Em vez de muros, pontes

O embaixador Ibrahim Al Zeben, 58 anos, mal tira os olhos do televisor quando entro em sua sala, no segundo andar de uma casa modesta que serve como embaixada da Palestina no Brasil, no início do Lago Sul, em Brasília (DF). Ele assiste à TV Palestina, que exibe um programa sobre o Brasil. “Tenho de ver porque em breve farei uma visita a essa região”, explica, referindo-se à viagem que fará este mês à região amazônica, onde vive grande parte dos palestinos que se mudaram para o Brasil. “Mas essa música que colocaram no programa não é brasileira, é andina!”, comenta em tom de ironia o diplomata, jornalista de profissão, que também comandou as embaixadas da Palestina na Bolívia, Venezuela, Paraguai e Nicarágua.

Trajando um terno cinza claro, que combina com a barba cerrada e já grisalha, Al Zeben cativa pelo olhar tranquilo, o sorriso suave e a voz serena, mas também pela educação impecável que dispensa ao visitante – entre outras coisas, oferecendo um delicioso café árabe. Sua tranquilidade contrasta com o tema explosivo que maneja: a eterna luta de seu povo contra a ocupação territorial. A palavra Palestina foi usada pelos gregos para designar toda a Canaã bíblica que foi invadida por persas, gregos, egípcios, hebreus, romanos, bizantinos, cruzados e turcos. No século XX, a Palestina foi novamente invadida, desta vez pela Inglaterra, que abriu a porta para europeus de quase todas as etnias, seguidos de norte-americanos, latino-americanos e todos aqueles que se intitulavam descendentes dos antigos hebreus, que teriam herdado a terra diretamente de Deus. Em 1948, Israel ocupou parte significativa de seu território. Desde então, são construídos muros e barreiras militares que impedem a movimentação livre dos palestinos, acarretando uma série de violações de direitos. “Nosso povo está sofrendo, e insisto na palavra sofrer”, sublinha o embaixador.
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Al Zeben avisa que se Israel não se retirar dos territórios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias (1967), que englobam Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, a Palestina denunciará o país formalmente junto às Nações Unidas, em setembro deste ano, ocasião em que também solicitará o reconhecimento de seu Estado e sua admissão como membro pleno da ONU – para tanto, é necessária a aprovação de nove dos 15 membros permanentes do Conselho de Segurança e de dois terços dos 192 países que integram a organização.

Nesta entrevista, o embaixador fala sobre as relações da Palestina com o Brasil, destacando a atuação do governo Lula para a promoção da paz no Oriente Médio e a importância de Dilma Rousseff para o aprofundamento dessas relações. Comenta as declarações recentes do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que pediu respeito às fronteiras pré-1967, e ainda critica a cobertura das corporações de mídia nas questões que envolvem a Palestina: “Nossa versão não é mostrada”.

Brasileiros – Como o senhor encara as declarações que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, fez em maio deste ano defendendo a criação de dois Estados com as fronteiras pré-1967, ou seja, retomando a configuração territorial anterior à Guerra dos Seis Dias, quando Israel tomou a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental?
Ibrahim Al Zeben – Esse discurso trouxe coisas positivas, porque reconhece que a Palestina deve ser construída dentro das fronteiras pré-1967. Só que essas palavras devem vir acompanhadas de fatos, porque as declarações de Binyamin Netanyahu (primeiro-ministro de Israel) deixam muito a desejar. Obama foi contestado por Netanyahu, que garantiu que não vai aceitar as fronteiras pré-1967, que vai continuar construindo na Cisjordânia. Todas as coisas positivas que menciona o senhor Obama foram contestadas por Netanyahu nos três dias seguintes àquele discurso.

Brasileiros – O senhor acha que os Estados Unidos têm força política para resolver a questão?
I.A.Z. – Se os Estados Unidos não tiverem força política, material e física, quem pode ter? No mundo atual, unipolar, os Estados Unidos sim, têm força política.

Brasileiros – Como o senhor avalia a cobertura da imprensa brasileira sobre a Palestina?
I.A.Z. – Fraca.

