O que qualquer repórter faria se ganhasse um prêmio importante e uma boa grana em euros? Daria entrada num imóvel, compraria um carro novo ou faria um belo passeio com a mulher pela Europa?
Pois o jovem repórter gaúcho Rodrigo Cavalheiro, de Zero Hora, que estava trabalhando no portal do jornal El País, em Madri, pegou a grana que ganhou com o Prêmio Rey de España 2008, largou o emprego e a namorada, comprou uma mochila e um laptop e foi descobrir a África.
Desde o dia 7 de maio, como informou esta semana o Jornalistas & Cia., quando pegou uma carona em Madri em direção a Gana, passando por Marrocos, Mauritânia, Senegal, Mali e Burkina, Rodrigo está cruzando a África por terra, viajando de ônibus e de táxi, para fazer reportagens por conta própria ao longo de 14 mil quilômetros.
Achei a história fantástica e resolvi mandar um e-mail para o Rodrigo (bage10@hotmail.com), curioso por saber mais sobre esta grande aventura. Como esse negócio de internet deixou o mundo pequeno e muito rápido, poucas horas depois ele me respondeu:
“Oi Ricardo, tudo beleza?
Muito legal que você tenha se interessado pela história.
São 23h03 e estou em um hotel barato para missioneiros na rua Franceville, em Douala, Camarões. Abri meu computadorzinho aqui para escrever ontem e, surpresa, pesquei alguma conexão wifi cuja fonte é um mistério. Juro que não sei de onde é, mas chegou na hora. Tô fazendo uma versão do blog em espanhol e tinha muita coisa atrasada para transmitir. Além disso, só assim posso te responder tão rápido. Às vezes, fico dois ou três dias sem internet”.
A seguir, a entrevista com Rodrigo Cavalheiro:
Balaio – O que tua namorada te disse quando você comunicou a ela que iria partir pra África de carona e deu-lhe o adeus no dia 7 de maio?
Rodrigo – Bah, esta história é complicada Eu tava trabalhando no El País.com, mas andava meio de saco cheio. Ela sabia disso, que eu estava lá mais por causa dela do que pela questão profissional. Quando apareceu a carona e ela teve que cancelar (com razão) uma viagem que faríamos naquela mesma semana achei que era hora de chutar o balde e apostar nesta reportagem. A bola tava picando.
Na verdade, quando nos despedimos naquele dia, ela entendeu. Terminamos na boa, porque era meio questão de tempo eu sair da Espanha. Mas pra ser sincero ela não gostou muito quando contei a história da despedida repentina na entrevista ao Jornalistas & Cia. E provavelmente não goste se descobrir que eu estou repetindo a história no teu blog, hehehe. Mas ela está em Madri, espero que tu não tenhas leitores por lá.
Balaio – Quais foram as passagens mais dramáticas e as mais engraçadas que viveu desde o dia 8 de abril?
Rodrigo – Cara, vou colocar por partes:
A mais tensa: chegar e sair de Lagos de noite, quando nem os próprios nigerianos se atrevem a pegar um táxi lá a esta hora. A cidade tem apagões durante todo o dia e lá o bicho pega mesmo. Passei duas noites em um hotel sem luz e que se chama Ritz (não é da cadeia, claro). Tive que fazer a mochila com a luz do computador e sair do hotel sem ver um metro adiante. Sair no breu de uma cidade com 13 milhões de habitantes, com a fama de ser a mais violenta e corrupta da África, de madrugada, em um táxi qualquer para ir uma rodoviária Mete medo.
A melhor noite: há dois dias vi a final da Liga dos Campeões na favela onde vivia o Etoo, aqui em Douala. Fiquei amigo de um cara que me levou em todos os lugares, ao fã clube do Barcelona aqui e até ao night club que o Etoo frequenta com os amigos dele. O dia seguinte não foi divertido, uma baita dor de cabeça
A mais engraçada: tem várias. Uma rápida de contar. Tava fazendo uma matéria num cabaré em Acra, Gana. No banheiro, um turista me pára e diz: vejo que você é novo aqui. Cuidado, aqui vêm muitas prostitutas.
Ah, também em Gana, um dos caras com quem eu estava viajando teve um problema intestinal em um parque nacional onde se caminha por umas passarelas móveis, a 40 metros de altura sobre as árvores. Descemos correndo, mas o cara não aguentou. Disse que os cipós tinham agarrado ele pelos pés e, enfim Tivemos que comprar umas calças pra ele na lojinha do parque.
Ver o Real Madrid levar de 6 em casa do Barcelona, na única televisão que encontrei, em uma loja de informática de Cape Coast, também foi muito engraçado.
O momento mais emocionante: em uma vila sobre palafitas na fronteira de Benin com a Nigéria. Um menino perguntou meu nome e começou a repetir. Em seguida, outro. Em minutos, havia umas 15 crianças me seguindo e gritando Ro-dli-go. Tenho o vídeo e é impagável.
Balaio – O que a realidade vista de perto mudou na tua forma de ver o povo africano – ou melhor, os muitos povos africanos?
Rodrigo – Primeiro, isso mesmo, que são muitas Áfricas. Sou fã do Kapuscinski e tinha uma idéia das diferenças entre as regiões, mas estando aqui é outra coisa. Me surpreenderam as semelhanças com o Brasil. Os povoadinhos nas margens do rio Senegal são o Nordeste, só que em vez de igrejas há mesquitas. Aliás, enfrenta-se o mesmo risco de atropelar um burro viajando de noite.
