Entre o céu e o inferno

Ana Miranda - Foto: Divulgação/Companhia das Letras
Ana Miranda – Foto: Divulgação/Companhia das Letras


 
Ela nunca achou que fosse se tornar escritora. Influenciada pelo pai, que ajudou a construir Brasília, estudou primeiro arquitetura e arte. Depois virou atriz do Cinema Novo e assistente de direção. Cearense, nascida em 1951, morou no Rio num dos momentos mais esquizofrênicos de nossa história, em que a truculência da ditadura convivia com a poesia marginal, a tropicália e as dunas de Gal. Foi quando, já exímia desenhista, se aventurou na poesia. Incentivada pelos amigos, lançou o livro. Mas considera que sua carreira realmente começa em 1989, com a publicação de Boca do Inferno, romance histórico recebido com grande entusiasmo pela crítica e sucesso de vendas. O livro, que trata de um episódio de disputas acirradas na Bahia, envolvendo o poeta Gregório de Matos e o padre Antônio Vieira, foi premiado com um Jabuti e traduzido para várias línguas. Desde então Ana se firmou como uma das maiores autoras brasileiras, ganhando inúmeros prêmios e lançando outros sucessos, alguns deles também com escritores como personagens. Dias e Dias, por exemplo, traz Gonçalves Dias, e A última Quimera tem Augusto dos Anjos como tema. Ano passado lançou Semíramis, em que José de Alencar se desenha sob o olhar de duas irmãs. Ana também escreveu livros infantis e juvenis, e tem publicadas duas coletâneas de suas crônicas para jornais e revistas. Musa Praguejadora é sua primeira biografia propriamente dita. O livro traz desenhos seus feitos sobre gravuras da época e trechos semi-ficcionais, inspirados diretamente nos poemas de Matos, que se debatia entre os amores carnais e espirituais, a religião e o escárnio, a política e a boa vida. 

Brasileiros – O que te levou a voltar a Gregório de Matos, agora na forma de biografia? E o que te atrai particularmente no personagem?
Ana Miranda: Quando escrevi o romance Boca do Inferno, sentia o fascínio da descoberta daquele personagem tão controvertido de nossa história literária. Naquele momento ele significava para mim não apenas a aprendizagem de uma escrita, mas também representava o que eu estava sentindo: necessidade de abandonar os meus “privilégios”, como emprego e segurança, para me entregar à arte. Foi o que ele fez, e foi o que eu fiz. Além disso, era um homem que sofria as consequências de um governo militar opressivo, num momento que me fazia lembrar o que eu e o País estávamos vivendo ainda nos anos 1980. Aquela situação colonial desvendava as origens das mazelas sociais e políticas brasileiras de hoje. Acima de tudo, havia o encanto pela fonte literária que a obra de Gregório despertava em mim, cada palavra ou expressão descobertas me entusiasmavam, como se eu fosse uma arqueóloga. E o fascínio por sua rebeldia, e um certo romantismo que eu projetava na sua trajetória de perseguido, incompreendido, exilado, apaixonado. Hoje, ele faz parte de minhas lembranças, como um velho amigo ou amante.

 

Musa Praguejadora, novo livro de  Ana Miranda - Foto: Divulgação/Record
Musa Praguejadora, novo livro de Ana Miranda – Foto: Divulgação/Record

Como se deu a feitura do livro? Imagino que tenha envolvido uma pesquisa bastante ampla. Fez alguma descoberta nova?
A vida do Gregório de Matos é uma das mais bem documentadas em nossa história colonial, uma vez que seus poemas/crônicas servem como autobiografia desse poeta. Não me interessavam datas, certidões, registros, impressões locais – embora eu os tenha usado – mas a reconstrução de uma vida humana, brasileira, poética, emocional, e a reconstrução dos costumes daquele período, que nos dizem respeito. A vastidão do material, somando-se tudo, era espantosa, eu sentia como se precisasse montar um quebra-cabeças de milhares de peças. E tudo se encaixava perfeitamente, não apenas de forma racional, mas também intuitiva. Para mim era natural reviver as cenas, pois sou bastante familiarizada com aquele tempo, como se tivesse realmente vivido com o Gregório. As cenas me vêm à mente muito nítidas. Era espontâneo descrevê-las, como se eu estivesse descrevendo minhas próprias memórias.

