“Agradeço imensamente a todos que me elegeram ao Senado Italiano. Avanti!” Foi em português, com arremate italiano, a mensagem do arquiteto e urbanista Fausto Longo àqueles que apostaram em sua candidatura. Pouco depois de despachar a mensagem, Fausto arrumou as malas no amplo apartamento em que vivia a um quarteirão da Avenida Paulista, em São Paulo, e embarcou para Roma. Tomou posse na sexta-feira 15 de março, na bancada do Partido Democrático (PD), o herdeiro do Partido Comunista Italiano (PCI). Na sequência, teve uma amostra do que virá pela frente. Os italianos escolheram 315 senadores e 630 deputados, mas não deram hegemonia a nenhum partido ou coalizão. Como o Parlamento elege o primeiro-ministro e o presidente da República, o imbróglio está formado. Os dois primeiros dias de Fausto no Senado foram dedicados a uma eleição mais simples – a do presidente da Casa. Ainda assim, só depois de quatro escrutínios o ex-juiz Piero Grasso, famoso por combater a máfia, foi escolhido para o cargo. Grasso é da mesma coalizão de Fausto, o primeiro brasileiro a se tornar senatore com os votos de eleitores da América do Sul. Nascido há 60 anos em Amparo, ele mudou-se ainda menino para Piracicaba, ambas cidades do interior paulista. Chegou ao Palazzo Madama – a sede do Senado, construção do século 16 que abrigava em Roma a poderosa família Medici –, por conta da Lei Tremaglia. Aprovada em 2001, ela permite a italianos e descendentes elegerem e serem eleitos, mesmo vivendo em território estrangeiro. Mas a trajetória que levou Fausto ao Senado da Itália começou, na verdade, há mais de 120 anos.
Era setembro de 1892 quando o seu bisavô, Candido Longo, desembarcou aos 44 anos do navio Cittá di Genova no porto de Santos, com a mulher, Antonia, e cinco filhos. Eles eram de Saletto, uma comuna da região do Vêneto, na província de Pádua, que hoje tem cerca de 2,5 mil habitantes. “Vieram no porão do navio, atrás do sonho”, diz Fausto. Como os outros imigrantes desembarcados do Cittá di Genova, a família Longo subiu a serra de trem, rumo à Hospedaria de Imigrantes do Brás, o centro de recepção de estrangeiros na capital paulista pelo qual passaram mais de dois milhões de pessoas a partir de 1887. Cumpridas as formalidades de registro, Candido Longo foi encaminhado com a família para uma fazenda de café, na região de São Carlos (SP). “Na minha opinião, ele chegou ludibriado por um acordo espúrio entre D. Pedro II e Umberto I (rei da Itália), para substituir a mão de obra escrava”, afirma Fausto. “A propaganda em Roma dizia que o Brasil era o paraíso, que os imigrantes encontrariam terras férteis à vontade. Quando chegavam aqui, eles eram colocados para carpir nas fazendas de café.”
A sorte do bisavô de Fausto mudou graças à experiência adquirida em Saletto com o trabalho em mármore. Em São Carlos, onde ele começou a labutar na enxada, passava uma linha da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Ocorre que, quando chovia, as locomotivas não conseguiam transpor uma ponte da região, por causa da enxurrada. Candido Longo se propôs a resolver o problema, construindo uma cabeceira de granito para a ponte. Problema resolvido, ele foi convidado a trabalhar para a Mogiana em Amparo, onde, tempos depois, abriu a própria marmoraria. Como na Itália, esculpia imagens de santos para igrejas. Em sintonia com os costumes da época, também produzia esculturas para túmulos, em especial anjos.
[nggallery id=16154]
O filho caçula de Candido Longo, Santo Juliano, que havia desembarcado no Brasil com 7 anos, não demorou a seguir os passos do pai. Ainda em Amparo, casou-se com a italiana Brigida Rinaldi, que desembarcara três anos antes dele no porto do Rio de Janeiro, vinda de Brescia, uma comuna da Lombardia que soma atualmente 188 mil habitantes. Santo Juliano e Brigida Rinaldi tiveram nove filhos, um deles o pai de Fausto. O senatore tinha quatro anos quando toda a família se mudou para Piracicaba, onde instalou outra marmoraria, ainda em atividade. Só que, em vez de esculpir santos e anjos, os Longo agora atuam mais na construção civil. Suas peças de mármore e granito estão em casas e prédios famosos da capital paulista, como a mansão do banqueiro José Safra, que se espalha por 11 mil m² no bairro do Morumbi. O empresário José Benedicto Longo, tio de Fausto, é quem está à frente do negócio.
