Entre Cristo e o crack

Humberto Machado tinha 27 anos quando decidiu se matar. A partida foi planejada depois da morte da mãe. A dúvida era o método: meter uma bala na cabeça ou tomar uma overdose de remédios? Optou pela segunda para não traumatizar a mulher, Soraia, que como ele era viciada e traficante, e os dois filhos. Antes, porém, Humberto quis dar uma festa. Nunca havia tido uma comemoração de aniversário e a hora era aquela. Em 15 de novembro de 1984, na periferia de Salvador, onde nasceu e morou, ele comprou uma boa quantidade de drogas (pó, crack e maconha) e muita bebida. Os convidados deveriam se divertir a valer. Quando a festa acabasse, ele pediria para a mulher tirar os filhos de casa e, então, terminaria com sua angústia. Mas, naquela noite, Humberto não teve coragem de se matar.

Perturbado e drogado, passou as semanas seguintes com a mesma ideia na cabeça. Em 31 de dezembro, sozinho em casa e muito louco, tomou dois fortos comprimidos com um copo cheio de conhaque. Enquanto a combinação invadia sua corrente sanguínea, pegou o Novo Testamento largado na cabeceira da cama e abriu em qualquer página. Era a história de Lázaro e ele, muito doido, diz que começou a ver a história como em um filme imaginário. Assustado com o episódio cristão, saiu de casa em delírio e entrou em uma igreja. Lá, deitou-se em um banco e só acordou com as pessoas se abraçando durante um culto.

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Ergueu-se a tempo de ser envolvido por muitos braços e, naquele instante, lembrou-se da ressuscitação de Lázaro. Decidiu ali que também iria renascer pelas mãos de Jesus e devia a Cristo se curar, virar missionário e começar uma nova vida.
Humberto Machado, agora com 54 anos e seis filhos, me contou essa história antes de iniciar o culto de uma igreja que fica aberta 24 horas por dia e compete com a vida maluca das drogas. “Como concorrer com o tráfico, com os puteiros, com as boates que nunca fecham? Só fazendo a mesma coisa.”

Há dois anos, ele é o líder da Cristolândia, que fica na Alameda Barão de Piracicaba, no pulmão da Cracolândia, centrão de São Paulo. Lá, ele e seus missionários, todos ex-usuários de drogas, dão abrigo, comida, café, banho e roupas limpas para os noias que estiverem dispostos a entrar.

É uma igreja improvisada, com pinta de centro comunitário. “Minhas portas estão sempre abertas. Quem quiser ficar, fica. Mas não obrigo ninguém porque sei, por experiência própria, que o cara só se cura se estiver disposto.”

Comida e banho
Aos sábados, o culto começa cedo para uma plateia de missionários – eles usam camisetas amarelas com as frases “Sua vida tem valor. Jesus ama você” – e noias de olhar vidrado. Enquanto o pastor faz o sermão, os missionários servem café e pão francês para os “convidados”.

A certa altura, ele avisa que, quando o culto acabar, quem quiser tomar um banho ali mesmo pode, desde que esteja disposto a jogar as roupas em um saco de lixo e aceitar uma doação de peças limpas. “O mundo está tirando o caráter das pessoas. Olhem aí fora. Tem gente que tem casa, que está na rua só para usar drogas. Vamos orar por eles, para que Deus lhes dê caráter. Mas para que Deus também dê caráter para os policiais que ontem passaram aqui com estilingue jogando bolinha de gude na cara desses homens e mulheres que estão doentes e devem ser tratados como doentes. Muita maldade, né? Somos todos criaturas de Deus.”

O pastor Humberto é aquele tipo de orador que fala as primeiras sílabas e deixa que o público complete as demais. Alex, um homem grande e forte que está sem usar crack há quatro meses, circula pelo ambiente, carregando bandejinhas com pão e café. “Isso aqui me salvou”, ele me diz. “Passei 19 anos nas ruas e um dia entrei aqui para não sair mais.” Pergunto se foi a outras igrejas antes daquela, e ele fala que tentou. “O pastor não julga a gente, só dá abrigo.”

