Ao entrar na casa do jornalista João Lara Mesquita, é muito fácil perceber qual é a sua verdadeira paixão. Dezenas de miniaturas de barcos, veleiros e até jangadas, se espalham entre as prateleiras de livros e fotografias familiares. O abatimento, que às vezes se transforma em êxtase e emoção, é completamente visível em sua feição. Nada mais normal para quem participou de um naufrágio no inóspito e selvagem continente Antártico, que, segundo o próprio, pode ser tão bravo e bruto quanto belo. João Lara Mesquita recebeu, com exclusividade, a reportagem da Brasileiros para reviver em detalhes cada minuto de sua aventura.
A VIAGEM
A expedição começou no dia 7 de março, saindo da cidade de Ushuaia, extremo sul do nosso continente, com destino ao quase virgem continente antártico. O objetivo era reunir um bom material, entre fotografias e reportagens sobre a Antártica, que depois seriam vendidos para veículos de mídia. A tripulação do Mar Sem Fim, um barco tipo Trawler de 76 pés (aproximadamente 20 metros de comprimento), contava com o proprietário e capitão João Lara Mesquita, o skipper Pedro Camargo, os marinheiros Alonso Goes e Manuel de Souza além de cinco amigos e parentes do capitão.
A viagem até a Antártica não é das mais tranquilas. A Passagem de Drake, como é chamada a parte de oceano que fica entre o Cabo Horn, ponto mais austral do continente americano, e a Ilha de Neve, marco que oficializa o começo do continente gelado, é considerada a navegação mais complicada do planeta. As décadas de mar de João Lara lhe garantiram um instinto comum entre os marinheiros, sensibilidade essa que, muitas vezes, pode salvar a tripulação de eminentes tragédias. “Antes de sair eu senti aquela angústia, pressenti que alguma coisa iria acontecer, cheguei a comentar com um amigo.”, lembrou. Apesar disso, resolveu ligar o motor e seguir adiante, afinal, essa seria a última viagem de uma temporada de três anos atracado no Yacht Clube Afasyn, Ushuaia.
O Mar Sem Fim, carinhosamente apelidado de “Marzão” por seu capitão, navegava bem no início da expedição. O Canal de Beagle foi vencido sem grandes problemas e, após três dias, a embarcação iniciava a travessia do Drake. “O Drake demora mais ou menos três dias para atravessar com o meu barco, são 500 milhas (pouco mais de 800 km). Quando estávamos a umas 70 milhas da península antártica, o mar engrossou muito. Estávamos pegando um vento de 40 a 45 nós de lado, que é o pior vento possível, ondas de 4 a 5 metros, condições que eu nunca tinha pegado com o Mar Sem Fim e me surpreendeu o quão bem ele estava reagindo a tudo isso, navegando confiante, aquilo parecia não ser nada para o barco, desconfortável para nós, mas transmitindo segurança.”.
A fim de evitar uma possível piora no tempo, o comandante analisou a carta náutica e detectou a Ilha de Deception nas redondezas, que por ser fisicamente muito protegida, serviria de abrigo perfeito até uma eventual melhora nas condições climáticas.
Por volta do dia 17 de março, a situação amansou e o Mar Sem Fim seguiu naquela madrugada rumo à península antártica, que deveria ser alcançada na mesma manhã. Pelo menos, era esse o objetivo. Logo que os motores começaram a trabalhar, a tripulação percebeu um barulho incomum no eixo, “Já me assustei, barulho no eixo é sempre pepino bravo.”. O capitão resolveu levar sua embarcação de volta a segurança da Ilha Deception para não dar bobeira. Lá ele poderia ter a tranquilidade necessária para vestir o equipamento especial, mergulhar e ter a certeza do tamanho do problema que os atrapalhava. “Estávamos com problema nos dois motores. Em um dos lados havíamos perdido o leme, decepado pela força do vento. Do outro lado o problema era na bucha, que é uma peça que fica colocada na popa do barco para segurar o eixo, protegê-lo. O barco estava bobo, sem capacidade de manobra. Naquele momento percebi que teríamos uma chance mínima de tirar o barco da Antártica.”.
O NAUFRÁGIO
Em um momento delicado como esses, o capitão precisa tomar as redias da situação e garantir a segurança de sua tripulação. Consciente de suas opções, ele decidiu, com dificuldades, levar seu abatido Marzão para a Ilha Rei Jorge, que ficava a 60 milhas dali. Foram necessários pelo menos mais dois dias de espera em Deception até que as condições climáticas assegurassem a viagem relativamente curta. A ilha era um lugar com algumas bases de diversos países que poderiam ajuda-los, além também de uma pequena pista de aviação que serviria para levar os convidados de volta ao Brasil. Para piorar a situação, o skipper contratado resolveu aproveitar o voo e largou seu comandante com apenas dois marinheiros. A vida nova veio com o grande companheiro de mar, Plínio Romeiro Jr, o Plininho. João Lara recorreu ao amigo para tentar achar alguém qualificado que pudesse, naquele momento, embarcar para a Antártica e aguentar a bronca. E olha que essa bronca seria muito pesada. Acharam, o próprio Plininho. “Ele não conseguiu ninguém para mandar, largou o trabalho, mulher e veio para cá me ajudar.”, contou o proprietário do Mar Sem Fim emocionado e grato com a atitude do amigo.
