De todas as recordações que Claudio José Fernandes guarda da infância em Foz do Iguaçu, no oeste do Paraná, uma ficou marcada para sempre. “Nunca vou esquecer quando vi pela primeira vez a terra vermelha deste chão. Na periferia, onde minha família morava, não tinha asfalto. Nos dias de chuva, para pegar o ônibus sem sujar os sapatos, a gente colocava uma sacola plástica nos pés e saía caminhando pelas ruas cheias de lama”, lembra com um ar nostálgico. Aos 39 anos, casado, duas filhas, formado em ciências contábeis e há 12 anos trabalhando como analista de sistemas na Itaipu Binacional, Claudio considera-se um homem feliz. Filho de um barrageiro – trabalhador especializado na construção de hidrelétricas -, ele e a família chegaram à cidade numa leva de brasileiros de todos os cantos que foram atrás de uma vida melhor. O pai, José Paulino Fernandes, já havia trabalhado nas usinas de Ilha Solteira e Água Vermelha, ambas da Companhia Energética de São Paulo (Cesp), em São Paulo, e agora começava a mais árdua de suas empreitadas: ajudar a construir a maior hidrelétrica do mundo. “Essa região nunca foi pacata. Naquela época, o fluxo de pessoas já era muito grande. Mas não havia a violência que existe hoje”, lembra Claudio. Em 1974, quando começaram as obras (que duraram até 1982), a cidade tinha aproximadamente 34 mil habitantes. Dez anos depois, já beirava os 140 mil, e hoje, segundo dados do IBGE, chegou a 320 mil. No auge da construção, mais de 40 mil operários fizeram daquele canteiro de obras um formigueiro humano, sem contar os milhares de outros que prestavam algum tipo de serviço sem contrato formal. Desse exército de Brancaleone, Claudio é um sobrevivente. Faz parte de uma minoria e hoje compõe um estrato social bem diferente do da maioria daqueles retirantes. “Aproveitei uma oportunidade e agarrei a função com unhas e dentes. Acordava às 6 horas da manhã para entrar no estágio, aqui na Itaipu, às 7 horas. Saía às 13 horas, horário que deveria estar passando o cartão na prefeitura da cidade. Deixava o trabalho às 19 horas e depois de 30 minutos já estava dentro da sala de aula estudando. Chegava em casa à meia-noite sem forças para mais nada. Mas valeu a pena”, afirma.
Para a maioria restou a decepção, a miséria e atividades que servem para encobrir uma situação onde prevalece a lei do mais forte. De acordo com dados da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), uma ONG que em parceria com os Ministérios da Saúde e da Justiça traçou um perfil da violência no Brasil, Foz do Iguaçu está entre as dez cidades mais violentas do País e é campeã quando o assunto é “morte violenta juvenil”. Outro estudo elaborado pelo Núcleo de Pesquisa e Prevenção à Violência (Nuprev) mostra que o fato de a cidade estar localizada numa faixa de fronteira – com o Paraguai e a Argentina – faz dela um corredor para a entrada de contrabandos, entorpecentes e armamentos. Ainda segundo a pesquisa, a falta de um planejamento eficaz fez com que a região se tornasse vítima do impacto sócio-econômico desordenado e sem qualquer critério social. Assim, à medida que a hidrelétrica dava início ao procedimento de desaceleração das obras físicas, e a chamada era da revolução tecnológica ensaiava os primeiros passos, Foz começava a viver seu drama social.
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Todo aquele imenso contingente de trabalhadores demitidos pelas empreiteiras engrossava as estatísticas do desemprego. Como não bastasse, o País encontrava-se mergulhado na mais profunda crise econômica das últimas décadas. Os barrageiros, que até então viviam como nômades de obra em obra, agora não tinham mais para onde ir. Essa somatória de fatores culminou num processo de crescimento desordenado e seus efeitos mais imediatos foram a perda da qualidade de vida da população, notadamente nas periferias, com o surgimento de favelas, aumento da violência, da marginalidade, da prostituição, das drogas e, obviamente, do contrabando e do tráfico. Mas para o diretor-geral brasileiro de Itaipu, Jorge Samek, as mazelas sociais de Foz do Iguaçu têm uma conotação estrutural. “Mesmo que a usina não tivesse sido construída, a cidade certamente teria atingido uma população superior a 200 mil habitantes. Por se tratar de um grande pólo turístico e estar localizada numa faixa de fronteira, os problemas sociais existiriam de qualquer maneira”, avalia.
