“Quer algo mais rock’n’roll que a vida dos preto?”, pergunta Emicida em um post no Facebook. O texto vem acompanhado de um vídeo em que ele aparece curtindo um som pesado, que fala de camburões e antigos navios negreiros. Na caixa de comentários, os fãs debatem que som é aquele, que não encontram em lugar nenhum. Os mais espertos comentam que deve ser uma música nova do rapper. Estão certos. O nome da música é Boa Esperança e estará no novo disco de Emicida, ainda sem título definido, trabalho que nasceu a partir da viagem para Cabo Verde e Angola, parte da África lusófona, e foi finalizado no Brasil.
Essa canção, no entanto, foi criada na Água Fria, bairro da zona norte de São Paulo, onde Emicida vive. Momentos antes de embarcar para o continente africano, em março passado, ansioso com o que iria encontrar por lá, ele revelou à reportagem da Brasileiros por que deu esse título à música: “Boa Esperança é o nome de um navio negreiro no livro A Rainha Ginga, do angolano José Eduardo Agualuza. Um navio no qual um padre viaja e faz o caminho contrário da escravidão. “Passei um tempo sem fazer nada, só lendo esse livro.” Além da inspiração literária, o fato de os navios negreiros levarem nomes que sugeriam confiança e felicidade incomodou o rapper. Obras de outros autores africanos, como os moçambicanos Mia Couto e Paulina Chiziane, estão entre suas preferências. “Mia Couto é foda, o jeito que ele escreve é muito bonito, fala de maneira doce da realidade.”
Boa Esperança foi devagarzinho ganhando o mundo. Primeiro, no palco do Circo Voador, no Rio de Janeiro. Depois pelo YouTube, com uma gravação amadora de um trecho da música apresentada no show carioca. As imagens são bonitas, o som não é dos melhores, só que a cena toda faz a gente se lembrar dos tempos em que ele era um desconhecido do grande público, mas um MC de sucesso por seus vídeos nas batalhas de rima que aconteciam na Galeria Olido ou no metrô Santa Cruz, entre outros pontos de São Paulo.
Não acabou aí a repercussão da nova música. No Twitter, frases da canção, como “cês diz que nosso pau é grande, espera até ver o nosso ódio”, já se espalhavam.
Na última quarta-feira de junho, sem aviso prévio, Emicida liberou a íntegra de Boa Esperança, mais uma vez pelo YouTube. Também divulgou um clipe do single, dirigido por João Wainer (diretor do documentário Junho) e Kátia Lund (codiretora de Cidade de Deus ao lado de Fernando Meirelles), em que conta a história de uma revolta propagada por um grupo de empregadas domésticas. No Youtube, o vídeo já soma quase 600 mil visualizações, além de ter gerado um forte debate sobre seus significados. (Leia: 5 textos para provar que “Boa Esperança”, a música nova de Emicida, é uma aula de história negra e contemporânea).
Por enquanto, o rapper não pode contar mais sobre o novo disco, previsto para o final deste mês de julho. Mas, durante os quatro encontros que manteve com a reportagem da Brasileiros, foi adiantando os efeitos da recente viagem à África. “Mudou tudo. Tem um Emicida antes e depois de Cabo Verde e Angola.” Na sequência, faz referências ao cientista social cubano Carlos Moore ao dizer: “É muito difícil odiar a África e os africanos sem que, em algum ponto, você odeie a si mesmo. Esse bagulho ficou girando na minha cabeça”.
Em território africano, Emicida reavaliou tudo o que leu durante a vida sobre o continente. “Percebi a interrupção gerada por uma cultura que não era dali, que passou a criminalizar a dança, o canto, o sorriso. Um mês depois, eu fui na França, fui olhar os murais da igreja e fiquei triste porque de todos os murais da igreja, aqueles vitrais lindões, o único que tava sorrindo era o diabo, mano. Aí pensei: ‘Caralho, a felicidade é um pecado mesmo, né?’.”
As composições do novo CD chegam após um 2014 quase parado em termos de produção. “É bom parar um pouco, cruzar os braços, parar de dar sua perspectiva para o mundo e ouvir o que os outros estão falando. É bom ouvir também. Isso é um ensinamento do jazz, porque, quando a gente ouve, consegue entrar na história de uma maneira melhor, entendeu?”
