êmbolo – que literalmente bloquearam o fluxo de sangue através de pequenos vasos do seu cérebro. Esses êmbolos não produziram sintomas claros, até que a destruição do tecido cerebral atingiu um nível crítico, perto do momento que os concertos vespertinos de Lygia chegaram ao fim. Após esse episódio, por anos Lygia experimentou uma desagregação gradual, mas inexorável de sua capacidade motora fina e de memória, contribuindo para episódios ocasionais de depressão e de conscientização, para o desespero de todos nós, além dela, de que a pessoa que um dia fora Lygia não existia mais.
Enquanto as memórias de toda uma vida, bem como os desejos, os amores, os planos e sonhos, lenta mas enfaticamente, evanesciam-se, primeiro do seu cérebro e depois da sua mente. Lygia começou a perder o controle dos delicados filamentos de contato consciente que compartilhava com todos aqueles que participavam tão afetivamente da sua vida e do mundo ao seu redor. Na última vez que nós dois nos abraçamos, na noite anterior da minha partida rumo a Filadélfia, em 1989, eu senti que ela não mais me reconhecia.
Na nossa última conversa telefônica, depois de alguns minutos de conversa, ela repentinamente se deu conta que era o seu fiel aluno que falava do outro lado da linha. Endireitou a voz e quase gritando me disse:
– Você sabe que hora é essa, menino? Você está atrasado novamente, seu maroto!
– Atrasado para que, vó Lygia?
Eu simplesmente não podia compreender o que ela queria dizer nesse breve lapso de consciência.
– Para Chopin, meu filho. Para Chopin!
*Paulistano e palmeirense de nascença, é professor titular de Neurobiologia e codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra em Natal (RN). Faz parte do Conselho Editorial da Brasileiros.
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