A convivência com os muçulmanos é uma coisa que não me surpreendeu, mas apenas confirmou algo que era uma impressão. Às vezes, o noticiário nos faz pensar que o choque religioso e ideológico entre ocidente e oriente é inevitável, e não é. Há exemplos de convivência amistosa aos montes e de gente tolerante dos dois lados.
Mas o que segue me chamando a atenção é a mistura maluca de coisas que para nós estão em diferentes lugares no tempo e no espaço. Coisas que eu via na casa sem luz dos meus avós, lá em São Gabriel, no interior do Rio Grande do Sul, como a bolsa de plástico com água pendurada no teto para espantar as moscas. Só que em um hotel com wifi. Estes anacronismos fazem o cara repensar se o seu mundo é o normal, quando o seu mundo real é visto por um estrangeiro. Para quem tem uma casa sem latrina e com antena parabólica no Marrocos, aquilo é o normal e deve ser supercurioso um cara que tem casa com latrina. Muitos riem quando me vêem de bermudas e havaianas, mas não estranham uma mulher equilibrando um tonel na cabeça.
Também uma coisa que falei lá no Jornalista & Cia, que eu sou meio desconfiado, por natureza e por profissão. Mas que quando se conhece gente que te ajuda sem nenhum interesse, ou que fica genuinamente feliz com um aceno ou por tocar o teu cabelo São coisas que não tinha visto no Brasil e que me deixaram mais otimista. É um risco.
Balaio – Como é um dia na vida de um repórter itinerante em terras africanas? Sobra tempo pra se divertir um pouco? Como?
Rodrigo – Olha, tenho acordado cedo e comido pouco. Quando não estou investindo numa história, estou escrevendo. Mas pra ser sincero me divirto fazendo as duas coisas. Primeiro, porque sou tímido e o lance de ser repórter dá o que é um superpoder para um tímido: falar com qualquer um, fazer qualquer pergunta e entrar em lugares que não se entraria em outra circunstância, como na favela do Etoo. Neste dia, por exemplo, bebi e me diverti como faço normalmente. Mas isso depende muito de quem você conhece e tenho tido sorte e alguma competência para confiar nas pessoas certas.
Um exemplo: em Benin, desci do quarto do hotel para pedir uma caneta emprestada na recepção, conheci dois jornalistas suecos e, 10 minutos depois, já estava dançando uma espécie de funk no casamento de uns nigerianos, em que os convidados jogavam dinheiro sobre os noivos, mas muito dinheiro. Isso é antológico, tenho o vídeo
Também me divirto porque posso escrever o que quero, não sou pautado e não tenho dead line. Não ganho nada, tô gastando mais do que pensava gastar, mas neste minuto trabalho como qualquer jornalista sonharia, hehehe. Não tenho nem sou chefe. Estou livre de incomodações.
Balaio – Quando e onde você planeja terminar esta viagem?
Rodrigo – Pretendo e tenho que terminar na África do Sul, em julho. Quero voltar pro Brasil em agosto. A Patrícia, minha irmã, se casa em setembro e sou padrinho. Este é meu primeiro argumento se passar algum aperto no Congo: não me matem, pois minha irmã me mata se eu não apareço no casamento.
Balaio – O que pretende fazer na volta ao Brasil? Que notícias você tem recebido daqui?
Rodrigo – Tchê, pretendo arranjar um emprego que me permita estar tão feliz como tenho estado aqui. E que me pague o suficiente, hehehe. Dificilmente alguém vai me dar a liberdade pra fazer os textos, os vídeos e as fotos que estou fazendo, mas esse é o meu sonho. A verdade é que se o cara tá contente isso aparece no texto, o que te deixa mais feliz e te faz escrever melhor, e por aí vai. É como fase em time de futebol.
Um objetivo secundário é recuperar parte da grana que investi. E minha razão não é material. Se eu sair no prejuízo desta viagem a dona Gleida (minha mãe, que é ótima e até tá tentando um patrocínio pro blog) vai voltar a encher o saco para que eu faça um concurso. Para que tenha uma vida estável, para que só viaje nas férias, bla bla bla bla. Então, eu TENHO que sair dessa pelo menos como entrei.
Muita gente me pergunta se vou escrever um livro. Vontade e algum talento eu tenho, mas preciso batalhar editora. A merda é que esta história de crise deu um argumento fácil para que quem não quer se arriscar te diga não. Mas por que não? Porque sim. As redações mesmo estão aproveitando “a crise” para demitir gente e cortar investimentos em reportagem etc. Se a crise chegar mesmo vai ser preciso contratar gente para ter quem mandar embora.
Espero ter te ajudado. Quando falo que ando muito feliz ultimamente é porque de alguma maneira pessoas que eu nem conheço, e não só a minha mãe, estão reconhecendo meu esforço. E quando abro o meu humilde correio bage10 (que nenhum editor-chefe abre quando ofereço matérias, provavelmente porque acham que é spam ou venda de viagra) e tem um e-mail do Ricardo Kotscho, honestamente penso que fiz o que tinha que fazer lá no dia 7 de maio. Ela que fique braba.
Um abraço,
Rodrigo
Em tempo:
Para quem quiser acompanhar as andanças de Rodrigo Cavalheiro em terras d´África, ele mantém um blog: www.zerohora.com.br/africa
Links para os vídeos:
Estes são da vila de palafitas Ganvié, em Benin:
http://www.youtube.com/watch?v=U2EZZJsw1eo
http://www.youtube.com/watch?v=zlFHfiNBGxQ
Este é o do casamento nigeriano:
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