O artista em processo, como gosta de se definir, ouviu bastante e agora quer falar. Está de volta à ação, chegando ao ponto de se tornar uma figura difícil de se fotografar. É a intensidade com que sempre comandou o ritmo dos seus 15 minutos de fama que agora já duram uma década. Quando menos se espera, lá está Emicida na Virada Cultural de São Paulo, no final de junho, com todos da banda vestidos de branco, em protesto aos recentes casos de intolerância religiosa, como o da garota apedrejada saindo de um culto de Candomblé, em Salvador, e virando assunto nas redes sociais pelo discurso rimado e incisivo que fez antes da última música do show, abordando tópicos quentes que andam longe da boca de muitos artistas: redução da maioridade penal, racismo, violência policial, greve dos professores, padrão de beleza:
“E aí vira o quê? Os com diploma versus os consciência. A Fundação é tudo, menos Casa pra um interno. É mó boi odiar o diabo, eu quero ver cê se ver lá no inferno. Não existe amor em SP? Existe pra caralho. Cês acham que as Mães de Maio chora por quê? Tendo que sobreviver ao pai que abusa, ao ferro sob a blusa, às farda que mata nós e nunca fica reclusa, ao Estado que te usa, ao padrão de beleza musa e aos otário que inda quer vim me falar de racismo ao contrário. Tempo doido, tempo doido, a espinha gela, onde as mulher é estuprada e no final a culpa ainda é delas. O problema é seu e da sua dor. Às vezes, eu me sinto inútil aqui, que eu não valho nada, igual o governo tem tratado os professor. Mas pra esses bunda mole aí, que acha que nós tá dormindo, um aviso: não é porque nós tá sonhando que nós tá dormindo, viu?”
Emicida encara a responsabilidade de se posicionar politicamente da mesma forma com que se preocupa com sua vida artística e empresarial. Ele declarou voto em Dilma Rousseff nas últimas eleições, participou de um vídeo na campanha do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e não é fã da gestão do governador Geraldo Alckmin. Não se arrepende de nada, mas avalia: “Passou eu lá na televisão durante a campanha. Aí, saio nas ruas e os caras que gostam dela me falam: ‘Aê, Emicida, é isso mesmo’. E no meu bairro era só Aécio, mas ninguém fala nada para mim, não. Vai falar o quê? Eu sou a síntese desse outro Brasil aí no bairro”.
A ideia de Emicida é não ficar preso a um pensamento ou, em outras palavras, ser radical. “A coisa mais saudável para um governo é ser questionado, mas se você não faz ideia de quem é a responsabilidade, temos um problema muito sério. Se a gente que sugere um pensamento novo para o mundo, que é os caras de cabeça aberta, não conseguir trocar ideia por causa de política, fudeu.”
Do fundão
A ideia de liberdade para Leandro Roque de Oliveira, nome de batismo de Emicida, nem sempre foi clara. Nascido no bairro Jardim Fontalis, na zona norte paulistana, filho do Miguel e da dona Jacira, pais de outros três filhos, o rapper enfrentou as muitas barreiras impostas para os garotos da periferia. Perdeu o pai quando tinha 6 anos, vítima de uma briga de bar. Conviveu tanto com a violência a ponto de não sentir muita coisa ao ver um corpo estendido no chão enquanto ia para a escola, onde também não teve uma rotina suave.
Quando estudou em uma sala majoritariamente de meninos, sofreu com o bullying e o racismo, inclusive de um colega negro. “Eu me vi como o último degrau mesmo”, diz, enquanto se lembra das risadas que o chinelo que calçava para ir ao colégio, mesmo durante o inverno, provocava nos colegas. Diante dessa situação, ele perdeu um ano de estudo, depois de ter cabulado aulas. Na rua, flertou por caminhos perigosos.
Hoje, ele conta que fumou escondido dos 10 aos 12 anos – hoje não bebe e não fuma, está mais para o nerd que gosta dos quadrinhos da Vertigo, além de ter descolado um velho Super Nintendo. Para dona Jacira, a mudança de comportamento veio quando uma professora a alertou sobre a atenção que o filho dava para o desenho, o que a fez mudar sua postura diante do menino. “Antes, falava para ele: ‘Nunca vi japonês de olho grande’. E jogava tudo fora. Depois, parei de falar mal dos desenhos.” Foi pela paixão por mangás e histórias em quadrinhos que ele traçou um caminho rápido pelo design, área que cursou após terminar o Ensino Médio, e o gosto pelo rap, que sempre foi a trilha sonora de sua vida.
Fazer freestyle e improvisar rimas logo passou de hobby a trabalho e, tempos depois, um sonho. O apelido veio logo, por causa dos incontáveis “homicídios de MC”, que cometia usando seus versos como arma. A Rinha dos MCs, famoso encontro de rappers amadores em São Paulo, criado por Criolo e DJ Dan Dan, foi vencida por ele 14 vezes seguidas. “No metrô Santa Cruz, quem tinha contato com o rap já sabia que o Emicida seria uma promessa que vingaria. Ele era o melhor nas batalhas, tinha um improviso que ninguém tinha. Era muito melhor que todos os outros MCs. Na época, eu falava para alguns amigos: ‘Guardem o nome desse cara, porque ele vai estourar, vai ser capa de revista’”, conta o jornalista Bruno Tálamo.
