Enxurrada de erros

O Código Florestal?Brasileiro foi criado em 1965 e se encontra em vigor com algumas alterações. Trata-se de uma legislação com foco na conservação dos recursos naturais – solo, águas e florestas -, voltada principalmente para o meio rural. Seu principal instrumento de conservação ambiental foi a criação das chamadas Áreas de Preservação Permanente ou APPs. Essas áreas, situadas em torno de nascentes, cursos d’água, topos dos morros e encostas muito inclinadas, assim como em áreas sensíveis do litoral, não podem ser ocupadas e sua vegetação deve ser perpetuada. Sob essa ótica, se o código fosse rigidamente aplicado em áreas urbanas, as tragédias de escorregamentos e enchentes teriam proporções seguramente muito menores que aquelas observadas no Rio, em Santa Catarina e em muitos outros locais em que se repetem.

O crescimento das cidades sem uma política habitacional e um planejamento urbano efetivo, intensificou as ocupações de APPs, criando situações críticas de erosão dos solos e assoreamento dos rios. Como consequência, aumentaram os danos causados pelos escorregamentos de encostas e enchentes.
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Quanto às enchentes, com as quais as grandes cidades do Brasil convivem todos os anos, temos de ter em mente que ao ocuparmos várzeas com ruas e casas, estaremos sujeitos a sofrer com as cheias naturais dos rios. Esse quadro se agrava com a impermeabilização do solo, que aumenta o volume das águas superficiais e com obras e aterros que estrangulam seu curso natural.

O mesmo ocorre em relação aos deslizamentos de solo. Ao observarmos as fotos da tragédia no Rio de Janeiro, constataremos que muitos desses escorregamentos tiveram início na parte superior das encostas. A massa de solo se destacou ali, mesmo em locais onde a floresta estava preservada. A existência de florestas preservadas por si mesma não impede esse processo em situações de chuvas muito intensas. Isso porque os deslizamentos, assim como as cheias, são um processo natural na formação do relevo e da paisagem. Por outro lado, a remoção da vegetação e as alterações no escoamento das águas pela ocupação humana podem agravar em muito esse processo. Mas, a meu ver, as tragédias estão mais relacionadas à existência de moradores nas encostas e ao longo dos cursos d’água que propriamente à origem dos escorregamentos em si. O que resulta em destruição e morte é a ocupação dos locais por onde escoam a lama e as rochas desestabilizadas pelas chuvas.

O grande problema em relação à legislação ambiental é que nós, brasileiros, estamos mais acostumados em lidar com situações de comando e controle que com diretrizes e planejamento. Preferimos leis que determinam o que fazer e depositam no poder público a responsabilidade pela fiscalização do seu cumprimento. Assim, quanto mais complexa, restritiva ou conflituosa é a lei, maior é a chance de não ser cumprida. Por outro lado, não conseguimos lidar com diretrizes gerais e instrumentos de planejamento, pois estes requerem discernimento, tomada de decisão caso a caso e responsabilização pelos atos praticados. Esse caminho, que a meu ver é inexorável, também requer autoridades mais preparadas para estabelecer os limites específicos em cada situação.

A nova proposta do Código Florestal, embora no entender de seus proponentes venha corrigir algumas distorções da lei atual, transfere para o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) uma série de obrigações para sua regulamentação, ou seja, não encerra o debate e tampouco resolve os conflitos em sua aplicação. Na questão urbana, a nova proposta confere às prefeituras municipais uma responsabilidade muito grande. Se por um lado isso constitui um passo para aplicação da lei com base na realidade local – o que é desejável, por outro encerra um alto risco de agravamento das ocupações indevidas de APPs urbanas no País. Isso porque, embora algumas prefeituras estejam aptas a administrar as questões ambientais e urbanas de forma responsável e competente, a grande maioria das prefeituras do País não está preparada para isso. A transferência da responsabilidade normativa sobre a conservação dos recursos naturais para o poder público municipal deve ser feita paulatinamente, na medida em que fique demonstrada a capacitação do poder local para decidir com base em diretrizes técnicas estabelecidas em nível nacional e estadual.

Essa discussão é complexa e requer um longo tempo de maturação. No entanto, devemos nos mobilizar imediatamente para que as tragédias não mais se repitam. Então, o que pode ser feito para reduzir desastres como os ocorridos no Rio? Em primeiro lugar, é fundamental fazer um levantamento das áreas de risco em todo o País. Muitos levantamentos já foram realizados e precisam ser resgatados, bem como suas recomendações devem ser aplicadas (infelizmente o poder público faz estudos nos momentos de crise e os esquece ao final, quando deveria realizar os investimentos apontados pelos especialistas). O Brasil possui instituições altamente capacitadas para isso, como o Instituto de Pesquisa Tecnológico (IPT), de São Paulo, além de diversas entidades e universidades pelo País. A partir daí, podemos dividir as ações em: emergenciais, corretivas e preventivas. Entre as emergenciais estão a retirada de ocupações em áreas críticas e a implementação de mecanismos eficientes para aviso e remoção de pessoas dessas áreas em períodos de maior risco. A ação corretiva – que é retirar essas pessoas definitivamente das áreas de risco – requer grandes investimentos. Se não há dinheiro suficiente, devemos estabelecer um cronograma com base em prioridades em relação ao risco. As áreas desocupadas devem ser reflorestadas o que, além de prevenir mais acidentes, contribui para a melhoria da qualidade de vida urbana. Esse é um desafio para 10, 20 ou 30 anos. Mas é algo perfeitamente factível; é preciso apenas planejamento com visão em longo prazo.

Por fim, e igualmente indispensável, devemos aproveitar o período de crescimento econômico, no qual as pessoas têm maiores possibilidades de adquirir uma casa própria e o poder público está mais capitalizado, para organizar o crescimento urbano respeitando as APPs, resolver o passivo de todas as ocupações irregulares, desocupar as áreas de preservação permanente, criando parques urbanos, e desenvolver um planejamento urbano em longo prazo, calcado na recuperação e na conservação da qualidade do ambiente urbano.

*Sérgio Luis Pompéia é engenheiro agrônomo, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor presidente da CPEA – Consultoria, Planejamento e Estudos Ambientais.

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