Ela faz coisas incríveis, como entrar no palco para encenar um épico usando os elementos da cultura hip hop. Também costuma declamar poesias por aí. Atriz e cantora, além de diretora e pesquisadora, já foi definida como “absolutamente extraordinária” por ninguém menos que Antunes Filho, o diretor avesso a elogios. Não bastasse isso tudo, Roberta Estrela D’Alva tem um sobrenome que faz qualquer um imaginar sua árvore genealógica astrofísica. Nada disso. Estrela D’Alva é só um apelido herdado na infância, presente de uma amiga. Ficou. “Sempre fui exibida e, por causa disso, ganhei esse sobrenome bombástico.” No batismo, Roberta, que nasceu no município paulista de Diadema em 1978, é Marques do Nascimento. Formada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo, Roberta acaba de voltar de Paris, trazendo medalha de bronze no peito. Foi a 3a colocada na última edição do Coupe du Monde de Slam Poésie, um torneio literário anual em que os competidores, chamados slammers, recitam poesias de autoria própria para um júri exigente.
“Aquilo é uma olimpíada. Eu era a única representante brasileira e me senti um samurai ao lado de concorrentes de 15 países.” Na pressão, ela recitou, em três etapas, seis poemas em português (legendas em inglês e francês passavam no fundo do palco). Resultado: ficou atrás de dois canadenses. O curioso é que, até outro dia, ela mal sabia direito o que significavam slam e slammer. Mas estava escrito nas estrelas. Não muito tempo atrás, ela assistiu ao filme A Huey P. Newton Story (2001), dirigido por Spike Lee para a televisão americana, e parou para pensar. Na adaptação do monólogo teatral homônimo, Lee registrou uma performance do ator Roger Guenveur Smith, que faz o papel de Huey P. Newton – criador e líder do grupo Black Panthers, os Panteras Negras. Sozinho, sentado em uma cadeira, o personagem de Smith vai contando sua vida até o surgimento do BP. Ao fundo, imagens de Marlon Brando, Miles Davis, Martin Luther King, Orson Welles e Malcom X. Um show.
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“Havia muita similaridade entre o que eu fazia de maneira intuitiva e a produção daqueles caras.” A culpa é do Spike Lee. Conclusão equivocada, Roberta avisa. SlamNation, documentário de Paul Devlin sobre um campeonato literário nos Estados Unidos, também a fez pensar. Era muita coincidência.
“Tratei de me informar, lendo tudo o que eu podia sobre o assunto e sobre quem praticava slam.” Descobriu que deveria ir para Nova York atrás de experiências sérias sobre a palavra falada. Lá, frequentou as noites do Nuyorican Poets Cafe, ponto conhecido de saraus. “Foi sensacional, porque tive contato com nomes importantes, como Marc Smith.” Para quem não sabe, Smith é o poeta americano que criou o movimento de poesia falada por lá. Por isso, também tem um apelido: Slam Papi.
Roberta aprendeu a lição e reproduz os ensinamentos do mestre. “Um slam é poesia performática. É o casamento do texto com a habilidade de apresentá-lo no palco, com um público que tem a permissão e talvez a responsabilidade de participar.” Mais ou menos como acontecia na Grécia antiga, quando havia duelos entre poetas.
De volta ao Brasil, não deu outra. Roberta criou o seu slam, o Zona Autônoma da Palavra, ou ZAP!, batalha de poesia comandada por ela. Nesse duelo, os poemas precisam ser autorais e ter, no máximo, três minutos de duração. Devem ainda ser apresentados sem acompanhamento musical, figurinos ou adereços. O júri é composto por cinco pessoas, escolhidas a cada edição, e o vencedor ganha livros, CDs e DVDs.
Roberta também é a precursora do spoken-word (palavra falada) no Brasil. O primeiro do gênero foi o monólogo Vai te Catar!, de 2008. Em cena, a atriz surgia com um microfone nas mãos, tendo um tapete imaginário como cenário. A vida de uma atriz era o tema.
Os bartolomeus
Ainda estudante da USP, Roberta participou da fundação do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, trupe que promove o diálogo entre o teatro épico e os elementos do hip hop – dança de rua, DJ, MC e grafite -, que começou a se formar em 2000.
Dessa vez, a culpa foi da diretora Claudia Schapira. “Mais ou menos. Na verdade, encontrei Luaa Gabanini (DJ e atriz) na fila do cinema e ela me disse que a Claudia queria montar um espetáculo que levasse para o palco a pulsação da rua, a potência do hip hop. Nem consegui assistir ao filme direito porque fiquei sonhando para participar desse projeto”, conta Roberta. Uma semana depois, foi chamada para um teste e passou. “Foi maravilhoso. Imagina que o treinamento para a nossa primeira peça, Bartolomeu, que Será que Nele Deu?, era basquete de rua.” Assim começava o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.