Para tentar melhorar – e até reverter – essa situação, a Itaipu assumiu um compromisso com a sociedade, e hoje atua como um agente transformador. “À medida que fomentamos o desenvolvimento econômico, social e cultural, nos transformamos numa espécie de BNDES regional”, acredita Samek, nascido em Foz do Iguaçu. No dia-a-dia, os tentáculos da hidrelétrica se fazem notar em todos os setores. Mais de 50% de toda a receita de Foz provém dos royalties e da arrecadação de ICMS gerado pela empresa. Só em royalties, o município já recebeu, desde 1991, US$ 200 milhões. Os 16 municípios lindeiros – aqueles que tiveram parte de suas áreas atingidas pela formação do lago – receberam juntos mais de US$ 1 bilhão. Na área de meio ambiente foram implantados projetos que possibilitaram o plantio de mais de 22 milhões de mudas de árvores, o suficiente para formar uma floresta de 110 mil hectares localizada entre o Parque Nacional do Iguaçu e o Parque Nacional de Ilha Grande, na divisa do Paraná com Mato Grosso do Sul. “Agora uma onça poderá sair da região pantaneira e chegar à Argentina cruzando a fronteira pelo Parque Nacional Iguazú”, diz Samek. Outra medida importante foi manter uma faixa de proteção, com mais de 200 metros, que circunda toda a margem do lago para reduzir o assoreamento, a erosão e a poluição. Na saúde, construiu um hospital com capacidade para 200 leitos e que atende mais de 60% dos pacientes pelo SUS. Mas é no turismo que se vê a maior contribuição da Itaipu à economia do município e à geração de emprego. Partindo da estimativa que em 2008 cerca de 700 mil pessoas visitarão a hidrelétrica e, portanto, devem permanecer um dia a mais na cidade, num cálculo rápido e simplista de que cada turista gaste R$ 200,00 entre estadia, alimentação e locomoção, é possível quantificar um faturamento em torno de R$ 140 milhões.
Laboratório para novas gerações
“O maior legado que Itaipu deixa à comunidade de Foz do Iguaçu chama-se Fundação Parque Tecnológico Itaipu (PTI). Trata-se de um espaço voltado à discussão de medidas concretas e exeqüíveis, focadas na educação, no empreendedorismo, no fomento e na pesquisa tecnológica”, diz Juan Sotuyo. Argentino, 52 anos, graduado em ciência da computação e mestre em engenharia mecânica nas áreas de metrologia e automação pela Universidade Federal de Santa Catarina, é ele quem dirige o PTI desde sua criação, em 2003. A idéia de instalar na cidade uma instituição voltada ao desenvolvimento tecnológico surgiu em 1996, por iniciativa de um grupo de professores do curso de ciência da computação da Universidade Estadual do Oeste (Unioeste). Mas só em 2003, por decisão da diretoria da Itaipu Binacional, a idéia saiu das pranchetas para começar a tomar forma. “Na época da construção da hidrelétrica, a Itaipu foi obrigada a recrutar os melhores profissionais do mercado. A maioria deles ainda está nos quadros da empresa, mas alguns já estão se aposentando. Nós não podíamos perder esses talentos e resolvemos recrutá-los para a academia”, explica Samek. No mesmo ano, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Nicanor Duarte, do Paraguai, lançaram a pedra fundamental daquilo que até então não passava de um sonho.