O que mudou em sua visão do Gregório de Matos do tempo de Boca do Inferno pra cá?
O romance Boca do Inferno aborda um período muito breve da vida do Gregório, os dois anos desde que ele voltou ao Brasil como desembargador, até a deposição do governador Braço de Prata. O foco da trama era a perseguição política deflagrada pelo assassinato do alcaide-mor. E o foco do livro, em si, era a expressão literária, a construção de uma linguagem a partir do belo semblante do período barroco. Na biografia, a Musa Praguejadora, acompanhei seus passos desde a saída de seu avô de Portugal. Fiquei conhecendo-o melhor. Adquiri uma consciência muito maior de sua felicidade e infelicidade, porque percorri os poemas, reescrevendo-os em prosa, tentando traduzi-los. Mas ele continua a ser o mesmo, um sujeito de extraordinário talento, profundamente dilacerado entre opostos, como o erudito e o popular, o vício e a virtude, a fé e a descrença, o amor e o ódio, o céu e o inferno, enfim.

 

Como você acha que o Gregório de Matos seria hoje, na era da internet?
Se ele já tinha tanto poder de opinião dispondo só de uns manuscritos pregados nas portas das igrejas ou distribuídos de mão em mão, imagine o que ele não faria com um instrumento de informação mundial, como a internet! Por outro lado, o mundo não era fragmentado como hoje; na Bahia ele era uma das poucas vozes a clamar, junto com o padre Vieira, e a comunicação se realizava por meio da poesia/crônica e dos sermões na igreja. Mas, assim como ele adaptou a poesia para algo compreensível pelo povo, ele faria o mesmo, na internet. Junto com o padre Vieira, ele fazia o papel da imprensa de hoje, a falada e a escrita. Dizem que ele foi o primeiro jornalista brasileiro. Mais do que isso, acho que ele foi a própria Imprensa.

Musa Praguejadora usa muitos recursos da ficção para preencher as lacunas factuais ou mesmo para dar uma ideia mais aproximada e subjetiva da atmosfera da época e lugares. Seus desenhos parecem cumprir um pouco essa função também, além de fazer um certo comentário da ação. Ambos elementos colocam o livro num gênero híbrido; é uma biografia sui generis, por assim dizer. Você é uma leitora de biografias?
Sim, gosto de ler biografias, tanto as acadêmicas como as romanceadas. Claro que tenho uma queda pela ficção, pelo poder que a ficção tem de reconstruir um tempo perdido. Ou de revelar uma vida, uma pessoa, e a própria humanidade. O Engels escreveu que tinha aprendido muito mais com o Balzac do que com todos os historiadores, economistas e estatísticos juntos. E isso eu sentia todo o tempo, quando estava escrevendo o Musa Praguejadora. Quando estava nas partes escritas em forma de ficção, tinha uma visão muito mais ampla do assunto. As partes documentais são magnéticas, funcionam como provas, dão um ar de “verdade”. Mas a “realidade” estava nas poesias. Resumi esse sentimento na epígrafe do livro: os ficcionistas são historiadores que fingem estar mentindo; e os historiadores, ficcionistas que fingem estar dizendo a verdade.

Para a sensibilidade contemporânea, alguns dos costumes descritos no livro podem chocar um pouco. Penso, por exemplo, na condição da mulher, que, se não era escravizada de fato, o era no casamento, no claustro, ou na prostituição. E ainda morria como bruxa na fogueira, ou na hora do parto.
Sim, todos sabemos o quanto a mulher foi oprimida pela Igreja, pelo marido, pelo pai, pela sociedade, até por si mesma. Havia todo um sistema de sujeição feminina, destinado a controlar o instinto sexual e a organizar a família. A mulher que não se submetesse ao seu papel de procriadora, mãe, esposa, contida, obediente, silenciosa, era demonizada. O seu corpo era tão assustador como a sua alma. Mas as mulheres encontravam saídas, muitas trabalhavam, sustentavam suas proles, dançavam nas festas, namoravam. Na Bahia as negras e mulatas eram donas das ruas, e mesmo no convento de Santa Clara do Desterro as moças de família tinham certas liberdades. Controle nunca foi o forte do lado de baixo do Equador. E, no caso da obra de Gregório, a mulher é a protagonista. Ele as adorava, se arrastava aos seus pés, fossem moças de família ou prostitutas das ruas. Seus poemas de amor são súplicas por uma retribuição amorosa.