Brasileiros – Por quê?
I.A.Z. – Pela distância, falta de interesse. Nos veículos mais importantes, não há uma cobertura equilibrada. A visão israelense predomina. Não podemos culpar. Nossos recursos são limitados. Sem dúvida, o adversário tem mais presença porque tem mais recursos. O conflito no Oriente Médio não beneficia a paz internacional, não beneficia a convivência pacífica entre israelenses e palestinos. A imprensa deve ser um pouco mais adequada no sentido de ajudar para o maior entendimento entre palestinos e israelenses. Todos aqueles que amam Israel devem ajudar para conseguir a paz, e todos que amam a Palestina também devem trabalhar nesse sentido. Não adianta reavivar conflitos de mil anos atrás, ou de 50. Acho que a imprensa pode e deve assumir uma posição mais comprometida com o processo de paz. Isso não sentimos. Saem muitas vozes incentivando o conflito, cutucando a tecla do conflito. E isso é cumprir um papel negativo, no sentido de que a paz é uma tarefa de todos, especialmente da imprensa, para criar uma opinião pública favorável à paz e não ao conflito.

Brasileiros – Na cobertura que a imprensa brasileira fez sobre essa declaração do presidente Obama, senti falta da versão palestina. A embaixada foi procurada?
I.A.Z. – Não nos procuraram. Estamos aqui, com endereço fixo, abrimos até sábados e domingos. Nossos celulares não são confidenciais, são públicos. Eles podem ligar quando quiserem, mas estão apenas reproduzindo a visão israelense. Isso é um desequilíbrio desnecessário.

Brasileiros – Quais as principais políticas adotadas durante o governo de Lula em relação à Palestina e como o governo da presidente Dilma Rousseff pode ajudar no processo de paz?
I.A.Z. – O presidente Lula, antes de assumir a Presidência, tanto ele quanto seu partido, o PT, em companhia de muitos outros partidos e personalidades políticas sempre tiveram uma ideia clara sobre a questão palestina. Nos anos 1970, recebemos apoio direto de todos os povos, em todos os fóruns, tanto em nível nacional quanto internacional. Podemos afirmar que estamos gratos pela ajuda que recebemos da sociedade brasileira. O presidente Lula visitou a Palestina antes de ser presidente. Visitou quando era presidente do partido e esteve com o presidente Arafat em diversas ocasiões. Outros dirigentes do partido também foram à Palestina e a outros países da região. Então, a relação entre o presidente Lula e a Palestina é histórica, de mais de três décadas de apoio e solidariedade ao povo palestino. Uma vez na Presidência, essa solidariedade começou a ter manifestações físicas. Não podemos esquecer em nenhum momento as posições do Brasil nas Nações Unidas, no Comitê de Direitos Humanos, em Haia, contra o muro, e na Assembleia Geral. E quando o Brasil assumiu a presidência rotativa do Conselho de Segurança e votou pela ilegalidade das colônias israelenses em território palestinos. Em 26 de março de 2010, Lula visitou a Palestina e esteve com o presidente Mahmoud Abbas. Juntos, eles inauguraram a Rua Brasil, onde está o mausoléu do presidente Arafat. Então, acho que foi uma manifestação solidária muito importante para nós, inclusive o presidente Lula e sua comitiva, com o chanceler Celso Amorim, puderam ver de perto o sofrimento palestino. Eles viram, como chefes de Estado, como tinham de cruzar os muros, como tinham de cruzar as fronteiras, como tinham de sofrer – insisto na palavra sofrer, por favor, sublinhe-a – na hora de ir de um lugar para outro, sendo um chefe de Estado e um chefe de Estado do Brasil, nada menos que do Brasil! Acho que essa visita foi marcante para permitir uma compreensão maior do sofrimento palestino e para aprofundar as relações políticas entre Brasil e Palestina. Isso levou, em dezembro de 2010, o Brasil a reconhecer o Estado da Palestina com as fronteiras pré-1967. Também em 2010 foi assinado, pelo presidente Lula, um decreto de cessão de terreno para construir a embaixada palestina na Zona Norte de embaixadas, em Brasília. Esse mesmo terreno onde foi colocada a pedra fundamental pelo presidente Abbas no dia 31 de dezembro de 2010. Estamos satisfeitos, portanto, com as relações entre Brasil e Palestina durante o governo Lula. O último encontro político de Lula foi com a Palestina, quando Lula recebeu Abbas, isso também é um sinal positivo.

