O Programa Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, é a boa nova nacional em matéria de enfrentamento ao fenômeno do crack. No centro do bairro da Luz, concentravam-se entre mil e 1,5 mil pessoas que chegaram a construir uma favela, que se tornou famosa por meio de páginas de jornais e telas de TV.
O governo do Estado intentou com várias investidas dissolver a chamada cracolândia. Desde 2009 até 2013, por diversas vezes a polícia conseguiu limpar as ruas do bairro da Luz de fumadores de cachimbos, maltrapilhos e outras pessoas em situação de rua.
Em 2012, ocorreu a famosa Operação Sufoco, que pretendia, com “crueldade e sofrimento”, tratar as pessoas que habitam e circulam por aquele território: homens e mulheres andando sem sentido e policiais conduzindo-os como gado, sem rumo pela cidade hostil. Essas procissões foram denunciadas pela Defensoria e Ministério Públicos e penalizada judicialmente. Centenas de pessoas foram presas e outras internadas em clínicas e comunidades terapêuticas. A opinião pública iludida aprovou a medida. Os semióticos ainda não decifraram o que revelam e manifestam essas imagens de miséria e fascínio.
Ainda não foi estudada a razão salvacionista que movimenta os tantos grupos de pessoas que vão inutilmente tentar salvar essas almas desgovernadas. Grupos religiosos, ONGs e o próprio poder público.
A ação higienista do Estado logo demonstrou seu fracasso, pois a maioria dos detidos e internados voltou às zonas de uso mais arredios e difíceis de abordar. A maioria das pessoas que habita e circula por lá já foi internada ou presa.
Em 14 de janeiro de 2014, depois de meses de planejamento e discussão com a sociedade civil, foi deflagrada a Operação Braços Abertos. Meses antes, foi criado um ponto de apoio para as pessoas participarem de grupos, oficinas culturais, se alimentarem e para intensificarem o vínculo com os profissionais dos Consultórios na Rua. O espaço, situado na Rua Helvétia, no epicentro da maior zona de uso do Brasil, recebeu o nome Braços Abertos, escolhido pelos usuários e trabalhadores em assembleia.
A Prefeitura, com participação de funcionários de várias secretarias, vários secretários e do próprio prefeito, contratou a desmontagem da favela e os passos seguintes. Pela primeira vez, o poder público desmontou uma ocupação irregular sem exclusão e sem violência. Com autoridade, inclusão e ação integrada.
O poder público já ofertava saúde, pois equipes de médicos, enfermeiros e agentes de saúde ofereciam cuidados e encaminhamento para Unidades Básicas de Saúde, Ambulatórios de Especialidades Médicas (AMAS), prontos-socorros e comunidades terapêuticas. Mas as equipes de saúde só se relacionavam com uma minoria de pessoas, pois a maioria rejeitava ajuda.
Como nas experiências de Housing First, realizadas em Nova York e em outras cidades, e já avaliadas positivamente, se ofereceu casa primeiro. Os programas Housing First já se demonstraram eficazes ofertando casa, sem exigir abstinência de usuários crônicos de álcool e outras drogas (parecidas com as usadas no Brasil).
Embora oferecer moradia fez diferença, pois hoje, das aproximadamente 400 pessoas que aderem ao programa, 60% procuram algum tipo de tratamento de saúde, Braços Abertos oferece um pacote de direitos, segundo a expressão de Roberto Tykanori, coordenador nacional de Saúde Mental: casa, comida, trabalho e saúde.
O Braços Abertos não foca na droga, mas nas subjetividades, nas biografias, na produção de novas grupalidades e na operação de contratualidades. O fato de as pessoas trabalharem inicialmente na varrição – hoje já está começando a funcionar uma fábrica verde para embelezamento da cidade e o comércio local está oferecendo vagas de emprego –, além do valor simbólico de os “sujos” estarem limpando e oferecendo algo à cidade, foi introduzido um novo fluxo no fluxo. Fluxo é o nome dado ao amontoamento de pessoas que fumam crack e que para se manter lá necessitam mendigar ou roubar para comprar e usar.
O dinheiro recebido semanalmente pelo trabalho cria uma nova duração, força uma temporalidade distinta da do imediatismo do crack. A maior parte desse dinheiro é usada para comprar materiais de limpeza pessoal, roupas e injeta mais de R$ 30 mil a cada semana no comércio local.
O conceito fundamental que orienta o programa é o de low threshold servisse, que significa baixo limiar de exigência e disparo. Na prática, essa nova metodologia é um mergulho ao fundo da complexidade.
Depois de lançado o programa, muitos foram embora com seus familiares, outros usam menos, alguns estão morando em unidades de acolhimento, que são casas onde os usuários moram durante seis ou oito meses, para reorganizarem suas vidas. Das 15 crianças que lá estavam, cinco voltaram para as suas famílias, cinco estão morando nessas residências e cinco permanecem nas ruas da Luz. Mas a repetição das histórias é inevitável. Os conflitos dentro das moradias e o mercado negro das drogas, bem como dos adulterantes, são inevitáveis.
Braços abertos é um trabalho em constante transformação. O território já é outro e muda a cada dia. A relação com a rede de unidades de saúde com os serviços de saúde mental, com a de assistência social e com o processo de trabalho das pessoas que já fracassaram no mercado formal é complexa e processual.
Experiências como a de São Bernardo do Campo, que é exemplar no gênero, mostram-se de uma complexidade enorme. A menor exigência dos usuários e maior disponibilidade e inteligência dos operadores.
Por tudo isso e pelo momento político que estamos vivendo, tudo pode ser atravessado por uma onda de ressentimento, de destruição e de produção de desesperança. Certamente, as críticas serão cada dia mais ácidas e deturpadoras.
Tomara que esse período de Copa do Mundo e de eleições passe logo, para que o Programa Braços Abertos possa sofrer as críticas construtivas que merece e venha a ter a continuidade necessária para adquirir consistência.
Assim como a ação higienista fracassada era inspirada na perigosa utopia da solução final, Braços Abertos é a solução inicial e, por isso, nos alegra como alegrara ao povo brasileiro a Copa Mundial de Futebol e tantas outras realizações que fazem do Brasil um País menos desigual e mais cidadão.
*Antonio Lancetti é psicanalista, autor de Clínica Peripatética (Editora Hucitec)
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