Já que toquei nesse assunto, como vê a condição da mulher hoje?
A mulher está se saindo muito bem diante do grande desafio que é a harmonização entre administradora no lar e trabalhadora na sociedade. Dominando ao mesmo tempo os reinos subjetivo, pessoal e profissional, ela tem se tornado um ser mais pleno, independente, e mais capaz de compreender o mundo. Ainda persiste o preconceito, como as diferenças de salário e de respeito, a violência doméstica. O trabalho feito por uma mulher precisa ser imensamente superior para receber o mesmo reconhecimento do equivalente trabalho feito por um homem. Mas isso não deixa de ter seus aspectos positivos, estamos treinando para uma excelência profissional. A família, o sexo, as artes e a literatura são meios permitidos à mulher. O problema maior é nas posições de poder social ou econômico.

Na hora de escrever, é muito diferente para você se o ponto de vista é de um personagem feminino ou masculino?
Não, Daniel. Na literatura o gênero sexual nunca importou. Os escritores homens sempre foram seres humanos de grande sensibilidade e capazes de se transformar no seu oposto. Faz parte da natureza da ficção essa alteridade, que atravessa não só a identidade sexual como também o espaço, o tempo, ou qualquer situação. No entanto, escrever com a voz de uma mulher narradora me deixa muito mais à vontade, mais pelas minhas instâncias interiores, de estar cumprindo uma sina. E me dá a oportunidade de uma narrativa mais original, como foi no Desmundo, em que visitei o começo da nossa história colonial de um ponto de vista inédito.

A sensualidade é uma constante nos seus livros e desenhos. É um aspecto que, de certa forma, pautou as escolhas de seus temas? Como vê essa literatura erótica que tanto sucesso faz atualmente?
Seria bom lembrar que erotismo e sensualidade são diferentes. O erotismo é ligado à paixão amorosa. Meus livros ou desenhos não são eróticos, mas são sensuais, tudo o que faço tem uma sensualidade visível, sob o ponto de vista de haver sempre a presença dos sentidos. É uma característica da minha pessoa, um ser de certa forma kantiano, que percebe o mundo pelos cinco sentidos – visão, olfato, tato, audição e gosto, além de um sexto sentido, o da intuição. Sou muito permeável às sensações externas, e respondo imediatamente com uma sensação interior. Além disso, não tenho barreiras contra o lado onírico do mundo, ao contrário. E os sonhos são puros sentidos, com uma forte pulsão sexual. Assim, a sensualidade é inerente à minha escrita, sem nenhuma premeditação. Não tenho um interesse especial pela literatura erótica. Li alguns clássicos, de Anaïs Nin, Apollinaire, ou Lautréamont, Sade, Masoch, e o belo Kama Sutra. Gosto do erótico de João Ubaldo Ribeiro, A casa dos budas ditosos, que é uma fábula. E gosto muito das cenas de sexo nos livros do Rubem Fonseca, escritas com maestria. O obsceno entra no Boca do Inferno por interferência da poesia do Gregório de Matos e dos satíricos de seu tempo; ou, no caso de meu romance Amrik, pela influência da literatura árabe, como por exemplo Os campos perfumados, de al-Nafzawi, um escritor tunisiano, com todo o esplendor das imagens carnais. Não acho que o grande sucesso da literatura erótica exista. É só o caso de um livro, que dizem agradar mais pela história de amor entre a moça e o milionário, como um conto de fadas erotizado.

Quando, exatamente, soube que queria ser e seria escritora? E como foi esse momento?
Nunca almejei ser escritora, escrevia por necessidade íntima e para mim mesma, querendo ecoar as obras literárias que me seduziam. Descobri que era escritora quando o Boca do Inferno foi publicado com uma visibilidade tão imensa que não dava para voltar atrás. Quando estava começando a escrever um primeiro romance, antes do Boca do Inferno, senti que era um tipo de trabalho muito conveniente para mim, eu sofria com a minha versatilidade e o romance é tão amplo que nele cabiam todas as minhas experiências, com o teatro, o desenho, o cinema ou a poesia.

E os seus seus tempos de poeta, que foi quando começou, de fato, sua carreira?
Nunca fiz carreira como poeta, seria uma pretensão demasiada, não tenho talento para a poesia, e sim para o romance. Tanto que o meu senso poético se mostra mais nos textos de prosa. Escrevi versos desde a infância, e publiquei um primeiro livro, Anjos e demônios, por insistência de amigos, já que eu tinha um caixote cheio de manuscritos. O meu talento mais forte talvez seja para o desenho. Mas a poesia é o gênero que mais admiro, talvez por ser o mais difícil.

