No estacionamento de um shopping, o motorista sente-se à vontade para estacionar seu carro ocupando quatro vagas. Leia bem: quatro vagas. O ciclista exige o direito de circular livremente pela cidade, mas não está nem aí quando pedala por calçadas, colocando pedestres em perigo. Ao mesmo tempo, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, cria ciclovias e um coro se levanta contra o gasto de tinta para demarcá-las. No Facebook, estudantes de uma das maiores universidades do País criam uma disputa para ver quem aguenta beber mais. Resultado: uma morte e, pelo menos, seis internações. O mundo está ao contrário e parece que ninguém repara.

Ao passar pela cafeteria de um grande hospital privado de São Paulo, um ex-ministro que trabalhou durante 12 anos, enfrentando bons e maus momentos do País, sofre agressões verbais de pessoas que, como ele, visitam pacientes. “Vai pro SUS”, alguém grita. A cena ultrapassou o ambiente hospitalar e caiu na rede, onde de um tempo para cá todo mundo tem se sentido confortável para exaltar embates predadores, gratuitos.

Sem dúvida, a hora é de mudanças irreversíveis. Realidade e mundo virtual estão se misturando de forma descontrolada. Em ambas as situações, o sentido de civilidade desapareceu. Apesar dos avanços econômicos e sociais do País, há uma clara defasagem entre as conquistas e a maneira como elas têm sido reconhecidas pela sociedade, cada vez mais em um processo de individuação. A essência de coletividade está em risco.

Essa questão é tão inquietante que surgiu, inclusive, durante uma longa entrevista à Brasileiros com o filósofo Renato Janine Ribeiro. “Há pessoas que não se dão conta do que fazem. Acham normal agir de forma antissocial”, ele afirma. Ressalta ainda que a capacidade de se colocar no lugar do outro sumiu.

No mundo estrito da política, Janine Ribeiro, que é professor de Ética e Filosofia Política da USP, também se espanta com a pouca disposição das pessoas para debater ideias: “Hoje, tucano fala com tucano, petista fala com petista. Ninguém convence ninguém. Com isso, se destrói um dos elementos básicos da política, que é a persuasão”.

O psiquiatra Antonio Lancetti, amigo e colaborador desta casa, também comenta o assunto. “Estava consternado com as cenas obscenas gravadas no Hospital Albert Einstein, quando escutei a história de uma senhora, empregada doméstica, uma dessas que se trata com médica cubana, a quem adora, e que hoje, a qualquer hora, pode ser encontrada na poltrona de um avião. Ela fazia compras em um supermercado no centro de São Paulo e umas pessoas falavam tão mal do governo e do PT que ela ficou morrendo de medo que adivinhassem que tinha votado na Dilma.”

Na edição de março de Brasileiros, o historiador Lincoln Secco faz uma reflexão sobre algumas das questões que agravam o momento conturbado pelo qual passamos. A aura do PT, que venceu a eleição presidencial, como partido pautado pela ética parece estar em xeque. A sociedade passou a ter a percepção de que o partido é tolerante com a corrupção, lançando mão do argumento de que, em política, as coisas funcionam “assim”. Um “assim” que não tem mais a tolerância também de parte do PT.

A guinada neoliberal na economia, as denúncias de corrupção e os movimentos obscurantistas da Câmara e do Senado, aliados a uma frágil reação da presidenta Dilma, com certeza ajudam a alimentar os destemperos comportamentais e políticos. Nas redes e nas ruas.


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