A Itaipu cedeu parte dos antigos alojamentos e doou 116 hectares com 40 mil metros quadrados de área construída. Os espaços vazios, ociosos e quase todos corroídos pelo tempo foram transformados em modernos centros de tecnologia, onde desde 2006 trabalham mais de 1.500 pessoas entre funcionários, estagiários, pesquisadores, professores e acadêmicos. Um convênio firmado com a Unioeste trouxe para o PTI o Centro de Engenharias e Ciências Exatas, onde agora são oferecidas vagas nos cursos de ciência da computação, engenharia elétrica, engenharia mecânica e matemática. Pelos modernos e amplos corredores, grupos de jovens só reclamam da baixa freqüência de alunas nos cursos de ciências exatas. Willian Fabiano, 18 anos, Rafael Costa, 19 anos, Leandro Trindade, 21anos, Pedro Rodrigues, 21 anos, e Marcos Sato, 19 anos, são estudantes do 2º ano de engenharia elétrica. “Além das ótimas instalações físicas, que vão desde os banheiros aos laboratórios de última geração e salas de aula com ar condicionado, a maior parte do corpo docente é formado por engenheiros da Itaipu. Daí que, além da teoria, temos aulas práticas da melhor qualidade”, diz Sato. “É como se a gente tivesse a Itaipu como laboratório de pesquisa”, brinca Rodrigues. Alguns projetos podem até surpreender os menos informados. O Laboratório de Bioinformática, por exemplo, desenvolve e aplica métodos computacionais para auxiliar na resolução de problemas nas áreas médicas e biológicas em parceria com a Universidade de São Paulo (USP). Outro considerado dos mais importantes vem sendo desenvolvido em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Trata-se do Genoma Clínico, que pesquisa o porquê de algumas doenças, como câncer e diabetes, se manifestarem mais precocemente em algumas pessoas da família enquanto noutras os efeitos demoram ou podem não aparecer.
Incubadoras
Mas não é apenas a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico que têm vez. Uma das metas do PTI é justamente gerar renda e emprego no curto prazo. O Espaço de Desenvolvimento Empresarial (EDE) oferece aos jovens empreendedores uma estrutura dividida em diferentes etapas: a pré-incubadora, a incubadora propriamente dita e o condomínio empresarial. No primeiro estágio, após um rigoroso processo de avaliação e aprovação de uma idéia passível de ser transformada em “produto, processo ou serviço”, eles vão sendo capacitados para adquirir experiência. No segundo, além do suporte tecnológico, recebem orientação empresarial e apoio administrativo até atingir o último degrau da escala: tornar-se empresas competitivas, em condições de disputar uma fatia do mercado. Todas essas experiências têm transformado o perfil econômico da região, ampliando as oportunidades de trabalho e incentivando o surgimento de empresas com base tecnológica. “Desde 2004, mais de 70 mil pessoas foram beneficiadas pelos programas ou projetos desenvolvidos pelo PTI. Não são apenas números, mas pessoas com nome e endereço”, reitera o argentino Juan Sotuyo.
A primeira empresa a se fixar na incubadora do PTI, em 2004, foi a Kionux Soluções em Internet, instalada no andar inteiro de um moderno edifício no centro de Foz do Iguaçu. Wilson Kihara, 29 anos, ainda lembra quando ele e o sócio, Thiago César Rodrigues, 29 anos, se espremiam num espaço de seis metros quadrados. “Quando chegamos ao PTI ficamos num cubículo. Éramos três pessoas, além de mesas, cadeiras, armários e computadores.” Hoje, além do espaço físico maior, eles contam com 13 empregados. Mas a transformação na vida desses jovens não foi só no que diz respeito ao conforto. Em menos de cinco anos, a empresa criada por esses dois amigos de infância, que sonhavam em trabalhar com informática, expandiu sua atuação e, além do Paraná, tem clientes em São Paulo, Rio de Janeiro e até nos Estados Unidos. “No início, a gente prestava consultoria em Linux e na área de servidores. Atualmente, o foco da empresa é a produção de websites, desenvolvimento de portais e sistemas de comércio eletrônico (e-commerce)”, conta Thiago. Reconhecem que sem o apoio do PTI não teriam conseguido chegar nesse estágio. “As estatísticas mostram que 70% das empresas fecham até o segundo ano de atividade por inexperiência. Nós ficamos três anos na incubadora. Foi o tempo suficiente para aprendermos a desenvolver os projetos técnicos e administrar a empresa comercialmente”, diz Kihara. Tal experiência trouxe também um resultado inesperado: Thiago comprou a empresa onde, aos 17 anos, começou a trabalhar como estagiário.