Brasileiros – E quanto ao governo da presidente Dilma, já é possível fazer uma avaliação?
I.A.Z. – Agora está começando uma nova etapa, um estágio novo. Depositamos muita confiança no mandato da presidente Dilma e em toda a sua equipe, sobretudo no senhor Antônio Patriota, seu ministro de Relações Exteriores, que já visitou o Oriente Médio. Gostaríamos que ele visitasse a Palestina, mas entendemos que o momento não é muito favorável, em razão da intransigência do governo de Netanyahu e Liberman (ministro das Relações Exteriores). O fato de nosso povo não poder se mover em seu próprio território, de não ter direito à Educação, à Saúde, a uma vida digna. Isso é uma questão de Direitos Humanos. E isso só vai se tornar realidade quando conquistarmos nossa independência, nossa soberania. Dilma pode fazer muito pela Palestina, pela paz, pelas mulheres, pelas crianças, pelos Direitos Humanos. Confiamos em sua criatividade como presidente e como mulher. Ela pode ajudar a Palestina pressionando Israel a aceitar a paz.

Brasileiros – Após o reconhecimento pelo Brasil das fronteiras pré-1967, em 2010, outros países sul-americanos seguiram…
I.A.Z. – Eu não diria que seguiram, todos os países são soberanos. Apreciamos muito que o Brasil tenha sido o primeiro, mas também apreciamos muito as decisões de Argentina, Bolívia, Uruguai, Chile, Peru, Paraguai, Suriname e todos os outros. Faltam muito poucos aqui nesse hemisfério para o reconhecimento da Palestina nas fronteiras de 1967.

Brasileiros – Houve alguma reação de Israel perante essa série de reconhecimentos?
I.A.Z. – Israel ficou furioso. “Como podem reconhecer o Estado da Palestina que ainda não existe?” Só que foi uma decisão soberana desses países, que consideram que o Estado Palestino é um fato, já que Israel é um fato. Eles partem da premissa de 1947, quando as Nações Unidas decidiram que devem existir dois Estados para dois povos.

Brasileiros – Como o senhor avalia essa série de manifestações populares nos países árabes que começaram na Tunísia?
I.A.Z. – Saudamos as manifestações populares em todos os países árabes. Em nossa política, não interferimos nesses processos. Egito, Tunísia, em todos os países onde há manifestações populares eles têm força, razão e autoridade política suficientes para fazer o que quiserem. Nós saudamos esses movimentos e apoiamos qualquer decisão que o povo da Tunísia, Egito ou qualquer outro possa tomar. Acho que são movimentos que representam o sentimento popular e desejamos para nossos povos árabes o melhor. A democracia e uma vida melhor são direitos de todos nossos irmãos árabes, e todos os povos do planeta devem desfrutar.

Brasileiros – Esses levantes chegaram até o povo palestino?
I.A.Z. – Sim, chegou até nós. Felizmente chegou. Foi um contágio. O povo palestino imediatamente teve reações no sentido de exigir o fim da ocupação israelense e exigiu o fim das divisões internas, tanto é que obrigou o Hamas e o Fatah a reatarem as conversas e chegarem a uma feliz conclusão de reconciliação nacional. O povo obrigou todas as lideranças políticas a estarem à altura do desejo do povo. O povo quer ser unido, quer acabar com a ocupação, quer sua independência. E manifestamos nosso desejo à comunidade internacional, às Nações Unidas, aos países amigos e aos Estados Unidos, que queremos nossa independência. O povo quer viver em paz e em harmonia com o povo israelense, sem muros, de preferência, com pontes. Porque aquele que quer conviver cria estradas, cria vias de comunicação. O que não quer começa a criar muros. E quanto menor o desejo, mais alto é o muro. E, lamentavelmente, é o que acontece agora. Temos cada vez um muro mais alto. E isso não é o que desejamos, nem para israelenses nem para os palestinos.

Brasileiros – O que muda nas relações com o Egito após a queda de Hosni Mubarak, que esteve à frente do governo por três décadas?
I.A.Z. – O presidente Abbas visitou o Egito e esteve com os novos mandatários. O Egito vive um momento muito especial, só que a liderança atual do Egito se mantém apoiando a questão Palestina, inclusive, eles patrocinam esse acordo entre Fatah e Hamas. Acho que a mudança tem sido positiva e a favor da questão palestina. O povo egípcio sempre esteve ao lado da questão palestina. Desde que surgiu. Independentemente de quem esteja no poder. Essas manifestações populares, a partir de 25 de janeiro, sempre têm sido em nosso apoio. Portanto, quanto maior a expressão popular, maior o apoio à Palestina. Não só no Egito, mas em todos os países árabes e, acredito, no mundo inteiro. A questão palestina é mundialmente popular. O apoio a Israel é um apoio da elite, porque tem interesse no capital financeiro. Você não vai achar um movimento popular a favor de Israel, porque Israel está ocupando, está criando um muro, está cometendo injustiças. Por isso, sempre os movimentos populares são a favor da justiça. Por isso, os movimentos populares no mundo inteiro são a favor da Palestina.

