Parece uma festa em um ateliê coletivo. Não deixa de ser. O Bistecão Ilustrado é um encontro que reúne ilustradores, quadrinistas, cartunistas, chargistas, designers e artistas gráficos de São Paulo desde 2007. Veteranos – como Hiro, Angelo Shuman e Ricardo Antunes –, iniciantes e gente que largaria tudo para virar desenhista vão ao Bistecão para conversar, mostrar seus trabalhos e comentar os dos outros, discutir ética profissional, chorar as pitangas, maldizer um cliente mala e, no meio disso tudo, desenhar e pintar nos papéis sobre as mesas, em cadernos e ou em qualquer suporte que aparecer.
O encontro acontece toda última sexta-feira do mês, no segundo andar do restaurante Sujinho, na Avenida da Consolação, em São Paulo, regado a cerveja e refrigerante e temperado com bistecas e outros petiscos da casa. Chega a durar sete horas, reunir até 150 pessoas – com idades que variam dos 20 e poucos aos 60 e tal – e resulta em centenas de desenhos.
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Todos desembolsam R$ 5 para concorrer a um sorteio. Papo vai, rabisco vem e, a dada altura, o organizador e mestre de cerimônias, o desenhista Hiro, saca um megafone e conduz a brincadeira. Livros, revistas, gravuras e desenhos em suportes improváveis, como tábuas de bater carne, são distribuídos. “O restaurante começou a estranhar o fato de pegarmos pratos e xícaras deles e desenharmos com caneta para sortear. Comecei a comprar pratos e louças, mas a aderência da tinta de certas canetas era péssima. Então, passei a comprar tábuas de carne, pois a madeira aceita melhor a tinta”, diz Kako, criador do Bistecão. Ao final do encontro, cada um paga sua conta de comida e bebida.
Hiro, 46, herdou de Kako, fundador do Bistecão e um dos grandes ilustradores de publicidade do País, o bastão de organizador. Ele abre e fecha o evento há três anos, cuidando de todos os detalhes. “No começo, ficava tímido de aparecer. Mas quando vim, me senti acolhido. Nem sabia que as pessoas me conheciam. Aprendi muitas coisas sobre a profissão aqui”, conta.
Hiro é lenda viva para os ilustradores mais novos e um “caso” na publicidade. Formado em Biologia, foi diretor de arte e é campeão de tiragem no País. Foi ele quem criou, em 1995, as toalhinhas ilustradas do McDonald’s – que têm impressão de 14 milhões de exemplares por lâmina. Calcula que já foram 3,5 bilhões de toalhas impressas. Foi também criador das caixinhas do McLanche Feliz. Em 2005, virou autônomo. Ainda cria, ilustra, escreve e diagrama as lâminas de bandeja e se especializou em ilustração infanto-juvenil.
Para Angelo Shuman, ilustrador de publicidade e editorial, com 43 anos de experiência, o Bistecão é também uma oportunidade de reciclagem. “Rompe o isolamento do desenhista”, comenta.
“A profissão não tem sindicato, não tem código de conduta, tabela de preço. O Bistecão virou um centro de informação ética para os profissionais”, acrescenta Hiro.
Ricardo Antunes, 46, criador da revista eletrônica bimestral Ilustrar.com, da Editora Reference, e moderador do maior grupo de ilustração no Brasil, com mais de 1.700 pessoas, concorda com Hiro. Para ele, o Bistecão ajuda na defesa da profissão. E ele entende do babado. É organizador e um dos criadores do Guia do Ilustrador, sucesso no meio, que já tem 104 mil downloads. O Guia traz informações sobre portfólios, contratos, leis e dicas de como cobrar pelos trabalhos. Foi Antunes que trouxe para o Bistecão, em 2011, a memorável visita do grande criador de cartazes de cinema e desenhista de divas e pin-ups Benício, para o lançamento do livro Sex & Crime: The Book Cover Art of Benicio (Editora Reference).
No andar de cima
A história do Bistecão começou quando Kako, 36, que desenha para Nike, Sony, F/Nazca, Saatchi & Saatchi, Lew’Lara, DM9DDB e também The Washington Post, Playboy e ESPN, resolveu chamar um grupo de colegas para comer uma bisteca perto de onde morava, no bairro da Consolação.