Ainda escreve poesia?
Raramente. Tenho uma cabeça imaginativa, e poesia não se escreve com imagens, e sim com sensações. Isso combina muito bem com o romance, mas não com a poesia, embora existam maravilhosos poetas imaginativos, como o João Cabral, o Maiakovski, talvez o Bandeira, o Ginsberg. A poesia para mim hoje se expressa quase somente nos romances, em forma de linguagem e não de construção interior. De vez em quando fico inspirada e anoto alguns versos que me vêm à cabeça, em geral como resposta a uma leitura de poesia. Mas nunca paro de desenhar, tenho mais de mil desenhos guardados, estou sempre encontrando tempo para desenhar.

Muitos dos personagens de seus livros são poetas, como o Gregório de Matos, o Gonçalves Dias e o Augusto dos Anjos, ou romancistas, como José de Alencar e Clarice Lispector. Como se deu a escolha destes nomes? Tirando a literatura, há outro aspecto que os une?
Com exceção da Clarice, todos os meus personagens literários são de uma mesma família literária, com uma obra mais telúrica, voltada para um mundo em que o exterior e o interior têm pesos semelhantes. A Clarice é bem diferente, é interior puro, abstração, sensação, uma obra sem quintal, como diria o Suassuna. Não sei o quanto eu os escolhi e o quanto eles me escolheram. Sei que todos foram mestres para mim. E que eu retribuí tornando visíveis todas as minhas influências e dívidas.

Você escreveu crônicas para pelo menos três veículos diferentes, Caros Amigos, Correio Braziliense e O Povo. Conta um pouco do que tratavam essas crônicas, da recepção que elas tinham e das diferenças de registro entre elas e seus livros de ficção.
Na Caros Amigos, onde escrevi por uns vinte anos, eram crônicas ou artigos com o mesmo teor da revista, pendendo para uma postura mais politizada, com uma preocupação social. No Correio Braziliense escrevo há mais de dez anos, dentro de uma proposta do jornal, de trabalhar com a memória de Brasília, que se confunde com a minha memória pessoal, pois vivi na cidade durante sua construção. Também a proposta de O Povo, um excelente jornal cearense para o qual colaboro há uns cinco anos, foi de elaborar as minhas memórias pessoais sobre a cidade de Fortaleza, onde nasci e vivi meus primeiros anos. Quando saiu o Boca do Inferno fui convidada a escrever em muitos jornais e revistas, mas estava determinada a não aceitar para não atrapalhar o meu trabalho de romancista, que estava se formando. Aceitei o convite da Caros Amigos porque achava que a revista ia durar uns dois números. E os dois outros, pelo interesse em elaborar memórias pessoais, o que não faço nos romances – a não ser vicariamente. A comunicação com o leitor de crônicas é bem mais imediata e nítida. E sinto que tanto em Brasília como no Ceará as minhas crônicas têm servido como uma espécie de guia de elementos culturais para esses lugares. O registro é outro, não são a mesma, a cronista e a romancista. E a romancista ajuda muito mais a cronista do que o oposto.

Veja outros livros da autora:

Você trabalhou como atriz e assistente de direção no cinema. No entanto, pouco de sua obra foi adaptada para a tela grande. Certamente não é por falta de interesse. Há alguma razão para isso?
Quase todos os meus romances receberam propostas ou foram adquiridos para uma ou mais adaptações, mas apenas o Desmundo foi realizado, e um curta-metragem chamado Parque de diversões. O motivo, em todos os casos, foi a falta de financiamento, fazer filmes é muito caro, e ainda mais caros os filmes de época, com muitos personagens, cenários, exércitos, frotas de barcos… Desmundo tinha uma situação mais confortável de produção, tudo se passa numa aldeia com poucas casas de barro e palha, há poucos personagens, ainda assim foi um filme caro, e acho que se realizou porque o Alain Fresnot, além de diretor, é produtor, com uma garra poderosa para realizar sua filmografia e sem outras atividades paralelas. E fez um filme belíssimo. Atualmente a Monique Gardenberg está lutando para conseguir realizar o Boca do Inferno para cinema e tevê, ela já tem os direitos e o roteiro, e vai fazer um trabalho fabuloso.

