Quem anda hoje para além da Zona Sul do Rio de Janeiro tropeça nas obras que estão transformando a Zona Portuária da cidade. Batizado de Porto Maravilha, o projeto, liderado pela prefeitura com o apoio dos governos Federal e Estadual, custa R$ 350 milhões e visa revitalizar e integrar mais a área com o restante da cidade.
A abertura de novos museus na região faz parte do programa, como é o caso do Museu de Arte do Rio (MAR), inaugurado em 2013, que ocupando o antigo terminal rodoviário Mariano Procópio, e o gigante Museu do Amanhã, no Pier Mauá. Uma série de novos empreendimentos – leia-se hotéis e torres comerciais – vão ocupar o lugar dos atuais armazéns. Estes ainda estão por lá, dormentes, enquanto o Elevado da Perimetral é demolido, dando espaço para a futura via expressa.
Renata Lucas observa esse processo de transição já há algum tempo. A artista, que mora no Rio desde 2007, tem olhar atento para o espaço urbano. Conhecida por suas intervenções arquitetônicas que alteram a dinâmica do ambiente em que são instaladas, ao ser anunciada como vencedora do Absolut Art Award 2013, Renata se propôs a usar o orçamento de 100 mil Euros do prêmio para produzir uma série de intervenções na região do Pier Mauá, coração das obras do Porto Maravilha e também palco da ArtRio, feira de arte internacional do Rio de Janeiro.
Em seu projeto, ela revela consequências mais sutis da transição da antiga Zona Portuária para o novíssimo Porto Maravilha. Além da “revitalização” e da maior integração pregadas pela prefeitura, quais outros efeitos essas mudanças trazem para a cidade? Como as obras impactam a vida cotidiana da região? As intervenções de Renata questionam de que forma mudanças como o fechamento dos armazéns, a transformação do terminal rodoviário em museu e o esvaziamento da avenida Rodrigues Alves para a demolição do Elevado da Perimetral alteram a vida da região e os caminhos de quem os costumava passar por lá.
As intervenções de Renata fazem parte do Museu do Homem Diagonal, projeto da artista de um ‘museu parasita’ e em constante evolução, que faz uso de estruturas já existentes para apresentar seus elementos – instalando-se em prédios, ruas ou galerias. Para este projeto, ela desenvolveu sete intervenções na área, todas reverenciando a história do Pier Mauá, evocando seu passado para dialogar com seu presente e futuro-maravilha iminente.
A série de instalações, todas temporárias, convidam o público a fazer um passeio por um caminho diagonal – literal e metafórico – através da paisagem urbana do local. Intervenções que podem passar desapercebidas, mas que sutilmente deslocam a dinâmica e a atenção de quem caminha por ali.
As colunas brancas do MAR são tomadas pelas mesmas pastilhas marrons que as cobriam quando o prédio abrigava o terminal rodoviário, como um fantasma do passado reafirmando sua existência no presente. Renata lembra que o fechamento repentino da rodoviária criou um movimento de pessoas que não sabiam onde esperar por seus ônibus e caminhavam confusas pela área. O prédio da Justiça Federal na rua Venezuela, por sua vez, teve parte de suas colunas marrons pintadas de branco, como se estivesse na iminência de se tornar um museu, evocando um possível futuro da região.
Ainda na frente do MAR, um camelô vende hologramas que sobrepõem duas fotos do mesmo prédio: uma como museu, outra como rodoviária. As imagens custam R$ 20 enquanto que, ao mesmo tempo, são vendidas por um valor mais alto do outro lado da rua como obras de arte, dentro da ArtRio.
Olhando ao redor é possível notar que os camelôs, antes tão presentes na área, não estão mais lá, se deslocaram. A artista conta que a calçada em frente ao antigo terminal rodoviário era repleta deles. Hoje só os contratados para o projeto permanecem na rua, imagem que reforça a ausência de seus colegas.
Atrás do museu, também na rua Venezuela, fica a sede do projeto Porto Maravilha. Lá Renata convidou outro personagem antes característico da área e agora não tão presente a voltar ao seu local: um vendedor de pipoca fica na porta do stand azul, como um personagem familiar de um passado recente, personagem da vida urbana que habitou a área por tanto tempo e desaparece gradativamente enquanto a revitalização toma seu lugar.
Continuando o caminho, nos deparamos com a avenida Rodrigues Alves e seu elevado em pleno processo de implosão. Quando as obras começaram, as grandes portas dos armazéns à beira-mar foram cimentadas e artistas de rua grafitaram por cima do cimento novo. Renata escolheu reabrir um dos galpões. Com um corte no concreto, a artista transforma a parede em uma espécie de porta-muro giratória, criando uma passagem para dentro do galpão, trazendo o lado de fora para dentro e vice-versa.
Do outro lado da rua, em uma porta de ferro fechada separa a avenida em obras da exposição LUPA, parte da ArtRio. Lá fica um outro camelô, este vendendo discos de vinil.
Embaixo da porta, um vinil encravado no asfalto toca uma música que pode ser ouvida tanto do lado de fora quanto do lado de dentro, com o disco girando metade para cada lado, passando de dentro da feira para fora, na avenida, como testemunha dos dois ambientes tão distintos.
Ainda como parte do projeto, na noite do dia 11 de setembro, Renata Lucas se propôs a trazer vida ao armazém fechado e, em parceria com Arto Lindsay, Radio Lixo, Badenov e Diogo Reis, ela criou e apresentou uma ‘paisagem sonora diagonal’ para o espaço, que culminou em uma festa em um lugar geralmente ermo durante as madrugadas.
Todas as intervenções e ações são temporárias e, como os fluxos da vida cotidiana da Zona Portuária vão desaparecer com o tempo, dando lugar às novas dinâmicas do Porto Maravilha. O Museu do Homem Diagonal, porém, vai deixar um legado. Para Renata, projetos não realizados e processos envolvidos na busca da realização destes projetos são tão importantes para sua prática quanto aqueles finalizados e expostos. Pensando nisso, uma grande seleção destas obras inacabadas fará parte de uma revista a ser produzida pela artista, baseada na Habitat, uma publicação dos anos 1950 criada por Lina Bo Bardi.
Confira aqui o registro que a Crane TV fez do Museu do Homem Diagonal, exposto em setembro de 2014, no Pier Mauá, Rio de Janeiro.
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