A celebrada volta dos painéis Guerra e Paz ao Brasil é, sobretudo, o ápice de uma emocionante história de luta pela memória do gênio de Brodósqui. Luta que nasceu da inquietude de seu filho, João Candido, perante a terrível constatação do escritor Antonio Callado, grande amigo e biógrafo de Portinari, que depôs em entrevista a Ralph Camargo, em 1977: “Segregado em coleções particulares e salas de bancos, Candinho vai se tornando invisível. Vai continuar desmembrado nosso maior pintor, como o Tiradentes que pintou?”. Contestar a triste profecia de Callado, por intermédio do Projeto Portinari, tornou-se o grande desafio da vida de João Candido. Em entrevista à revista IstoÉ Gente!, em 2003, ano do centenário do nascimento de Portinari, ele revelou ao repórter Fábio Farah que, aos 18 anos, era avesso ao ambiente artístico vivido ao lado do pai: “Achava chatíssimo. Como lamentei mais tarde não ter aproveitado aquilo!”. O “aquilo” a que João se referiu era muito mais que o cumprimento de protocolos sociais, era a própria obra do pai e seu significado bruto de identidade de um País que ele também amava, mas que abandonou para estudar matemática na França e fazer doutorado de Engenharia de Telecomunicações nos Estados Unidos. João vivia fugindo da sombra onipresente do pai, mas estaria fadado a, obsessivamente, reencontrar seus numerosos vultos e defender com todas as forças a magistral obra de Portinari: “Eu tinha um tio francês, Pierre, um grande professor de Matemática e Física. Ele me ajudou a aprender matemática quando eu tinha 12 anos e foi um pouco meu guru. Uma espécie de alternativa ao meu pai. Como bom francês, o Pierre só acreditava na França e me convenceu a estudar matemática por lá. Com 18 anos, fui interno de um daqueles liceus dantescos de Paris e, depois, passei no concurso da Escola Nacional de Telecomunicações. Eu me formei em engenharia e fui para os Estados Unidos, onde fiz doutorado no MIT, em Massachusetts. Recebi o convite da PUC do Rio para voltar ao Brasil, em 1966. Um período meio maluco, pois eu estava ao mesmo tempo desesperado por estar muito tempo sem vir ao Brasil, também estava sem rumo na minha própria vida. Recebi o convite de voltar para PUC e ajudar a criar o Departamento de Matemática. Mais de dez anos depois é que tive a ideia de fazer o Projeto Portinari e pedi uma licença sem vencimentos. Meus amigos diziam pasmados: ‘Você está completamente louco! Largar uma carreira como a sua na matemática para mergulhar em uma coisa absolutamente desconhecida e sem futuro!’. Eu realmente fui contra a opinião de todo mundo”.

Nostálgico de um País que não reconhecia, ele conta que o “chamado” para a missão de entregar as tais “cartas” deixadas pelo pai ao povo brasileiro veio de um museu dedicado ao artista-símbolo do povo holandês: “A gota d’água foi uma visita que eu fiz ao Museu Van Gogh, em 1978, que me deu um baque. Mas, se eu não contar os precedentes disso, não vai dar para entender. Voltei ao Brasil, e o País que amo e do qual morria de saudades estava tomado por militares. Vivi dez anos fora, sem ter amigos para reencontrar – meus amigos eram todos do meu tempo de futebol de praia, no Leme, sabe-se lá onde é que eles estavam! -, e também não tinha consciência política e histórica do momento que o País vivia. Estudava muito e nada mais. Lidava com alunos ligados à guerrilha e isso me emocionava muito, pois me deparei com um Brasil irreconhecível. O meu Brasil, de quando eu tinha saído, de uma identidade muito forte marcada em mim, praticamente não existia mais! Uma coisa de muita melancolia. Lembro-me de que, às vezes, parava o carro em uma rua deserta e ficava chorando de saudades desse Brasil que carregava em mim e que não via fora de mim. Lembro de um artigo do Celso Furtado no Estadão que o título era: Quem somos?. Era exatamente essa a questão. Cheguei ao Museu Van Gogh com essa carga toda que acabei de te passar e vi aquele prédio de quatro andares parecendo um formigueiro de gente. Crianças, velhos, pobres e ricos se acotovelando. Já conhecia o museu, tinha ido acompanhado de meu pai, quando eu era criança, e naquele momento parei e pensei: ‘O que é que essas pessoas estão procurando aqui? Estão vindo buscar a pintura, no sentido intelectual? Comparar estilos e pinceladas?’. Nada disso, eles estavam ali para ganhar uma injeção de identidade na veia. Eles saíam fortes dali. Tinham a identidade revelada de uma forma poética, através do olhar e do talento de um imenso artista nacional. Aí, veio a inevitável comparação: ‘E nós, no Brasil?’. Nós também tínhamos um pintor que fez isso, um pintor que pintou o seu povo, a sua terra e a sua alma. E onde é que ele estava? Em lugar nenhum!”.
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Em uma sala emprestada pelo amigo, professor e presidente da Fundação Rui Barbosa, Américo Jacobina Lacombe – descrita como “quase uma delegacia, dessas com escrivão, delegado e só” -, com móveis usados de jacarandá preto, doados pelo Itamaraty, João Candido fundou, em 1979, o Projeto Portinari. Ancorado, inicialmente, por documentos do pai e outros que herdou do acervo da própria mãe, Maria, entusiasta e devota memorialista da obra e da vida do marido, João encontrou grande acolhida de parceiros fundamentais para os grandes êxitos que alcançaria. A extinta companhia aérea Varig, por mais de dez anos subsidiou as viagens feitas pelo projeto, para mais de 20 países. A Rede Globo iniciou uma campanha de quatro anos, com exibições diárias de vinhetas pedindo informações que levassem a obras e documentos. Braço imprescindível dessa ação foi o apoio dos Correios, que dedicou ao projeto a Caixa Postal 500, de fácil memorização, para facilitar o fluxo de informações. A exemplo da Varig e do Itamaraty – este fundamental para as ações no exterior -, todos os parceiros fizeram de suas filiais espécies de sucursais do Projeto Portinari.