“Teve uma época em que eu viajava pela Itália atrás de mármore e, ao mesmo tempo, caçava documentos. É que o Fausto queria fazer um histórico da família”, conta José Benedicto. A trajetória dos Longo acabou reconstruída em um só dia de 1987, quando Fausto, já arquiteto, visitava as obras de restauração do Museu do Imigrante, a antiga sede da Hospedaria de Imigrantes do Brás. “Tinha uma sala com centenas de livros de registro, que estavam sendo microfilmados. Quando me explicavam isso, um rapaz entrou e colocou um livro sobre a mesa. Abri e o primeiro nome da lista era o do Santo Juliano Longo”, lembra Fausto, referindo-se ao avô que chegara ao Brasil com 7 anos. “Fui embora felicíssimo. Às 5 horas da tarde do mesmo dia, me ligaram de Amparo. A prefeitura estava realinhando as calçadas da cidade e tinha quebrado um degrau da entrada da casa onde havia morado minha família. Quando quebraram, encontraram uma caixa de metal com documentos e fotografias.”
A caixa de metal tinha sido concretada por Santo Juliano durante a Segunda Guerra Mundial, para escapar da perseguição promovida pela polícia política do Brasil contra cidadãos originários dos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). A junção dos dois temas – genealogia e política – fazia parte dos interesses de Fausto desde garoto. A agitação da cidade de Piracicaba reforçava a tendência. Para lá afluíam estudantes do Brasil inteiro, para cursar a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo. Assim que completou 18 anos, ele tratou de se filiar ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido que fazia oposição ao regime militar: “Amanheci na casa de meu professor de português, Frederico Alberto Blaawn, que era o secretário municipal do MDB, e assinei o livro de filiação.”
Dois anos depois, ele ajudou a fundar o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, que está completando 40 anos. No ano passado, o festival de humor gráfico recebeu 3.442 inscrições de 86 países. O jornalista Djalma de Lima, que também integra o grupo de fundadores do festival de humor gráfico, se lembra da efervescência do período. “O Fausto já era cartunista desde os 14, 15 anos”, conta o jornalista. “A ideia do salão surgiu em conversas de bar, à beira do rio Piracicaba, como uma forma de resistência à ditadura. Logo ganhou o apoio de profissionais, como Jaguar e Ziraldo, do jornal O Pasquim, e não parou de crescer.”
Fausto, que chegou a ser vereador de Piracicaba pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), atua desde aquela época em diversas frentes, além da arquitetura e do urbanismo. Para assumir a cadeira de senador da Itália, precisou se afastar do trabalho na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), onde atuava como gerente do Departamento de Ação Regional. “Quando chega em casa, ele tem sempre algum desenho, algum projeto novo para tocar”, diz sua mulher, a designer de produtos Sheila Brabo. “A sorte é que ele dorme pouco.”
Nos momentos de lazer, um Puma 1988, na cor branco pérola, entra no circuito. Com o carro, o senatore adora participar do Torneio Interlagos de Regularidade, que o piloto Jan Balder (colaborador da Brasileiros) promove no Autódromo de Interlagos. Nem sempre, porém, carros foram sinônimo de alegria para Fausto. Aos 23 anos, ele dirigia um Maverick por uma estrada de terra inundada pelas águas do Piracicaba quando perdeu o controle da direção. Era véspera de Natal. No acidente, sua primeira mulher, a pianista Ivana, e o filho de apenas dois anos, foram levados pelo rio. Ele e as duas cunhadas, que estavam no banco de trás, sobreviveram. Do segundo casamento, com a publicitária Jocelyne, Fausto teve outros três filhos, todos com nomes de origem italiana: Lucas, Leonardo e Luigi. Com 36 anos, o mais velho, o biólogo Lucas, também é cartunista.