Volto minha atenção para o sermão e ouço o pastor falando de uma oração criada por um amigo, ex-viciado, que começa assim: “Senhor, tenha misericórdia daqueles que estão agora na praia tomando aquela cerveja geladiiiiiiiinha…”. O salão vem abaixo. Como comediante de stand-up, Humberto é bem melhor do que muitos por aí. “Quando tentei me curar indo ao médico, o doutor receitou diazepan. Mas, doutor, a vida inteira tomei isso com conhaque.” Mais risadas.

Vida íntima no culto
Humberto conta que se curou ainda em Salvador, onde nasceu e morou durante anos. Recuperado, fez supletivo e estudou nas faculdades de Psicologia e Teologia, cursos que, afirma, foram concluídos. Também trabalhou na capital baiana como coordenador das penitenciárias da Bahia e chegou a ganhar um bom salário. Decidiu-se pela vida de pastor em Salvador. Há dois anos, foi convocado pela Junta das Missões da Igreja Batista, que paga o salário dele (não revelado) e toda a estrutura para atender os viciados, para trocar Salvador pelo Centro de São Paulo, na Cracolândia – algo em torno de R$ 70 mil mensais arrecadados de fiéis. A quantia custeia também os alojamentos que ficam na região, onde ficam os missionários já curados e não têm um lar, e usuários recém-chegados. “Isso aqui faço por amor, não por dinheiro. Na Cristolândia, não cobro dízimo e não aceito doações. Faço o que faço por dever de cidadão, por amor a esse povo.”

Humberto continua ao lado de Soraia – eles estão juntos há 30 anos. Com ela, teve outros quatro filhos, dois morreram. O casal adotou Beatriz, a quem o pastor chama de “minha caçulinha linda”. Todos trabalham para a igreja, inclusive Soraia, que também largou as drogas e o tráfico pouco tempo depois do companheiro. Junior e Diego, os mais velhos, dizem ter lembrança da polícia invadindo a casa da família em Salvador para arrastar o pai para fora dali. “Você acha que eles se recuperam de uma coisa dessas?”, pergunta o pastor à plateia, depois de descrever a cena. Todos respondem em voz alta e olhando para baixo: “Nããão!” O pastor vai contando detalhes da vida de viciado que levava. O público se identifica e, a cada menção a Deus, ecoa “Amém, Amém”.

O pastor cresce, fala mais alto, gesticula com mais firmeza, anda pela sala seguido pelo olhar atento de todos. Uma hora, cita o grupo de pagode gospel Tempero do Mundo: “O que fumava não fuma mais. O que cheirava não cheira mais. O que rebolava não rebola mais. Jesus Cristo venceu satanás”. Todos riem. “Olho para vocês e vejo o inimigo tentando destruir. Mas também vejo Deus dando as mãos. Acredito em vocês e só saio daqui depois que o último for embora”, diz, antes de completar com voz brava: “Mas não usem droga aqui na porta. Se usarem, não é a polícia que vai pegar vocês, sou eu. Escutaram? Quer fumar pedra? Vai lá para a esquina. Vocês são bem-vindos aqui dentro, vou dar comida e bebida, não vou abandonar ninguém, mas não fumem aqui na porta!”.

Cristolândia em filiais
O culto acaba, ele me diz: “Vê se a Igreja (Católica) do outro lado da rua abre suas portas? Abre nada! Tem uns 20 padres e ninguém vem aqui ajudar. Coloca aí no texto: o padre Mauro, que vinha todos os dias, foi transferido. Eu não. Estou aqui todos os dias. Esse é meu trabalho e vou invadir todas as cracolândias do Brasil e do mundo.”

Já há, inclusive, unidades da Cristolândia no Rio, em Recife e Vitória. Outras estão sendo abertas em Belo Horizonte e Brasília. Humberto, que critica a forma como a polícia de São Paulo entrou na Cracolândia, embora ache que alguma coisa precisava ser feita, é o coordenador das filiais. “Fizeram tudo errado. O Estado não está preparado. Essa gente não precisa de algema, precisa de abraço.”