Os dias de Fundação Rui Barbosa foram breves. Já em 1980, João e equipe foram acolhidos definitivamente pela PUC, e as pesquisas e descobertas empenhadas por eles mostrariam facetas particulares do próprio País e de um rico período histórico: “Os documentos que encontramos começavam a falar mais da vida que da obra desse pintor, um homem que teve um papel dentro de sua geração, que ia muito além da pintura. O Clarival do Prado Valladares, um importante historiador de arte, costumava dizer que Portinari foi um polo de captação e irradiação das principais preocupações estéticas, artísticas, culturais, sociais e políticas do seu tempo. Estamos falando da mesma geração de Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Carlos Drummond de Andrade, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Jorge Amado e tantos outros. Uma geração brilhante. Ao levantar toda a documentação e cruzar esses documentos com as obras e entre si, construímos uma grande base de informações, capaz de iluminar o processo histórico, cultural e político brasileiro dos anos 1920 até 1960”.

Em 1980, a emissora carioca possibilitou ao Projeto Portinari outra rica experiência: a produção de um Globo Repórter dedicado ao pintor, dirigido por ninguém menos que Eduardo Coutinho, o maior documentarista do País. Coutinho foi tomado pela ideia de ignorar depoimentos previsíveis de intelectuais, artistas, críticos de arte e historiadores, e partiu com João e o cinegrafista Dib Luft à pequena Brodósqui, a terra natal de Portinari, no interior de São Paulo, imortalizada e tornada universal por seus pincéis e suas cores. “Logo que fizemos o primeiro encontro para discutir o programa, o Eduardo me disse, enfático: ‘Olha João, não vamos ficar no Rio entrevistando político, artista e intelectual, não. Vamos lá para Brodósqui, porque é lá que está a chave do mistério’. E que mistério era esse? O grande mistério de essa cidadezinha ser o berço de um menino que nasceu em condições de extrema humildade e se tornou o grande pintor Portinari. Tínhamos uma fotografia de meu pai, aos nove anos na escola – pouca gente sabe, mas ele estudou somente até a terceira série do primário -, um menino pobre, com 11 irmãos e todos eles trabalhavam nas fazendas de café. Decidimos ir para Brodósqui eu, o Coutinho, e um terceiro amigo, que também era um sujeito fantástico, o Dib Luft. Encontramos colegas de escola, retratados nessa foto, que na época já estavam com mais de 80 anos e fizeram relatos belíssimos. Esse é um momento divisor, pois foi justamente aí, quando meu pai tinha nove anos, que passou pela cidade um grupo de artistas itinerantes que vivia de decorar igrejinhas das cidades do interior e que chamou meu pai para pintar umas estrelinhas no teto da capela. Foi a primeira coisa relacionada à pintura que ele fez na vida. Encontramos outro velhinho que também fez esses trabalhos com meu pai, e ele foi categórico em afirmar que: ‘Doente para aprender arte, Candinho era o primeiro a chegar e não saía nem para almoçar’. Em dado momento, ele diz que também fazia de tudo para ajudar os artistas e que, para ele, não havia diferença entre pintura e escultura. Era tudo a mesma arte. Um depoimento incrível, pois ele responde o mistério apontado pelo Eduardo. Essa gente, apesar de pobre e muito humilde, tinha grande sensibilidade e inteligência. Meu avô, por exemplo, chegou em Brodósqui, formou um grupo de música, deu a ele o nome de Carlos Gomes, e o primeiro desenho que meu pai fez foi, justamente, um retrato do Carlos Gomes! Essa gente veio de um País com tradições seculares. Trouxe no sangue a sensibilidade artística italiana”.