Como você mesma declarou em entrevistas anteriores, Rubem Fonseca foi de grande ajuda na elaboração de Boca do Inferno. E os outros livros? Exigiram também muita pesquisa, reescrita e leitores que lhe dessem sugestões?
Em vez de burilar o meu texto, o Rubem Fonseca me educou como escritora. Ele me dava seu exemplo de dedicação à literatura, renúncia a aspectos da vida, em função de uma entrega pessoal à criação literária. E reforçava a minha autoestima, acreditando em mim, iluminando as minhas qualidades – sem atenuar os defeitos -, porque eu não tinha a experiência nem mesmo de terminar um romance e nem fazia ideia se seria publicado, era angustiante, porque foram uns dez anos de trabalho. Ele foi sábio. Mas jamais teve paciência de burilar meus textos. E como isso sempre coube a mim, acabei aprendendo a fazer sozinha as milhares de revisões. Assim como as milhares de pesquisas. Desde cedo adotei o preceito de não mostrar a ninguém o que estou escrevendo, raramente alguma pessoa sabe o tema do livro em andamento, e não mostro nada. O poeta Marco Lucchesi acompanhou de longe as dores de parir Semíramis.

Algumas coisas me chamaram a atenção em seu romance Semíramis. A estrutura lembra o Dias e Dias, em que ficamos sabendo da vida de um grande escritor pelo olhar de uma mulher – essa sim, a personagem central. Além disso, os capítulos são curtos, normalmente de uma página, com grande carga poética. Dá para dizer que seu estilo foi mudando com o tempo?
Tenho uma característica que pode ser um terrível defeito, que é a versatilidade. Cada um dos meus livros tem seu estilo próprio, determinado pelo tema e pelos elementos que eu escolho, pela época, pela fonte linguística com a qual trabalho no momento. A poesia foi tomando conta, sim, do texto; assim como um tratamento mais interiorizado, o que é estranho no romance de elementos históricos. É como se eu estivesse fazendo um bordado pelo avesso. Um dia, quando eu virar o lado direito, tudo vai se encaixar e fazer sentido. Espero que sim. Mas, você tem razão, Dias & Dias e Semíramis são mais próximos, em termos de estrutura e linguagem, como são próximos os temas: Romantismo, século 19…

De alguma maneira, a política aparece como tema subjacente em vários de seus livros. Você é uma pessoa politizada?
Apesar de ter crescido numa cidade extremamente politizada, que é Brasília, e de ter participado de movimentos estudantis contra a ditadura militar, cheguei um dia a dizer que a minha única política é estar sempre do lado do mais fraco – mesmo que ele esteja errado. E é verdade. Se alguém critica uma pessoa tomo logo a sua defesa, mesmo que eu seja a favor da crítica. Talvez tenha sido ensinada pela natureza de meu trabalho, que me põe sempre no lugar do outro. Mas tenho consciência da atitude política de meu trabalho em prol de uma qualidade de expressão, de memória, de identidade brasileira, e dos benefícios que a leitura de bons livros traz a um povo. Não costumo entrar nas questões circunstanciais, mas sinto a política vicejando nas entrelinhas dos meus livros. Semíramis, até, fala de uma família para quem a política era uma religião, e o personagem tema é José de Alencar, que foi tanto escritor como político profissional.

Basta uma olhada rápida no seu currículo, para ver que sua vida é bastante rica. Já pensou em escrever uma autobiografia?
Parece que o fato de eu estar escrevendo biografias alheias pode ser uma preparação para a minha autobiografia. Sempre sonho escrevê-la, desde que li John Updike dizendo que é melhor fazermos nós mesmos, antes que um aventureiro o faça. O certo seria eu escrever um romance que contivesse traços autobiográficos. Mas, como dizia o Guimarães Rosa, não escrevo sobre mim mesma.

Qual o próximo passo? Já tem outro livro em mente?
Estou terminando a reescritura de uma biografia que foi feita antes da Musa Praguejadora. É sobre a fascinante Xica da Silva, uma Cinderela Negra. Vai ser publicada provavelmente este ano, ou no começo do próximo. Pretendo escrever uma terceira biografia – veja, Daniel, que estou nessa fase. Mas um romance vem tomando força dentro da minha cabeça, e não sei como vai ficar a ordem das coisas. Tenho dezenas de romances a escrever. Gostaria de ser mais rigorosa, escrever só esses romances. Mas sou filha de uma mulher extraordinária que, quando nascia em seu jardim uma planta não cultivada, não deixava o jardineiro arrancar. Dizia que os jardins naturais são os mais belos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Comentários

Uma resposta para “Entre o céu e o inferno”

  1. […] de entrevista feita no mês de março pela revista Brasileiros com a escritora Ana […]

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