A empresa
“A Laboratório Fantasma existe por uma questão política. É importante que se tenha uma empresa gerenciada pelos pretos que veio da favela.” Emicida está falando do misto de selo/marca/editora/coletivo/produtora, gerenciado por ele e pelo irmão Evandro Fióti, que surgiu quando, em 2009, o rapper lançou sua primeira mixtape, Pra Quem já Mordeu um Cachorro por Comida até que eu Cheguei Longe – um apanhado de raps que ele tinha escrito desde 2006. Depois de uma experiência bem-sucedida em vender o single da faixa Triunfo em CDs, que eles mesmos produziam da mídia à capa, e cobravam R$ 3 em portas de baladas e shows de rap, concluíram que era interessante repetir o método, com pequena alteração de valor do produto. Por R$ 2, venderam, em um só mês, três mil cópias. A maré começou a mudar.
“O mercado do rap era assim: você tinha de ter o disco na galeria, a música tocar na 105 FM e sair na revista Rap Brasil. O Emicida não tocou na 105, não saiu na revista Rap Brasil e não tinha o disco na galeria. Ele fez o que ninguém tinha coragem de fazer. Muitos rappers no lugar dele teriam vergonha de sair para vender o próprio trabalho na rua, ou iam atrás de prensar o disco de maneira profissional, pagando caro, ou não fazia”, comenta o também rapper Renan Inquérito, amigo de Emicida.
De iniciativa arriscada, a Laboratório Fantasma se firmou como exemplo na indústria, melhorou a distribuição dos discos, entrou no campo de vendas de roupas e produtos e se estabeleceu. Hoje, tem um casting que conta com o cantor Rael, parceiro de primeira hora de Emicida, e começou a atuar também em estratégia e distribuição digital de álbuns da cantora Juçara Marçal e do medalhão Chico César. Fióti, inclusive, recebe pedidos de ajuda de figurões da indústria fonográfica. Em uma palestra em Recife, um atento Guilherme Arantes ficou tão impressionado com a história da Laboratório que resolveu fazer uma pergunta ambiciosa: “Que diagnóstico vocês veem para o Brasil dar certo?”. Esse é o tipo de demanda que chega para eles. (A resposta deles você pode ouvir aqui)
O mundão
Quando reuniram a história de vender um disco físico na era do MP3 com o burburinho on-line da experiência do álbum gratuito na internet, mais o clipe bem produzido de Triunfo, o jogo estava completo para a mídia se interessar pelo caso de “uns meninos que estavam ensinando a indústria a trabalhar”. Com uma porta que raramente se abre para o hip-hop, a escolha era seguir adiante ou ficar quieto. “Hoje, consigo ver a grandeza de tudo que a gente fez. Naquela época eu tinha muito questionamento interno, sabe? Será que devo fazer isso? Será que é isso? O que será que fulano vai falar? Para fora eu sou confiante, mas, para dentro, naquele momento ali, tava com muitas dúvidas, muitas dúvidas até referentes a tipo: será que esse deve ser meu caminho mesmo? Eu queria ser desenhista de histórias em quadrinhos. E eu tô fazendo música?”
Na televisão, Emicida marcou presença em programas sofisticados e populares. Viveu todo o tipo de situação na telinha, quase sempre posto à prova para ver se conseguia mesmo improvisar rimas sobre qualquer coisa. Foi assim quando conversou com Jô Soares, Marília Gabriela e Marcelo Adnet. Ao participar do programa do Ratinho, no SBT, foi desafiado a duelar com uma dupla de repentistas. Também respondeu à clássica pergunta de Antônio Abujamra no Provocações, da TV Cultura: “O que é a vida?”. Aliás, a resposta foi essa: “Acho que viver é você sentir saudades de uma época boa e tentar buscar ela de volta. Você vai ficar até o último dia da sua vida tentando fazer isso”.
Mesmo ocupado com o trabalho de divulgação, que tomava boa parte de seu tempo e energia, Emicida não parou de criar músicas. Entre 2010 e 2011, lançou mais uma mixtape e dois EPs. Finalmente, em 2013, saiu o primeiro disco oficial, O Glorioso Retorno de quem Nunca Esteve Aqui, frase que rabiscava em papéis ainda em 2005, e ganhou novos sentidos diante de uma carreira tão maluca. “Você precisa mostrar serviço, né? A gente vive num tempo em que a informação é consumida de maneira muito maluca. Poucas pessoas têm se conectado de verdade com uma história que não seja de si próprio e isso tem muito a ver com o tipo de ritmo que eu tentei imprimir.”