A volumosa descoberta de documentos e o encontro de importantes fontes demandariam ao projeto a elaboração de um programa de história oral, amplamente influenciado pelo trabalho do CEPEDOC, da Fundação Getulio Vargas. Para a alegria de João e de seus pesquisadores, vestígios de um País construído por outros grandes homens, esquecidos na cortina de fumaça de nossa turbulenta história, surgiam entrelaçados à rica trajetória de vida de Portinari: “Encontramos pessoas incríveis, que tinham convivido com ele e que também tiveram extrema importância para o Brasil, mas que caíram no mais completo esquecimento, como o Celso Antônio, um grande escultor, que participou da aventura fantástica que foi a construção do prédio do antigo Ministério da Educação e Saúde, que hoje é o Palácio Gustavo Capanema (o mesmo local onde Portinari foi velado, em 1962, e onde Guerra e Paz foi restaurado, a partir de 2010). Uma riquíssima experiência interdisciplinar reunindo arquitetos, como Lucio Costa, Niemeyer e Reidy; paisagistas, como Burle Marx; pintores, como Portinari e Guignard; e escultores, como o Bruno Giorgi e o Celso Antônio (que encontramos, pobre e absolutamente esquecido, morando no subúrbio do Rio de Janeiro). Fizemos com ele o que deve ter sido sua última entrevista. Celso morreu dois meses depois e o depoimento dele foi emocionante”. As mais de três décadas de pesquisas, amparadas por ciência e tecnologia, renderam ao Projeto Portinari a impressionante marca de cinco mil obras localizadas e catalogadas, e mais de 30 mil documentos reunidos. Trabalho feito a duras penas, que custou até mesmo incursões policiais a favelas, em busca de falsários, mas que enriqueceu e que continua a enriquecer a ação que mais orgulha João Candido, o Programa Acesso, que procura levar ao máximo número de brasileiros as mensagens de paz e harmonia social tão caras a Portinari. Em 2003, ponto alto das comemorações do centenário de nascimento do pintor, João e sua equipe realizaram o que, até então, foi seu feito mais notável, a publicação do catálogo raisonné, a mais completa fonte de referência sobre a obra de um artista, algo planejado por ele desde os primeiros dias de projeto: “Já em 1978, estava anotado na minha cadernetinha, onde organizava as primeiras ideias. Por aqui, só os maiores especialistas tinham ideia do que era um catálogo raisonné. Não tínhamos experiência formada no Brasil sobre um trabalho dessa natureza. Esse é o primeiro catálogo raisonné ao sul do Equador, não só na América Latina”.

No texto em que apresenta o Projeto Guerra e Paz, João Candido recorre ao poeta alemão Rainer Maria Rilke, em Elegia de Duíno, para definir como se sente a cada vez que alcança seus êxitos: “Se o arcanjo que está por trás da estrela descesse apenas um passo em minha direção, meu coração explodiria”. A maior visita feita pelo arcanjo a João começou a ser ensaiada no final de 2007, quando ele soube que o prédio sede da ONU, em Nova York – outra grande aventura modernista, projetado por Le Corbusier, e um grupo de arquitetos que incluía Oscar Niemeyer -, entraria em ampla reforma e só reabriria em agosto de 2013. Estava perante a oportunidade única de sua vida de vislumbrar a volta de Guerra e Paz ao Brasil e sua itinerância pelo mundo. Os painéis foram doados, como um presente do Brasil, na inauguração da ONU, em 1957, em cerimônia na qual nem Portinari nem Niemeyer puderam participar, por conta do envolvimento de ambos com o Partido Comunista. A América vivia o auge da violenta paranoia McCarthista. Obcecado pela importância da obra, Portinari abreviou a própria vida para legar à humanidade a mensagem universal de Guerra e Paz. Gravemente intoxicado com a superexposição às tintas, ele teve uma hemorragia, em 1953, e foi proibido de pintar por seus médicos, “proibido de viver”, como definiu em uma entrevista após o diagnóstico letal. Ignorando todas as advertências, Portinari empenhou mais de quatro anos de estudos e nove ininterruptos meses para gestar os 280 m2 de Guerra e Paz. Morreria cinco anos depois, deixando uma obra sem precedentes. Um gigante espelho do País, estilhaçado em mais de cinco mil pedaços, como atesta João Candido: “Quando ele pinta o Brasil também está falando da guerra e da paz. Ele nunca pinta o Brasil sem paixão. Tem sempre o drama e a poesia, o lírico e o trágico, a fúria e a ternura. A todo momento em que pinta o Brasil, Portinari passa mensagens éticas, humanas e sociais, que chegam ao ápice em Guerra e Paz. Os painéis carregam uma mensagem que vai além do Brasil, transborda fronteiras e vai para a humanidade toda. A ida de Guerra e Paz a São Paulo causará grande impacto. Haverá elementos que não houve no Rio: um tempo maior de exposição e quase 200 estudos originais. Nem meu pai pode vê-los em seu conjunto, pois estiveram sempre espalhados em coleções particulares. Será um grande e emocionante evento. Depois, partiremos para a itinerância internacional, que vai começar em 2012, ano do cinquentenário da morte, e vai até 2013, quando a obra deve voltar para a ONU, e nós ainda nem tivemos tempo para pensar nisso. Nossa ficha ainda não caiu!”.


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