Entre tapas e beijos

“Volta, Bressane!”, esbravejou um desesperado espectador durante a exibição de Os Residentes, no último Festival de Cinema de Brasília, em novembro do ano passado.

Parte da polêmica começou por uma suposta pretensão do filme de “oxigenar o cinema brasileiro”. Referências ao cineasta suíço Jean-Luc Godard, entre outras colagens artísticas e intelectuais, também pesaram na avaliação.
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Apesar de sair com quatro candangos, filme e diretor – o mineiro Tiago Mata Machado, conseguiu incomodar o público, a crítica e a imprensa – que, aliás, marretou pesado o jovem diretor.

Ano novo. Vida nova. Chamado de prato indigesto em Brasília, o mesmo longa teve outro destino no recente Festival de Tiradentes, que abriu, em janeiro, o calendário audiovisual brasileiro. Levou dois prêmios como Melhor Filme, do Júri Jovem e da Crítica.

A maré boa parece ter chegado para ficar. Pouco depois de se mandar da pequena cidade histórica com dois troféus barrocos, já está de malas prontas outra vez. Seu filme foi selecionado para a mostra Fórum (dedicada a novos diretores) do Festival de Berlim, que começa nesta quinta (10) e segue até o próximo dia 20.

No badalado evento, que abre o calendário do cinema mundial, outros dois brasileiros dão o ar da graça: na mostra Panorama deste ano, o campeão de bilheteria, Tropa de Elite 2, de José Padilha, que em 2008 levou para casa o Urso de Ouro com o primeiro Tropa de Elite, e o curta Ensolarado, de Ricardo Targino, que será exibido na Geração 14plus.

Ao ser procurado pela reportagem da Brasileiros, Tiago Mata Machado, preferiu falar por e-mail. Já ressabiado com tanta bordoada, reclamou das perguntas e disse que a entrevista só poderia ser publicada em versão integral, ou seja, sem edição e acompanhada das perguntas.

“Se for para omitir as perguntas e editar o texto para me botar no papel do chato e polêmico, prefiro que não publiques nada disso”, ponderou o diretor, por e-mail. Portanto, segue a conversa na íntegra.

Brasileiros – Em Brasília, você disse que vinha trazer oxigênio ao cadavérico cinema brasileiro contemporâneo, “presa do realismo”. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Tiago Mata Machado –
Nunca falei que “vinha trazer oxigênio ao cadavérico cinema brasileiro”, apenas disse, na apresentação de meu filme em Brasília, que estava feliz em participar daquele festival que prometia oxigenar um pouco o cinema brasileiro, dado o número de filmes inéditos e de jovens realizadores que constavam na competitiva. O que houve foi que alguns críticos distorceram as minhas palavras para tentar iniciar uma espécie de linchamento moral, uma execução às pressas, no que eles se provaram, aliás, moral e intelectualmente pequenos. Saíram diminuídos do episódio, penso eu, por não terem feito direito o seu trabalho. Quanto à questão do realismo: defendo que, se o cinema sobrevive até hoje, mesmo depois do surgimento da imagem digital e da morte de um certo ideal “baziniano” de cinema, do cinema como prova da realidade, é porque é uma arte impura. Tudo cabe dentro desse organismo impuro e todo novo vírus que vier afetá-lo só vai fazê-lo tornar-se mais forte. O realismo pode ter sobrevivido como crença depois da digitalização da imagem, não mais como prova, mas é a impureza que vai continuar a garantir a sobrevivência e a contemporaneidade do cinema.

Brasileiros – Você tem uma dissertação de mestrado sobre Godard, qual a relação, de fato, entre o cineasta suíço e Os Residentes? Para compreender seu filme, precisa ler sua dissertação de mestrado ou conhecer Godard?
T.M.M. –
Quero deixar bem claro: o crítico que relatou essa história em seu blog mentiu deliberadamente sobre o meu debate em Brasília (Machado se refere ao jornalista Luiz Zanin, do jornal O Estado de S. Paulo, porém, outros críticos ecoaram a mesma impressão). Está tudo registrado. Minha produtora nunca afirmou que é preciso ler a minha tese para entender o meu filme, ela apenas disse (inocentemente) que minha pesquisa cinefílica vem de longa data e tem lá a sua coerência. O resto é pura má fé. O mesmo crítico afirmou que os aplausos dados pelo público à resposta que lhe dei haviam sido armados por minha equipe, uma mentira deslavada e de fácil comprovação. Quanto a Godard, nunca tive problema algum em me assumir um godardiano, desde os tempos de crítico, mas o fato é que as referências de meu filme são bem outras (o situacionismo em especial), ainda que reunidas de maneira polifônica, que tem algo de godardiana sim. No fundo, acho meio ridícula essa tentativa de desqualificar o meu filme como godardiano ou subgodardiano (isso é uma categoria?), pura preguiça intelectual de quem o faz. Acho que o crítico que se propõe a desqualificar qualquer trabalho tem a obrigação de desenvolver algum argumento minimamente consistente que seja, como o fizeram todos aqueles que souberam ver e analisar as qualidades de meu filme. Ainda mais considerando que essas pessoas ganham dinheiro para isso. Uma obrigação moral, intelectual e profissional que negligenciaram por pura prepotência. Felizmente, os críticos que realmente considero souberam reconhecer de imediato a potência do filme, isso já desde Brasília, mas especialmente em Tiradentes, onde a crítica de cinema realmente comparece.

