Na longa estiagem de crescimento que sucedeu a crise da dívida externa no início dos anos 1980, o Brasil perdeu posições no ranking das nações em desenvolvimento. Abaladas por mudanças tectônicas na geoeconomia global, as camadas dirigentes e dominantes do País aceitaram e proclamaram visões e interpretações superficiais a respeito da natureza das transformações na economia mundial. Isso levou à adoção de regimes de política econômica incompatíveis com os rumos da dita globalização – na contramão do que pretextavam seus patrocinadores.
A desorganização financeira e fiscal que se seguiu à crise da dívida externa forneceu combustível para alastrar as chamas da purificação livre-mercadista. O apelo à liberalização geral e irrestrita explicitava o fim do consenso em torno do objetivo comum do desenvolvimento fundado na industrialização. A dificuldade de se reconstituir, em novas bases, um objetivo compartilhado foi agravada pelo enfraquecimento da capacidade coordenadora de um Estado prostrado diante da crise fiscal e monetária e dos programas de ajustamento impostos pelo FMI. Entre as camadas dominantes, o dissenso neoliberal incluía o desconforto com o reconhecimento dos direitos sociais e econômicos, consagrado na Constituição Cidadã de 1988.
Depois da bem-sucedida estabilização de 1994, os “reformistas liberais” brasileiros apoiaram sua estratégia em cinco pontos: 1) a estabilidade de preços criou condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado; 2) a abertura comercial submeteria os produtores domésticos à disciplina competitiva e os obrigaria a realizar ganhos substanciais de produtividade; 3) as privatizações e o investimento estrangeiro removeriam os gargalos de oferta na indústria e na infraestrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência; 4) a liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia “poupança externa” em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente; e 5) o gotejamento da renda promovida pela acumulação de riqueza nas camadas superiores – auxiliada pela ação das políticas sociais “focalizadas” – seria a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade e eliminar a pobreza.
Dentre os pontos mencionados, a privatização dos anos 1990 merece considerações mais cuidadosas. Avaliada do ponto de vista da eficiência sistêmica, a privatização levada a cabo nos anos 1990 desarticulou um dos mecanismos mais importantes de governança e de coordenação estratégica da economia brasileira. Em um país periférico e de industrialização tardia, o setor produtivo estatal funcionava como um provedor de externalidades positivas para o setor privado: o investimento público (aí incluído o gasto de capital das empresas estatais) era o componente “autônomo” da demanda efetiva (sobretudo nas áreas de energia e transportes) e corria à frente da demanda corrente; as empresas do governo ofereciam insumos generalizados em condições e preços adequados; e grandes empresas públicas começavam a se constituir – ainda de forma incipiente – em centros de inovação tecnológica.
Os celebrados efeitos da privatização sobre a eficiência da economia não se concretizaram. Os resultados foram decepcionantes: a indexação das tarifas e preços das empresas privatizadas produziu um aumento expressivo dos custos dos insumos de uso generalizado; o investimento em infraestrutura passou a correr atrás da demanda, gerando pontos de estrangulamento; as grandes empresas “exportaram” os seus departamentos de P&D e os escritórios de engenharia reduziram dramaticamente seus quadros; e iniciativas importantes, como o Centro de Pesquisas da Telebras, foram praticamente desativadas.
Os equívocos de concepção e de estratégia não foram cometidos solitariamente por presidentes da República ou ministros da Fazenda. Decorreram de uma correlação de forças perversa, na qual a hegemonia foi exercida pelas práticas da finança parasitária, criaturas da hiperinflação dos anos 1980. O “estado de convenções” herdado dos tempos de alta inflação imobilizou a política econômica nas teias dos juros elevados e do câmbio valorizado.
Já no final de 2003, ano inaugural do primeiro mandato presidencial de Lula, a economia mundial apresentava forte aceleração, puxada pelos Estados Unidos e pela China. A partir de então, a abundante liquidez financeira e o crescimento vigoroso do comércio mundial promoveriam uma formidável mudança no balanço de pagamentos brasileiro. Todos os indicadores de vulnerabilidade externa melhoraram sensivelmente nos quatro anos subsequentes: a relação entre dívida e exportações caiu de 3 para pouco mais de 1, as reservas alcançaram mais de US$ 200 bilhões, o suficiente para financiar mais um ano de importação. As exportações brasileiras cresceram de forma impressionante: caminharam dos US$ 55 bilhões de 2000 para alcançar os US$ 140 bilhões em 2006. O saldo comercial chegou a mais de US$ 44 bilhões, em 2006, e a conta corrente era superavitária.