Brasileiros – Nos levantes árabes, a internet foi uma importante ferramenta de mobilização. Como é o funcionamento da internet na Palestina? Existe alguma censura?
I.A.Z. – Funciona bem. Claro, existem hackers, e aí não tem nacionalidade, podem ser israelenses ou palestinos. Que tudo está monitorado por Israel, imagino que sim devido à alta tecnologia. Tudo é possível para certos órgãos de segurança. Mas funciona bem, o povo se expressa normalmente, é um meio excelente. Ajudou e vai continuar ajudando uma maior comunicação entre as pessoas e entre os povos.

Brasileiros – Por que setembro deste ano é uma data importante para a Palestina?
I.A.Z. – Porque estamos pensando seriamente em levar a questão Palestina às Nações Unidas, órgão responsável pela segurança e pela paz no mundo. Já que o processo de paz está em um ponto morto, desde que o senhor Binyamin Netanyahu e Avigdor Lieberman chegaram ao poder há dois anos e se negam, constantemente, em cumprir o direito internacional. Nós obviamente preferimos um acordo bilateral com Israel, patrocinado pelas Nações Unidas e chancelado pela comunidade internacional. Mas já que Israel não dá nenhum sinal, nos vemos obrigados a levar nossa questão às Nações Unidas. O mundo tem de decidir. Nós já fizemos tudo o que o mundo nos pede enquanto palestinos. Pedem reconhecimento de Israel, e reconhecemos Israel desde 1988. Eles pedem transparência no poder e reformas políticas e administrativas na Autoridade Palestina, o que já foi feito. Fizeram uma série de exigências e todas foram cumpridas. Lamentavelmente, eles seguem se negando a cumprir o direito internacional. Seguem construindo em território palestino, contra o direito internacional, colônias, check-points militares que violam, primeiro, o direito palestino e também o direito internacional. Esperamos, antes de setembro, conseguir um acordo direto com Israel para não ter de ir às Nações Unidas. Mas se não nos restar outra saída, voltaremos às Nações Unidas, que em 1947 decidiram a criação de dois Estados: um para Israel e outro para a Palestina.

Brasileiros – O senhor gostaria de dizer alguma coisa ao povo brasileiro?
I.A.Z. – Acho que estamos felizes e satisfeitos com as relações bilaterais entre Palestina e Brasil. Estamos seguros de que esse apoio à Palestina, ao processo de paz, vai seguir, está seguindo. A gente sente que o processo de paz, a reconciliação entre Fatah e Hamas, a reconciliação entre Israel e Palestina, uma paz justa na qual israelenses e palestinos possam conviver em harmonia, como convivem em paz os descendentes de Israel e Palestina em São Paulo – convivem, trabalham em conjunto. Queremos levar esse exemplo de convivência à área. Por que vivem em paz, harmonia e cooperação aqui e não lá? Simplesmente porque lá tem a ocupação. Uma falta de respeito enorme ao direito do outro, não há o reconhecimento do outro. Nesse caso, Israel não reconhece a Palestina como ente político que tem iguais direitos e deveres. Portanto, queremos seguir levando esse exemplo brasileiro para a área, para que aprendamos a conviver em paz e harmonia e com respeito ao outro. A paz é possível. Esperamos declarar o Estado Palestino em setembro, em concordância com as posições dos Estados Unidos, da União Europeia e da comunidade internacional e, sobretudo, conforme os desejos do nosso povo. Esperamos que isso seja em comum acordo com Israel. Não pretendemos isolar ou enfrentar Israel. Estamos indo recuperar nosso direito já postergado há 63 anos. Que Israel deixe de ocupar nosso território! Agradecemos a toda a comunidade internacional e esperamos que ela possa ajudar para que a independência palestina seja concretizada.


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