Brasileiros – Era sua intenção fazer um filme hermético e, de certa forma, elitista? Como você define Os Residentes?
T.M.M. –
Acho que essas perguntas que você está me fazendo falam mais sobre você do que sobre o meu trabalho. Não sei nem se você o viu. Tive conversas interessantíssimas em Tiradentes, com senhoras do interior de Minas que, sem ter nenhuma formação cinefílica, fizeram interpretações interessantíssimas e louquíssimas do meu filme. “Hermético”, “aristocrático”, “elitista”: tuas perguntas trazem, se me permite a análise, expressões historicamente ligadas a uma perspectiva burguesa. Meu filme realmente não trata o espectador de cinema como um consumidor de cultura, passivo e padronizado, a ser levado pela mão. Ele, no fundo, respeita muito mais o espectador brasileiro do que boa parte dos filmes pré-fabricados que aí estão disponíveis. Essa é a única certeza que tenho.

Brasileiros – Quais outras referências você identifica em seu longa?
T.M.M. –
Guy Debord e Robert Smithson são referências evidentes do filme, mas o mais interessante, no fim, é perceber o tanto de referências outras que os críticos projetam no filme, cada qual segundo a sua formação e gosto. Fábio Andrade, na sua bela crítica na Cinética, falou de Andy Warhol a propósito de uma cena do filme. Vi este filme de Warhol a que ele se refere (Beauty 2), mas o vi recentemente, na mostra curada pelo Pedro Costa. Entendo o que ele está dizendo e até aceito que Warhol seja incorporado ao manancial do filme, mas esta é uma referência projetada por ele, com muita precisão, aliás. Os que entendem de arte contemporânea vão reconhecer, por exemplo, o trabalho de Cinthia Marcelle, cenografista e figurinista do filme, em vários momentos. Os que entendem de poesia vão reconhecer um ou outro verso de Rimbaud e Baudelaire, os que acompanham o meu trabalho há mais tempo vão reconhecer minhas obsessões, mas não é preciso conhecer nada disso para compartilhar, com generosidade, da experiência sensível do filme.

Brasileiros – Um membro do júri em Brasília disse que seu filme chegou com meio século de atraso. Pipocaram várias outras críticas, de que era um filme saudosista, aristocrático, meio metido a dândi. Como você recebeu esse monte de críticas?
T.M.M. –
Acho que o verdadeiro contemporâneo não é aquele que adere plenamente às regras simbólicas de seu tempo, mas o que preserva um ligeiro distanciamento, um ligeiro anacronismo. Não sei quem é o saudosista aqui, talvez eu até seja um saudosista da noção de fraternidade e de vanguarda que o século XX enterrou consigo. A dificuldade e o distanciamento com que lido com essas ideias, no meu filme, são perfeitamente contemporâneos. Infelizmente, acho. Fundamentalmente, o filme se pretende uma reatualização da crítica debordiana, em um momento em que a arte se confunde cada vez mais com o excedente do grande capital circulante e que o artista se tornou uma espécie de experimentador profissional. Em sua greve de arte, os personagens restituem temporariamente a arte à vida, fazendo circular signos e identidades entre quatro paredes, enquanto a casa não cai. Ao fim, tombada a zona autônoma temporária, resta-lhes uma espécie de utopia portátil, uma fresta pela qual eles podem ainda se projetar no futuro. Os curadores do Festival de Berlim selecionaram Os Residentes para uma mostra (muito prestigiada) chamada Forum of New Cinema, dedicada a filmes inovadores. Eles, que viveram todos os projetos de ruptura do século XX muito mais do que nós brasileiros, que não temos tradição de ruptura nenhuma, souberam reconhecer algo de novo nesse olhar.

Brasileiros – Em Tiradentes, a reação foi outra – tanto que você levou dois prêmios como melhor filme. Como avalia essa diferença? Qual a expectativa para Berlim?
T.M.M. –
Em Tiradentes, o dissenso virou consenso. De resto, foi uma semana muita intensa de debates e encontros. Tiradentes é sempre e cada vez mais um início de ano revigorante para o cinema brasileiro, dos poucos festivais que se preocupam mais em produzir pensamento do que notícias. A nova cena do cinema nacional surgiu e vai continuar a surgir por lá. Espero encontrar em Berlim o mesmo clima arejado e inteligente que encontrei em Tiradentes, a vitalidade e o viço, essa espécie de espírito da infância que está por trás de toda obsessão cinefílica, como se pudéssemos ver e sentir as coisas sempre como pela primeira vez. Muito diferente, portanto, do clima viciado e velhaco que encontrei no debate em Brasília.

O novo cinema brasileiro em praça pública


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