Como o pai, os filhos têm dupla cidadania. “São duas realidades. Na Itália, o que vale é o DNA, o sangue transmitido de geração para geração. Quem tem a ascendência, é italiano. No Brasil, vale o jus soli (direito de solo). É brasileiro quem nasce no território brasileiro. Não existe conflito”, diz Fausto. Embora acostumado a múltiplas atividades, ele nunca participou de nenhuma das 400 associações de italianos espalhadas pelo Brasil, por acreditar que elas cuidam de interesses específicos de grupos ou regiões. A ideia de atuar na vida política da Itália, no entanto, ganhou força em 2001, assim que o então ministro Mirko Tremaglia conseguiu aprovar a lei do direito a voto a italianos e descendentes espalhados pelo mundo. Em 2008, Fausto concorreu sem sucesso a uma cadeira de deputado, pelo Partido Socialista Italiano (PSI), do qual é secretário no Brasil: “Vigorou a tradição das esquerdas de se dividirem. Se tivéssemos nos unido em 2008, já teríamos eleito senador e deputado.”
Nas eleições de fevereiro, o PSI entrou na coligação liderada pelo PD, pela qual Fausto conquistou a cadeira de senador. Pela legislação eleitoral italiana, a América do Sul tem direito a eleger dois senadores e quatro deputados. Cinco brasileiros natos e dois italianos que vivem no Brasil entraram na disputa. Dois se elegeram deputado: Fabio Porta e Renata Bueno. Nascido em Caltagirone, na Sicília, Fabio Porta, 50 anos, chegou ao Brasil em 1998 para coordenar projetos de cooperação social e econômica. Está em seu segundo mandato, pelo PD.
Nascida em Brasília (DF), a advogada Renata Bueno, 33 anos, que tem família originária de Treviso, na região do Vêneto, foi eleita pelo Unione Sudamericana Emigrati Italiani (USEI). Filha do deputado Rubens Bueno, líder do PPS na Câmara dos Deputados, Renata já foi vereadora de Curitiba, também pelo PPS. Logo após a posse em Roma, ela comentou que pretende se alinhar com os colegas do PD: “Aqui, o Parlamento é formado por uma série de grupos e eu faço parte de um grupo misto independente. Porém, terei liberdade para votar com a coalizão de centro-esquerda”.
Em seu próprio território, a Itália tem 60 milhões de habitantes. Espalhados pelo mundo, existem ainda 60 milhões de italianos e ítalo-descendentes. No Brasil, eles são 29 milhões, 16 milhões no Estado de São Paulo. Os aptos a votar recebem a cédula pelos Correios e a remetem de volta aos consulados. Nelas, outras 550 mil pessoas esperam o dia em que terão o pedido de dupla cidadania analisado e deferido. Não por acaso, a burocracia foi um dos principais temas da campanha dos candidatos no Brasil, feita sobretudo pela internet. Fausto também discutiu o problema, garante que vai trabalhar pela agilização dos processos, mas não pretende se limitar a isso: “Senador não é despachante de porta de consulado, para resolver problema de passaporte.”
No Palazzo Madama, uma de suas prioridades será criar mecanismos para que os italianos tenham no currículo escolar a história da imigração: “Metade da população teve de deixar a Itália numa miséria desgraçada para a outra metade chegar onde chegou. Eles têm de entender o processo histórico e valorizar os 80 milhões que estão fora. Foram várias as correntes migratórias. Primeiro, no século 19, nos tempos da miséria. Depois, por causa da Primeira e da Segunda guerras, que expulsaram muita gente. Agora, temos uma nova onda. A Itália não oferece mais esperança para os seus jovens e o Brasil tem um horizonte imenso para crescimento.” Com mandato previsto para cinco anos, Fausto vai precisar de mais do que disposição para colocar seus planos em prática. O Parlamento terá de se entender para formar um governo de consenso, sob o risco de precisar convocar novas eleições caso não haja acordo. Em fevereiro, as forças saíram das urnas divididas entre o PD, o PDL do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi e o Movimento 5 Estrelas (M5E) do comediante Beppe Grillo, que arrebanhou 25,5% dos votos. I
Deixe um comentário