No dia 21, a embarcação seguiu para a Baía Potter com a bucha que o novo tripulante havia levado. Lá eles receberiam a ajuda da base argentina no concerto. “Não era nada muito complicado, mas demorou mais de 10 dias, já que os mergulhadores só podiam entrar na água com vento inferior a 20 nós. Na Antártica não é brincadeira, um vento de 20 nós sobe para 40 ou 50 em questões de segundos.”.
Para evitar as geleiras da Baía Potter que se partiam em grandes pedaços de gelo capazes de danificar a estrutura do barco, o Mar Sem Fim rumou para a Baía Fields, local que viria a ser seu “cemitério”. A situação não estava nada favorável, no segundo dia na baia, dia 3 de abril, os ventos aumentaram perigosamente chegando a ultrapassar a marca dos 50 nós. Porém, a tripulação não estava sozinha, ali mesmo na Baía Fields, a base chilena observava com atenção a luta do barco brasileiro. “O vento aumentou muito, o frio já batia 10 graus negativos até que eu recebi a meteorologia, chegaria um furacão. Não tinha o que fazer, estava na hora de achar o melhor lugar possível para a embarcação e seguir para terra firme. Era abandonar ou morrer, seria uma estupidez ficar no barco nessa situação.”, analisou.
Não foi preciso muita explicação quando o comandante resolveu tomar o rádio em mãos e chamar a base chilena, no mesmo instante eles foram ao mar e realizaram o arriscado resgate. Todos em terra firme e abrigados, os chilenos elogiaram a perícia dos brasileiros nas manobras em busca do melhor ponto para fundear. Agora não restava muito o que fazer, o Marzão estava nas mãos de Deus.
Na primeira noite, 75 nós de vento. O Mar Sem Fim aguentou firme e forte. O grande problema agora era o acumulo de gelo na baía, que poderia prender e deixar o barco totalmente desfavorecido na luta que seria obrigado a travar nos próximos dias. Os chilenos tentavam animar o capitão e o restante da tripulação, mas todos sabiam que o destino estava definido.
Foi o amigo Plininho o responsável por acordar João na manhã do dia 7 de abril, exatamente um mês após a saída do Ushuaia, com a triste notícia: ‘O Marzão afundou. Apenas a ponta do casco está para fora.’. Ele lembra exatamente do que sentiu quando recebeu a triste notícia: “O barco fica seu amigo, ele tem alma, você fala com ele. Na hora que eu fiquei sabendo e vi a cena, fiquei arrasado, senti um remorso tremendo por ter assassinado meu grande amigo, o sonho da minha vida.”, lamentou. Porém, havia pouco tempo para chorar, o problema agora era muito maior, já que o naufrágio ainda poderia resultar em um desastre ecológico. “Eu me propus, com as minhas viagens de barco, ajudar o mar, conscientizar as pessoas para questões ambientais. Estava com um peso enorme por pensar que eu seria o causador de uma tragédia dessas no continente mais puro do planeta, fonte infindável de pesquisas e tudo mais… O bem material claro que pesa, é um bem meu, mas é um bem material, foda-se. A gente vai trabalhar, tentar recuperar, comprar um barco menor, quem sabe, mas o importante é a vida humana.”, ressaltou.
A tempestade, que tanto jogou contra, acabou ajudando. O gelo tapou os respiros dos grandes tanques de Diesel do Mar Sem Fim. Especialistas informaram que, muito possivelmente, o combustível também tenha congelado e a chance de desastre ecológico está praticamente descartada. Agora basta torcer e esperar a Baía Fieldes, que se tornou um imenso bloco de gelo, descongelar para então retirar a carcaça com segurança.
OS IMPRESCINDÍVEIS
O jornalista perdeu seu barco, mas ganhou diversos amigos. Da experiência de vida, ele com certeza irá guardar no coração cada um daqueles que o ajudou nas bases pelas quais passou, São, segundo ele, “os imprescindíveis”, heróis invisíveis, aqueles que fazem seu trabalho sem esperar reconhecimento, fazem simplesmente por que é o certo a se fazer. “É russo, é chinês, é chileno, é americano… e todos falavam muito pouco de inglês, eles brincavam que a língua lá é o ‘antártico’, que é a língua de quem quer se ajudar. Quando meu barco naufragou, por exemplo, um russo, que eu vi uma vez na vida, foi ao meu encontro para me dar um abraço por que sabe o que isso significa para um capitão.”.
A emoção que uniu os brasileiros aos trabalhadores das bases antárticas foi tamanha que a despedida teve homenagem com direito e “Aquarela do Brasil” entoada pelos “gringos”.
E AGORA?
Se engana quem pensa que o espírito aventureiro de João Lara Mesquita, pautado pelo seu trabalho em prol da preservação do meio ambiente, naufragou junto com o seu Mar Sem Fim. Desde que chegou a São Paulo, na segunda-feira do dia 9 de abril, ele tem se dedicado exclusivamente ao blog dentro de seu site www.marsemfim.com.br. O jornalista narra em posts recheados de emoção a aventura que viveu na Antártica.
Orgulhoso e até surpreso com a forma como enfrentou todas as adversidades, capazes de apequenar o mais macho dos piratas, agora ele pretende navegar novamente pela costa brasileira, produzindo reportagens e um novo documentário sobre os impactos da ocupação desregrada da região.
Como bem disse Fernando Pessoa, “Navegar é preciso”.
Clique aqui e leia matéria da Brasileiros de setembro de 2008 com a saga de João Lara Mesquita pela costa do Brasil quando o Mar Sem Fim ainda era um veleiro.
Deixe um comentário