Coleta de lixo
Enquanto os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico se fortalecem num horizonte a médio e longo prazos, a frase citada pelo economista britânico, John M. Keynes, em 1923, “a longo prazo estaremos todos mortos”, ou na versão mais popular do músico Jim Morrison, “daqui ninguém sai vivo”, ecoou como um alerta para mostrar a necessidade de se buscar uma resposta imediata. Luiz Carlos Matinc, técnico da Divisão de Ação Ambiental da Itaipu, é o coordenador do Projeto Coleta Solidária e responsável pela organização dos catadores de papel de Foz do Iguaçu. Para ele, uma questão elementar é mais do que suficiente para justificar qualquer medida em favor dessas pessoas. “Nos meses de verão, a temperatura aqui na região ultrapassa os 40 graus. É no mínimo desumano permitir que eles, principalmente idosos e crianças, andem pelas ruas puxando um carrinho.” Mas a questão foi bem mais complexa. O primeiro desafio foi fazer com que os chamados lixeiros se aceitassem como cidadãos. A maioria havia perdido a auto-estima e o consumo de bebidas alcoólicas era enorme, até entre mulheres, jovens e crianças. Foi difícil fazê-los entender as vantagens do cooperativismo, do associativismo, cujos pressupostos estão sedimentados no trabalho coletivo. “Como não bastasse, eles eram explorados pelos donos dos barracões. Além de o preço pago pelo quilo do material ser apenas 30% do valor de mercado, os ‘patrões’ ainda cobravam aluguel dos carrinhos que eles puxavam”, diz Matinc. Atualmente, a Cooperativa dos Agentes Ambientais de Foz do Iguaçu (COAAF) tem 550 sócios cadastrados e tanto o acompanhamento dos agentes ambientais como as avaliações da própria Cooperativa são feitos pela ONG Instituto Lixo e Cidadania, de Curitiba. Assim, além de melhores rendimentos financeiros, as condições de trabalho e higiene também são mais favoráveis. Outro instrumento facilitador foi o desenvolvimento de um carrinho elétrico para coleta de material nas ruas de difícil acesso, íngremes ou para os percursos mais longos.
Trata-se de um projeto piloto e o primeiro protótipo testado foi entregue por uma empresa privada no final de 2007. Em julho desse ano a Itaipu recebeu mais 50 unidades, sendo 30 para Foz do Iguaçu e o restante distribuído para cooperativas de Recife, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre. Em setembro, numa solenidade que contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram entregues mais cinco em Belo Horizonte. O custo de cada unidade é de R$ 4 mil e o gasto com ‘combustível’, no caso, energia elétrica, é de R$ 7,50 por mês. Mas não se trata de uma medida paternalista. Num convênio assinado com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), a Itaipu comprometeu-se a fornecer, além do apoio tecnológico, condições para elaboração de uma base cadastral sobre os veículos, cooperativas e trabalhadores, a ser abrigada no servidor do PTI, além da elaboração de um manual de orientação sobre coleta seletiva. Com isso, o projeto poderá ser disseminado em outras regiões do País. Já se cogita a possibilidade de instituir uma linha de crédito por meio de instituições de fomento oficiais, voltada ao financiamento desses equipamentos para as cooperativas organizadas, onde os próprios catadores serão responsáveis pela administração do projeto.
Lindinalva Ferreira da Silva, 37 anos, sete filhos, há quatro anos acorda às 5 horas da manhã, deixa os filhos na creche às 7 horas e sai em busca de material reciclado. Anda, em média, oito quilômetros por dia puxando uma carga de cem quilos. Ao meio-dia chega ao depósito central onde entrega seu material e ajuda a separá-lo. Seu marido está doente e desempregado. Toda a família vive do que ela ganha revirando lixo pelas ruas. “Agora dá pra tirar uns 500 reais por mês. Antes era bem menos. Na semana passada me mudei para uma casa boa aqui na Vila C. Antes, morava num barraco”, comemora. Celso Araujo Silva, 42 anos, três filhos, é ‘piloto’ do carrinho elétrico. Há 20 anos trabalhando “no ramo”, diz que agora a vida está melhor. “Além de ganhar um pouquinho mais, não preciso fazer tanta força como antes”, afirma. Ele transporta cerca de 300 quilos por viagem e percorre, em média, 15 quilômetros por dia. Mas nem tudo é perfeito. “A coisa só vai ficar boa mesmo quando o Corinthians voltar para a série A no Campeonato Brasileiro”, diz às gargalhadas. É possível que 2009 seja um ano feliz para esse corintiano de sorriso largo, otimista e de bem com a vida. Que São Jorge o abençoe!
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