Era 2007 e ele cumpria a rotina de muitos designers gráficos – trabalhava em casa e ficava sozinho a maior parte do tempo. “Todo mundo que eu convidei achou legal a ideia.”
Nesse encontro, foram meia dúzia de ilustradores. Montalvo, 45, estava entre eles. “Além de trabalhar horas sozinho, o ilustrador tem assuntos que não interessam para as outras pessoas. Eu atendi ao primeiro chamado do que viria a ser o Bistecão”, conta. Ele também faz ilustração para publicidade e editorial, em revistas como Superinteressante, Playboy, National Geographic, e dá aulas de ilustração.
A conversa em torno da bisteca foi boa e novos encontros foram marcados. Cada pessoa trazia conhecidos. Fóruns e blogs ajudaram a espalhar os chamados entre os membros da comunidade de ilustradores. Como sempre tinha gente nova no dia do encontro, Kako colocava um cartaz na porta do restaurante avisando: “Bistecão no andar de cima”. E foi assim que nasceu o nome.
Seis meses depois, o grupo já tinha 40 pessoas. Em 2008, já eram 80 e o evento se tornou mensal. “De forma espontânea e natural, começamos a desenhar nos encontros. Coincidiu com a febre de sketchbooks, cadernos de esboços. Mostra caderno daqui, mostra caderno dali, começamos a desenhar um no caderno do outro”, conta Montalvo.
Depois de ir a um restaurante que deixava giz de cera e papéis cobrindo as mesas, Kako resolveu absorver a ideia para o Bistecão. “Para as pessoas que não traziam cadernos ou canetas poderem participar”, diz. “No primeiro dia que colocamos os papéis, às 4 horas da manhã, supercansados, eu, o Hiro e o Kako nos perguntamos o que fazer com aquela montanha de desenhos. O Kako propôs fazer uma pira gigante em honra a algum deus da ilustração!”, ri, Montalvo. Ele era o único que tinha espaço em casa e acabou ficando com o patrimônio. “Sou como o porão da Pinacoteca.”
Levou os papéis para casa, fotografou e cortou os originais para fazer cadernos. Durante algumas semanas, junto com um grupo de voluntários, fizeram 100 cadernos com folhas recolhidas dos Bistecões, que servem de suporte para os desenhos dos artistas.
Durante alguns anos, o Bistecão tinha também uma aparição à meia-noite. “Era incrível. Você via mais de 150 caras quietos, respirando e desenhando juntos”, conta Kako. A ideia foi da designer Rosana Urbes. Para a turma que era disposta a virar a noite desenhando, o Bistecão contratava uma hora de modelo vivo. A empreitada foi batizada de Modelo da Meia-Noite, durou cerca de dois anos, mas for interrompida em meados de 2011.
Filhotes
O Bistecão deu cria. O evento, já definido como “franquia idealista, sem contratos ou fins lucrativos”, inspirou a criação do Baião Ilustrado, em Fortaleza; do Trem Bão Ilustrado e do Tropeirão Ilustrado, em Minas Gerais; do Rabiscão, em Brasília; do Berbigão Ilustrado, em Florianópolis; do Empadão Ilustrado, em Goiânia; do Costelão Ilustrado, em Curitiba; e do Feijão Ilustrado, no Rio. “O Feijão é o filhote mais novo. Comandado por Renato Alarcão, já no primeiro encontro, teve 240 pessoas. Eles têm um lance mais performático, com modelo vivo encenando pequenos temas e fazendo números de circo”, conta Montalvo.
Antonio Sandes, 28 anos, publicitário e diretor de arte da DM9DDB, é um dos frequentadores do Baião Ilustrado de Fortaleza. Ele conta que o Baião, criado em 2009, tem também fotógrafos, artistas plásticos e já faz parte do calendário cultural oficial da cidade, com lugar cativo em um quiosque no Passeio Público. “A prefeitura tinha um projeto de revigorar o Centro e o Baião se integrou.”
Em Goiânia, o Empadão Ilustrado foi organizado pelo coletivo Fake Fake, formado por 12 ilustradores. Segue o menu dos irmãos Aos Ilustrados. “Nós desenhamos, expomos, rola um som bacana… Não se paga nada, apenas o que consumir, mas tem a caixinha do evento que dá direito a um sorteio”, diz a descrição do grupo no perfil do Facebook. Os Fake Fakers também promovem maratonas com inspiração no Sketchcrawl.
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