Durante o processo de montagem do segundo espetáculo, Acordei que Sonhava (livre adaptação de 2003 de A Vida é Sonho, do espanhol Calderón de la Barca), o grupo percorreu o Sul e o Nordeste brasileiros durante dois meses, antes de desembarcar em Madri, na Espanha. “A gente montava a parafernália toda e saía fazendo teatro. Como a peça acontecia na rua, tinha de tudo: chuva, sol, mendigo bêbado querendo participar.” Esse espetáculo marcou a trupe por um único motivo: todos os bartolomeus começaram a assumir novas frentes de atuação. Luaa, que era só atriz, passou a discotecar na noite. Eugênio Lima, DJ que dizia odiar teatro, virou ator. E Roberta, atriz de formação em expressão corporal do hip hop, foi desenvolver seu lado MC (mestre de cerimônias).
Três anos mais tarde, eles começaram a ensaiar Frátria Amada Brasil – Pequeno Compêndio de Lendas Urbanas, que tinha a Odisseia, de Homero, como ponto de partida na investigação da cidade. O trabalho reafirmou o intento dos bartolomeus de unir teatro épico e cultura hip hop. Mas também sugeriu uma nova etapa para a trupe: uma pausa reflexiva.
Passados oito anos de movimento coletivo, cada artista decidiu realizar um projeto particular. A esse desmembrar de companhia deu-se o nome de 5×4 – Particularidades Coletivas. O resultado: cinco espetáculos distintos. Roberta foi de Cindi Hip Hop – Pequena Ópera Rap, que levou o Prêmio FEMSA/Coca-Cola de Melhor Espetáculo Jovem, além do de Melhor Dramaturgia pela Cooperativa Paulista de Teatro.
Universidade x rua
No momento, Roberta está em cartaz no Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que fica em Pompeia, zona oeste de São Paulo, com Orfeu Mestiço – Uma Hip-hópera Brasileira, primeira produção da trupe novamente reunida, depois dos voos solo dos integrantes. “Mestiçagem, ditadura militar, hip hop, religiosidade afro-brasileira, perspectivismo indígena, ópera. Um texto de muitas camadas”, define Roberta. Parece complexo. E é mesmo. Só vendo para entender – e se divertir.
Ela também continua comandando o ZAP!, que acontece toda segunda quinta-feira do mês, também na sede do núcleo. Mas Roberta não sossega. Além do espetáculo e do sarau literário, ainda faz mestrado sobre voz, oralidade e performance na Pontifícia Universidade Católica, a PUC de São Paulo. A orientadora é Jerusa Pires Ferreira, escritora e grande professora de literatura e comunicação social. “Conheci o trabalho de Jerusa por causa das traduções que ela fez da obra de Paul Zumthor (teórico suíço, medievalista, poeta e estudioso das poéticas da voz). Ela é a mais importante estudiosa da oralidade do mundo e é brasileira”, diz Roberta. “Fico tão extasiada com as aulas dela que, depois, não quero nem comer.”
A mulher que circula na maior tranquilidade pela universidade e pelo asfalto, territórios delimitados com certa desconfiança, estudou na escola pública São Bernardo, de onde tirou os primeiros ensinamentos sobre teatro. “Os filhos de todo o operariado estudavam lá. Um de nossos professores foi Jaime Celiberto, escritor, autor de textos premiados, e adepto do teatro épico. Ele tinha propostas muito abertas sobre o que era uma montagem.”
Casada com o percussionista João Victor Nascimento, Roberta agora planeja produzir um filme, resultado de sua recente passagem pela Europa. Antes e depois de participar da 8a edição da Coupe du Monde de Slam Poésie, entre maio e junho, ela circulou por Londres, Portugal e República Tcheca atrás de poesia. A documentarista Tatiana Lohmann, de Solidão e Fé, registrou cada passo. “Temos um material gigante, mas ainda queremos captar imagens no Brasil e nos Estados Unidos também.”
Negra, bonita e vaidosa com seus dreadlocks coloridos, produzidos em Londres, Roberta carrega à vontade seu currículo acadêmico e sua experiência nas ruas. “Acredito, sim, na escola da rua, no poder autodidata, mas também na acadêmica. Juntar os dois caminhos é o pulo do gato dos novos tempos. Quando se estuda com método, descobre-se que a pólvora foi inventada antes do que se imagina. É mais rápido. Miles Davis, por exemplo, era um cara da rua, mas dominava as escalas harmônicas como ninguém. Ele tinha as ferramentas, sabe?” Sim, a gente entende.
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