Em busca do tesouro perdido

18 de julho de 1969. Um grupo de pirralhos entre 16 e 20 anos, já curtidos, porém, na clandestinidade pelas agruras da luta armada contra a ditadura militar, perpetra uma espetacular ação para arrecadar fundos em prol de uma organização guerrilheira.

Acabou sendo a mais lucrativa da curta história da guerrilha urbana no Brasil. No bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, penetraram sorrateiramente na mansão do “doutor Rui”, aliás, Ana Capriglione, amante do recém-falecido governador de São Paulo Adhemar de Barros, e carregaram consigo um cofre de quase 300 kg. Dentro dele, US$ 2,5 milhões. Em valor de hoje, 50 milhões de reais.

Da logística da operação, mas só da logística, participa a “companheira Wanda”, codinome de Dilma Vana Rousseff, então dirigente da VAR-Palmares e hoje presidente da República Federativa do Brasil. Abastecida por lendas e até mesmo por dossiês fajutos (como a falsa ficha criminal de Dilma que a Folha de S. Paulo publicou, não por acaso para apimentar uma campanha presidencial na qual o matutino dos irmãos Frias torcia para o adversário dela), a saga da guerrilheira Wanda extrapola, quando não atropela, as versões e a verdade. Ela já foi acusada de mortes que nunca cometeu e de violências que nunca produziu.

O Cofre do Adhemar, que está sendo lançado pela Editora Jaboticaba, recupera o que de fato aconteceu, narrativa plena, rica, documentada, graças ao depoimento minucioso de um dos protagonistas da ação, Antonio Roberto Espinosa, e ao apurado faro jornalístico de Alex Solnik, repórter da Brasileiros, que assina o livro. O subtítulo diz tudo: “A iniciação política de Dilma Rousseff e outros segredos da luta armada“. Não por acaso, os direitos de filmagem da obra já foram adquiridos pelo diretor André Klotzel.

O livro de Solnik vai muito além do episódio do cofre; é o retrato de uma geração de meninotes e meninotas que se jogaram em uma trajetória de risco extremo, movidos pelo projeto generoso, às vezes confuso, com tinturas de utopia de criar um país democrático, sem censura, sem tortura, de igualdade e de justiça. Brasileiros publica aqui, com exclusividade, trechos de O Cofre do Adhemar.

CAPÍTULO 3

O maçarico
O momento que se segue ao furto do cofre

Enfático, Nóbrega afirma que Darcy não veio com eles na Rural Willys de Santa Teresa até Jacarepaguá e, sim, no Aero Willys, com Sônia Lafoz. Na Rural foram ele, Nóbrega, Wellington e Juarez. “Ele era cobertura. Não sei por que diz esse tipo de coisa!”

Mas com voz pausada, quase escandindo as sílabas, Darcy sustenta que foi na Rural, sim, e que, durante o trajeto Santa Teresa-Jacarepaguá, num semáforo, foram abordados por um guarda de trânsito:

– Estão levando um defunto aí? – brincou ele, apontando com a cabeça o carro arriado.
– Não, é um cofre que acabamos de roubar, quer ver? – respondeu Darcy, sem pensar muito no que dizia…
– Não, façam bom proveito – devolveu o guarda.
Um instante depois, na cabine da Rural Willys, Juarez, conhecido pela elegância e educação mineira, passou-lhe uma descompostura em alto estilo:
– Ficou louco? Brincar com fogo numa hora dessa!
– Se eu ficasse quieto podia ser pior…
Para Nóbrega, o diálogo do guarda de trânsito com Darcy nunca ocorreu.
A Rural engolia as luminosas avenidas, tudo parecia sorrir, como na canção. Vento do mar no meu rosto/e o sol a queimar, queimar/calçadas cheias de gente/a passar e a me ver passar…
Juarez não via a hora de chegar ao destino.
– Resolvemos finalmente o nosso problema – disse ele -, acabou a história do “banco nosso de cada dia”. Mal sabia ele que os problemas só estavam começando.
No Aero Willys, o rádio apresentava o sucesso do momento: Moro num país tropical/abençoado por Deus/e bonito por natureza, na voz de Wilson Simonal.
– Aumenta o som – Sônia pediu a Reinaldo.
Sônia confiava muito em Juarez, a quem seguia – em todos os sentidos – sem medo:
“Ele era uma pessoa muito querida, muito simples, mineiro bom, uma pessoa muito doce, não era nada agressivo. Muito inteligente, o que eu posso falar? Alto, magro, cabelo escuro… Claro, uma pessoa normal…”