Apesar dos ventos favoráveis, o Brasil continuou a perder posições na disputa global pela geração de empregos e de valor adicionado na indústria manufatureira. Ficou para trás na corrida pelo crescimento industrial entre os países em desenvolvimento. Poucos países emergentes conviveram por tanto tempo com uma combinação câmbio-juro tão hostil ao crescimento e tão favorável às formas estéreis e socialmente perversas de arbitragem e de especulação com os preços dos ativos.
A valorização do real afastou o investimento produtivo estrangeiro e espantou os empresários brasileiros, convidados a mover suas fábricas para outras paragens. Assim, ampliou-se o risco de regressão da estrutura industrial, a despeito da modernização defensiva dos setores que ainda sobrevivem à ofensiva dos manufaturados chineses.
No debate em curso sobre a situação da indústria brasileira, há quem proclame que a desindustrialização é um mito. Mal sabem que a encrenca vai além dos problemas criados pelas importações predatórias, danosas à produção corrente e à ocupação da capacidade já instalada. A dilaceração das cadeias produtivas pelo “real forte” e a estagnação dos investimentos só serão reparadas com o aumento dos gastos na formação da nova capacidade, sobretudo nos setores novos e intensivos em tecnologia. Isso vai demandar, sim, o exercício do animal spirits dos dirigentes empresariais, a centralização do capital, agora disperso em empresas sem a escala requerida para participar do atual estágio da concorrência global, e a elevação do gasto autônomo do Estado.
O governo Dilma acerta ao adotar medidas para romper os gargalos criados ao longo das últimas décadas na infraestrutura. O Banco Central, por sua vez, deu início a uma cautelosa e necessária mudança de rumos na política monetária e nas práticas de intervenção nos mercados de câmbio.
A queda dos juros oferece a oportunidade para o desenvolvimento do mercado de capitais. Os primeiros movimentos são animadores: aumentam as captações dos fundos imobiliários e de infraestrutura, cresce a emissão de debêntures pelas empresas. No entanto, o avanço da securitização exige a presença de market makers capazes de prover liquidez aos mercados de títulos. Para tanto, no estágio atual, é fundamental a ação dos bancos públicos.
A experiência histórica dos países de industrialização retardatária demonstra que tal cometimento exige, ademais, a constituição de bancos universais de grande porte, rigorosamente regulados e supervisionados, aptos a desenvolver instrumentos financeiros destinados ao financiamento de longo prazo.
O esperado efeito “acelerador” decorrente desse arranjo vai favorecer a promoção dos novos setores, cuja “proteção” não deve ser concedida sem contrapartidas de desempenho nas exportações, na inovação tecnológica e na substituição de importações. A economia mundial está diante de capacidade de oferta excedente em quase todos os setores e isso vai tornar ainda mais acirrada a conquista de mercados.
Sobre a utilização dos recursos decorrentes da exploração do pré-sal: a avalanche de moeda estrangeira que certamente advirá da exportação de petróleo ameaça tornar incontrolável o vício nativo cevado nas delícias tão sedutoras e viciosas do câmbio valorizado. O ideal para o país detentor de uma riqueza natural abundante é constituir um fundo soberano e aplicar no exterior os recursos gerados pelas exportações, utilizando no âmbito doméstico tão somente os recursos gerados nas vendas internas e os rendimentos obtidos das aplicações no exterior. Esses fundos são genuinamente “fundos de poupança” de longuíssimo prazo.
O Brasil incorporou 16 milhões de famílias ao mercado de consumo moderno por conta das políticas sociais e de elevação do salário mínimo que habilitam esses novos cidadãos ao crédito. Essa incorporação será limitada se não estiver apoiada na ampliação do espaço de criação da renda. Nas economias emergentes bem-sucedidas, a ampliação do espaço de criação da renda é fruto da articulação entre as políticas de desenvolvimento da indústria (incluídas a administração do comércio exterior e do movimento de capitais) e o investimento público em infraestrutura. Esse arranjo, ao promover o crescimento dos salários e dos empregos, gera, em sua mútua fecundação, estímulos às atividades complementares e efeitos de encadeamento para trás e para frente.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é x-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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