Entre dois amores suburbanos

A FALSA LOURA DA FREGUESIA

Carlos Reichenbach tem um caso de amor com as mulheres. Seu novo longa traz a última de uma série de heroínas que ele desfila pelas telas desde 1975. Rosanne Mulholland interpreta Silmara, a vênus oxigenada da Freguesia do Ó. Para fugir do cotidiano, ela consome revistas de fofocas e freqüenta programas de auditório. Enquanto sonha com um galã, precisa se contentar com o bad boy da periferia.
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Silmara (Rosanne Mulholland) é linda. Se formos seguir o anedotário, trata-se de uma loira que só poderia ser falsa, pois não é nada burra. No máximo, ingênua, se é que uma suburbana pode se dar a esse luxo. Operária, vivendo na periferia com o pai ex-presidiário, Antero (João Bourbonnais), Silmara tem na beleza seu maior trunfo. E sua perdição.

Ao esquivar-se das tentações óbvias, acaba por iludir-se com fantasias mais óbvias ainda. Mas segue. E de cabeça erguida. A heroína de Falsa Loura, o 15º e mais recente filme do gaúcho radicado em São Paulo Carlos Reichenbach, é típica dos filmes do diretor.

A mulher proletária, explorada, vista em Lílian M. (1975) e Amor, Palavra Prostituta (1982), a herdeira direta da professorinha Dália, vivida por Betty Faria em Anjos do Arrabalde (1986), um desdobramento de Aurélia Schwarzenêga, personagem de Michelle Valle em Garotas do ABC (2003). No caso deste último, a herança é literal. Esse trocadilho com o ator/governador Arnold Schwarzenegger dava nome ao primeiro dos quatro roteiros propostos à Fundação Vitae por Reichenbach em 1995.

Inspirado na saga de 15 episódios rodados pelo cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, Berlin Alexanderplatz, Carlão criou seis histórias vividas pelos mesmos personagens em uma mesma locação, batizando o projeto de ABC – Clube Democrático. Realista, reduziu de seis para quatro o número de roteiros e acabou filmando apenas o citado Garotas do ABC – viriam em seguida Anjo Frágil Antuérpia, Lucineide Falsa Loura e A Fiel Operária Suzy Di.

O Falsa Loura que agora chega às telas teve sua ação transferida do ABC para os arredores de São Paulo – a maior parte das cenas foi filmada na Freguesia do Ó. Como em Anjos, a metrópole é vista ao fundo, Niterói vendo o Rio, Nova Jersey vendo Manhattan. A protagonista é outra. Mas a grande novidade é tratar-se de “quase” um musical.

Repetindo a parceria de Garotas do ABC, Carlão trabalhou com o maestro Nelson Ayres. Mais uma vez contou com a colaboração de Marcos Levy para criar a trilha evocando desde pop romântico brega até Bach, partindo das orquestrações de Les Baxter, um gênio excêntrico que fez arranjos para Nat King Cole e trilhas para filmes de Maciste, além de compor a trilha do seriado Lassie.

Grande parte das músicas incluídas no filme foi feita e gravada antes. As cenas foram coreografadas para seguí-las, o que não deixa de ser uma novidade em se tratando de Carlão, um diretor e fotógrafo acostumado a escolher as angulações na hora das filmagens de acordo com o ambiente. Segundo o diretor, as inovações tecnológicas o deixaram ainda mais à vontade, facilitando a confecção de efeitos, fusões, fades, detalhes cenográficos que geralmente passam despercebidos e que antigamente – quer dizer, há três, quatro anos – atrasavam, e muito, o término da produção.

Desta vez o diretor voltou o olhar para a garota típica freqüentadora de programas de auditório, consumidora de revistas de fofocas, capaz de gastar todas as suas economias para ver seu ídolo ao vivo. No caso, no Clube Alvorada – sucedâneo do Democrático na cosmogonia de Reichenbach. Para fugir do cotidiano avassalador, Silmara sonha.

Tanto com o inatingível e iglesiano Luiz Ronaldo (Maurício Mattar), “um misto de John Travolta e Sílvio Santos”, na avaliação de Carlão, quanto com o bad boy Bruno de André (Cauã Reymond), líder do improvável Bruno e Seus Andrés, que chega a ir à casa da garota com o ônibus do grupo para levá-la para uma baladinha. Sonhos musicais.

Para as colegas da tecelagem a própria Silmara é um ídolo. Todas projetam suas fantasias na garota loira, a começar pela simplória Milena (Suzana Alves, a Tiazinha, excelente). Silmara se preocupa muito com Briducha (Djin Sganzerla, filha do cineasta Rogério Sganzerla e da atriz Helena Ignez), uma feiosa que transforma em princesa com a ajuda de Regina (Luciana Brites), uma professora de dança cujo interesse pela loira é óbvio. Como se não bastasse, a garota é o único elo entre o pai, um incendiário, e o irmão caçula, Tê (Léo Áquilla), cabeleireiro e travesti, que vive uma vida à parte. Um não concorda com o modo de vida do outro, e Silmara precisa se dar bem com os dois.

A vida da loira linda não é moleza. Segundo Carlão, a atuação de Rosanne, que foi aplaudida em várias exibições em cena aberta, a exemplo da de Áquilla, é o ponto alto do filme. Ela está presente em quase todas as cenas e sua segurança e expressividade, aliadas à beleza, é claro, de certa forma determinaram a mudança do final do filme – na verdade Carlão exibiu o filme para a filha, sua “platéia privada” que, para desgosto do cineasta, “não entendeu” o final que havia imaginado antes, com o elenco em cena. Billy Wilder deixou filmado: “ninguém é perfeito”.

Enquanto cuida do lançamento de Falsa Loura, Carlos Reichenbach engendra seu próximo trabalho. O que ele tem em mente é uma espécie de retorno a Filme Demência (1987), em que misturou sua história pessoal com Fausto, de Goethe. Carlão quer, novamente tendo Ênio Gonçalves como alter ego, voltar ao que o transformou em cineasta. À primeira imagem, que havia esquecido desde sempre, e que lhe reapareceu quando teve o terceiro infarto. Tem como título O Mar das Mulheres Finais. Vamos aguardar.

UM GAÚCHO DE ALMA PAULISTANA
Nascido em Porto Alegre em 1945, Carlos Reichenbach chegou a São Paulo aos 2 anos e hoje seu nome se confunde com o da cidade. Não foi à toa que estudou com Luís Sérgio Person na extinta Escola Superior de Cinema São Luiz, onde foi parar com a morte prematura do pai, rico empresário do ramo editorial.

Tal formação e a aproximação com o núcleo de produções baratas que viria a ser chamado de “Boca do Lixo” moldaram sua carreira, marcada por filmes irreverentes e cheios de citações filosóficas – o que vale tanto para o pornô A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979) quanto para o cerebral Alma Corsária (1994). Em 1986, Carlão venceu o Festival de Gramado com Anjos do Arrabalde.


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