O aparelho era uma casa humilde, com um metro e meio de frente e uma pequena garagem. O cofre era quase maior que a casa. Foi posto pra dentro com a ajuda de três militantes que já os aguardavam ansiosamente. A ansiedade, aliás, era geral. Até então, eles tinham tirado de Santa Teresa uma geringonça de uns duzentos ou trezentos quilos. Não sabiam 100% o que havia dentro. Sabiam – ou, melhor, Juarez sabia – o que um secundarista Gustavo contou: haveria no cofre mais de dois milhões de dólares. E, possivelmente, documentos comprometedores envolvendo Adhemar de Barros.

Diante do cofre, o metalúrgico Jesus Paredes Soto colocou a máscara. Ele nunca tinha feito isso em sua vida. Então recordou as aulas de seu amigo Delci Fensterseifer em Porto Alegre.

Nem era para ele estar ali, e sim Delci. Ao menos foi essa a primeira decisão de Carlos Franklin Araújo, o “Max”. Depois ele mudou de ideia:

– Você fica aqui no Sul, Jesus vai ao Rio, e você o ensina.
Delci ensinou:
– O maçarico se acende com oxigênio e acetileno.
– Não basta o fósforo?
– Não! Tem que ter os gases, tem que saber regular o bico…
– Tem que levar um tubo de oxigênio?
– Lógico, lógico. E outro de acetileno.
– Então, não é tão fácil assim…
– Se fosse fácil… Tem muito intelectual lá que não sabe fazer o negócio.
– E como faz pra acender o maçarico?
– Tem que saber regular a chama, colocar a chama no corte, tem que saber quando está aquecido o suficiente para acionar o outro gás, senão não corta…
– Leva muito tempo?
– Não… com fogo não se brinca, onde você botar o fogo ele vai cortando…
– Coisa de dez, quinze minutos…?
– Deve ser…

Na hora, foi tudo improvisado, nem Delci sabe como é que deu certo.

Nóbrega viu tudo bem de perto: “O Jesus tirou com o maçarico a parte onde fica o segredo, enquanto nós jogávamos água para não pegar fogo no conteúdo do cofre. Então abrimos a porta, o dinheiro estava mergulhado na água”.

A cobertura repetiu o modelo de Santa Teresa: Sônia e Reinaldo “namorando” no carro, Darcy na calçada vigiando. Ele só abandonou o posto quando ouviu muito barulho vindo do aparelho. Era a comemoração.

– Psiu! Querem pôr tudo a perder?
– Darcy, por favor, já que você está aqui, traz meia dúzia de cervejas! – pediu Juarez.
– Não, aqui não tem cerveja. Você é o meu chefe lá fora, mas aqui quem cuida da sua segurança sou eu. Isso aqui não é uma festa.
– Tem razão, ainda não é hora de cerveja. Vamos secar as notas molhadas.

Sônia e Reinaldo também entraram no aparelho. Sônia viu tudo: “As notas foram penduradas para secar, eram notas de cem dólares, era muita coisa, foi secando aos poucos”.

Nóbrega acompanhou toda a contagem do dinheiro, contou junto, nota por nota: “No total, eram exatamente US$ 2,596 milhões”.

“Nem todas as notas se molharam. Havia muitos pacotes embrulhados em plástico. Por isso não foi uma operação tão demorada assim”, diz Darcy. “Em questão de duas horas ,todas as notas ficaram secas. O papel-moeda era praticamente impermeável, ficou úmido superficialmente. Quase todas as notas eram de cem dólares, mas também vi notas menores, de um dólar.”

Nóbrega: “Cada um ficou com uma nota de 1 dólar assinada pelos demais, de lembrança. Deixei a minha na mão de um primo que um dia se apavorou e se livrou dela”.
Sônia: “Dos varais eu me lembro bem, as notas ficaram penduradas em varais, mas ficavam também no chão”.

Depois de tudo seco, contado e empacotado, o cofre foi cortado em pedaços pelo maçarico do Jesus. Reinaldo foi designado para se livrar dos destroços.