De um apartamentinho na Zona Norte que abrigava estoque, produção, agência, escritório e um estúdio improvisado, agora a Laboratório Fantasma, na mesma região, só que mais para dentro da Zona Norte, cresce em uma casa mais cômoda, de dois andares, com espaço para todo mundo. A sala mais arrumada é a do chefe. “Venho aqui para arrumar ela, depois saio para fazer minhas coisas”, zoa Emicida. “Se a gente perder o poder na assembleia do fim de ano e tiver mais morador de fora da Zona Norte dentro da empresa, talvez a gente tenha que mudar”, diz dando risada.
Música falada
Mas a história de Emicida não é só a história de uma empresa de sucesso. Seu som dá samba, por que não? Seu rap atraiu as pessoas pela mescla bem elaborada do passado mais politizado e incisivo do rap com uma herança mais inocente e romântica, menos lembrada fora do universo de quem conhece a cena – pense em Tik Tak, do Doctor MCs, Só Por Você, do Xis, e Nomes de Menina, de Pepeu, sons que Emicida ouvia antes de pensar em fazer sua própria música.
A conversa dele é com uma geração que passa por parceiros independentes, como Tulipa Ruiz, Metá Metá, e nomes do mainstream, como Pitty e Vanessa da Mata. Reportagens bem que tentaram incitar uma divisão do rap de sua geração com a dos anos 1980 e 90, mas tudo caiu por terra quando Mano Brown participou de um disco de Emicida. “Isso aí vende demais. Essa tentativa de criar uma ruptura… E muitas das críticas que as pessoas têm são infundadas por coisas que saíram de maneira pouco clara na imprensa”, comenta.
No ano passado, um festival produzido pela Laboratório Fantasma reuniu, além do próprio Emicida e Rael, a cantora Céu, o rapper francês Féfé e a banda de rock psicodélico Boogarins. Usando sua palavra favorita no momento, “sugestão”, Emicida conta que a ideia era sugerir liberdade, criar uma cultura de consumo de música que não estivesse conectada ao rótulo.
É a mesma fórmula que considerou quando o assunto era política e negócios. “Segmento, com todo respeito, é uma bosta. Você dialogar com uma única cena? Cansa, as pessoas ficam meio que correndo atrás do rabo. Eu, no começo, quando mergulhei nessa coisa de cena, achei fascinante porque tinha uma coisa meio de rebanhar, todo mundo usava o boné parecido, a camiseta parecida, coisa de adolescente, ‘aqui é meu lugar no mundo, eu vou ficar aqui’. Hoje, acredito em uma coisa completamente diferente, acho que quanto mais gente diferente tiver ali melhor. É dali que vai surgir a evolução. A evolução, principalmente do nosso discurso, vem do conflito, de colocar gente diferente ali e a gente ter que discursar na presença de gente que não pensa igual a gente.”
Ontem era não, hoje é sim
No mês passado, Emicida teve a oportunidade de ver pelo menos dois shows de Caetano Veloso em São Paulo. Além disso, teve a chance de gravar no Rio de Janeiro com o famoso compositor a música Baiana, que estará no novo disco do rapper. “Vou por no meu currículo: ‘Gravado por Caetano Veloso’”, brinca em uma roda de conversa com amigos no estúdio.
Mesmo assistindo ao vigor de Caetano no palco, aos 72 anos, Emicida jura que não pretende ir tão longe. “Com 70 quero é tá vivo, plantando minha comida. Não pretendendo abandonar a música não, mas ter menos responsabilidade com o mercado da música é algo que me interessa. A indústria é chata, lidar com ela é chato. Já o amor pela música só cresce, principalmente depois de uma experiência como foi a da África.”
Quando ele fala em plantar comida e a preocupação com a alimentação, não está de brincadeira. O rapper se diz preocupado com os amigos que estão morrendo de câncer. O assunto surge por causa da morte precoce de Tati Ivanovici, aos 36 anos, vítima da doença, jornalista especializada em hip-hop e criadora da rede DoLadodeCá. Em uma entrevista, ela falou uma frase que tem tudo a ver com a carreira de Emicida: “Eu vim do não, não tenho nada a perder”. O rapper completa: “Essa frase dela sintetiza o corre de nós todos, o não nóis já têm, a vida inteira foi não, foi porta na cara, foi ‘não vai rolar’, ‘para vocês não’, ‘não tem, já acabou’. Isso tudo nóis tem, já estamos acostumados, a gente precisa correr para fazer o contrário acontecer”.
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