Ele me convida para conhecer outras dependências da igreja e me mostra um minúsculo dormitório com muitos beliches.
“Aqui dorme o meu pelotão que vai para as ruas”, explica, referindo-se aos missionários que saem pela Cracolândia na esperança de convencer usuários a trocar as pedras de crack pelas palavras de Cristo.

Nesse quartinho, sou apresentada a Eduardo, um homem corado e forte. “Ele tem HIV”, conta o pastor, colocando as mãos no ombro do rapaz, que confirma o vírus, balançando a cabeça. “Os pais ainda têm restrições com ele, então mora aqui.” O rapaz está ao lado do pastor há um ano e meio.

De lá, seguimos para a rua e passamos por noias largados na sarjeta. “Olha aquele homem ali. Você acha que ele é diferente de você ou de mim? Isso não é um cachorro, é um ser humano que tá aí precisando de ajuda. Eu não vou ajudar?” Ao nos aproximarmos dele, o pastor abaixa-se, coloca as mãos na cabeça imunda do rapaz e dá bom dia.

De lá, o pastor me leva a subir uma escada estreita e escura, que dá em um lugar com muitos outros beliches. Lá está Aílton: filho de pais alcoólatras, ex-feirante e morador de rua, HIV positivo, perdeu a família para as drogas e se instalou na Cracolândia, onde conheceu Humberto. Está limpo há dois anos. “Em dezembro, descobri que estava com câncer. O Pastor me levou ao hospital, ficou comigo antes e depois da operação que tirou o meu tumor. Ainda estou fraco, mas o Pastor me dá força. Ele é como um pai.”

No caminho de volta para a igreja, ele me fala de Estela, negra de sorriso largo, maroto e contagiante, hoje missionária – antes, era traficante e gostava de dormir com mulheres. Aproveito o comentário do pastor para perguntar se ele acha que os homossexuais são coisa do diabo. “Não, não! Não estou preocupado com o ato, mas com a pessoa. Pode ser homossexual e ter uma vida abençoada, o prestar conta não é comigo.”

Na despedida, Humberto aperta a minha mão e fala: “Precisamos nos tolerar mais. Precisamos nos respeitar mais”. Diz isso e volta para sua igreja, agora ainda mais cheia de noias.


Comments

4 respostas para “Entre Cristo e o crack”

  1. Avatar de Raimundo Nonato Guimarães
    Raimundo Nonato Guimarães

    Tenho lido vários depoimentos e assistido o Testemunho do PR Hmberto Machado, que tem sido muito importante para mim.

  2. Avatar de adenilde pereira dos santos
    adenilde pereira dos santos

    eu amo esse projeto e contribuo com ele através de orações, financeiramente,e nas campanhas de doações, não é muito, mas sei que Deus multiplica pois contribuo com amor. conheço o projeto e sei que é verdadeiro e é de Deus. POR FAVOR CONTRIBUAM TAMBÈM. pois o gasto é grande, pq quando as pessoas são retiradas das ruas não tem roupas,calçados,precisam ser alimentadas, Precisam de material de higiene pessoal e outros mais. Não tem ajuda do governo,mas voce pode ajudar a salvar vidas. Que Jesus te abençoe

  3. Eu conheço o trabalho que é realizado na Cracolândia, mas cada vez que vejo este projeto divulgado na mídia me dá uma satisfação diferente. Muitas vezes a mídia gosta de dar ênfase aos problemas e se não para as soluções encontradas, neste caso, sabemos que a Cristolândia, por enquanto, não vai tirar todos das drogas, mas é um ótima resposta para aquelas pessoas que realmente são invisíveis para a sociedade. Milly Lacombe está de parabéns pela matéria.

  4. Muito legal. A matéria mostrou que os viciados são mais do que um número. Eles tem uma história.

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