No fim da tarde estava tudo terminado. Pegaram os malotes com o dinheiro e abandonaram o aparelho. Em seguida, Nóbrega, Juarez e Wellington levaram os malotes até uma casa na Avenida Suburbana. Nóbrega não sabe de quem era; ele ficou no carro o tempo todo.

No Aero Willys, a caminho do aparelho, Sônia checou a cotação do dólar no jornal: 4,10 cruzeiros novos. Viu, em outra página, o custo de um trecho do Metrô de São Paulo: quarenta milhões de cruzeiros novos. Eles tinham acabado de expropriar dez milhões de cruzeiros novos, ou o equivalente a ¼ de um trecho do Metrô de São Paulo. Numa ação normal de um banco, eles arrecadavam cinquenta mil cruzeiros. Agora tinham arrecadado duzentas vezes isso. A ação valeu por duzentas.

O seu dia seguinte seria como os demais: cobrir ponto… fazer levantamento de ação… Mas nada, de fato, voltaria a ser como era.

CAPÍTULO 41

Abençoados por Lênin
Este capítulo tem como cenário o congresso da VAR-Palmares, em setembro de 1969, no qual Dilma confronta o capitão Lamarca

Setembro de 1969
– Aquilo não foi um tiro? O que foi isso? – preocupou-se “Max”.
– E não foi o primeiro. Deve ter sido como o meu. Acidental. Meu Colt disparou enquanto eu brincava com ele – admitiu Espinosa.
– Brincando?
– O que que eu vou fazer? Sou brasileiro…
– Tomara que ninguém tenha ouvido.

Estava na cara que isso ia acontecer. Muita gente, muitas armas, e muita ansiedade davam nisso. Mas nem todos estavam tensos. Dilma e “Breno” passaram vários dias à parte dos outros, tramando alguma coisa. Podiam ser vistos rindo juntos, ninguém sabia do quê.

Talvez para desanuviar o clima exageradamente tenso, talvez para mostrar que não tinha medo de cara feia – ninguém podia chamar Lamarca de bonitão -, Dilma decidiu ilustrar a sua exposição sobre estratégia de forma diferente:

– O “Breno” e eu fizemos uma composição, ou melhor, uma paródia da música de maior sucesso no momento. Ela diz o que pensamos do Brasil.
Batucando na sua carteira, Dilma e “Breno” cantaram em dupla, sem passar vergonha, afinados e sem tropeçar ao ritmo do sucesso País Tropical:
– Este é um congresso tropical/abençoado por Lêêêênin e confuso por natureza…/Em fevereiro/em fevereiro tem capitão …/tem Juvenal…
Parecia uma provocação. E era. Mas a reação geral foi gargalhada. Até Lamarca, o “capitão” da paródia, aderiu às risadas. Juarez (“Juvenal”) não conseguia parar de rir.
– Abençoados por Lênin! – repetiu Espinosa.
Vigésimo sexto dia de congresso. À noite, chegou “Mário Japa”, de surpresa. Mal deu boa noite a todos, enquanto Espinosa e “Max” liam, revezando-se, as vinte páginas de seu documento. Eles propunham a formação de grupos de trabalhadores chamados “união operária”, uma espécie de sindicato clandestino com a missão de minar os sindicatos oficiais, controlados pelo regime militar.
– A massa operária no Brasil sempre teve fascínio pelo secreto. A união operária terá um decálogo, uma espécie de dez mandamentos que o participante terá de jurar cumprir… São dez segredos que ele não poderá revelar jamais.
Terminada a leitura, Espinosa consultou o relógio. Dez horas.
– Vamos discutir amanhã cedo, propôs.
Retorcendo a boca, “Mário Japa”, que não tinha nada a ver com aquele documento, pediu uma questão de ordem. Sua voz metálica, inconfundível:
– Eu queria saber o seguinte: onde é que vocês vão arrumar gente pra fazer essa “união operária”? Colocar operário em todos os centros industriais do país? Pra mim está claro que é por isso que a gente não vai pro campo, que a gente não faz a guerrilha: tem gente que só quer fazer movimento de massinha.

» O Cofre do Adhemar Editora Jaboticaba, 272 páginas


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