A vontade de remexer nas origens nordestinas de Nelson Rodrigues e de muitos dos integrantes do grupo Os Fofos Encenam, somada ao estudo permanente que a companhia vem fazendo sobre a obra de Gilberto Freyre, levou a trupe a mergulhar fundo em suas raízes e, como consequência, transformar a sua sede em um santuário-instalação da brasilidade e da família. Móveis e fotos dispostos no bar-restaurante-sala de espera preparam o público para o que ele irá presenciar dentro do espaço cênico.

Em Memória da Cana, adaptação livre de uma das mais belas obras de Nelson, Álbum de Família, somos transportados para esse universo sem escalas. E esse encurtamento de trajeto nos é dado de presente pela pernambuquice do adaptador-diretor, o consagrado autor Newton Moreno, que já nos presenteou com Agreste e As Centenárias.
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Sempre ouvimos, ou lemos, que um determinado texto de Nelson Rodrigues é a mais importante obra de sua carreira, mas uma breve reflexão nos permite afirmar que toda a sua produção é fundamental; não só para o teatro brasileiro, como um dia será para a dramaturgia universal. Confesso que me aproximei ainda mais desse estupendo autor que, sem pudores, nos ajuda a desvendar os mistérios da psicologia humana, depois de ter assistido Memória da Cana. Assobiei, chupei a cana e quero mais.

As paredes transparentes do cenário nos permitem ver os diversos cômodos da casa e facilitam o voyeurismo para dentro de nós mesmos. Se na obra de Nelson as fantasias incestuosas já são delineadas com extrema clareza, em Memória da Cana elas são não apenas apresentadas, como também desvendadas e explicitadas por meio dessa obra que não deixa pedra sobre pedra quando o assunto é o mundo dos sonhos proibidos.

O circo pega fogo quando as paredes desabam e junto com elas todas as possibilidades de nos protegermos de nossos mais enrustidos desejos.

Mãe que deseja o filho, pai que deseja a filha, filho que deseja a mãe, irmão que se castra para não sucumbir aos seus desejos incestuosos. Como nas tragédias gregas, em Memória da Cana nos deparamos com nossos sentimentos mais ocultos, com as nossas grandes disputas de poder, que acobertamos de todos. O cheiro da cana, da terra, é inebriante e (como diz o ditado, quem nunca comeu melado, quando come se lambuza) nos melecamos todos.

Durante o espetáculo, como em um jogo de xadrez, as imagens de santos são manipuladas, carregadas, transferidas de lugar como se fossem capazes de purificar cada ação e em alguns momentos elas servem de avalistas para as condutas libidinosas e incestuosas. Denunciando, assim, a participação ativa das crenças religiosas nos descompassos sexuais da vida familiar. E isso não acontece apenas nas relações entre casa grande e senzala, contamina também, ou principalmente, as relações entre parentes dentro da própria casa grande.

Vale ressaltar as atuações surpreendentes que, certamente, resultam do trabalho do grupo que há muito tem provado competência em suas pesquisas que extrapolam o âmbito acadêmico e que atingem não apenas os pequenos grupos de iniciados.

Rodeado de terra e açúcar, não pude deixar de lembrar de um documentário que assisti sobre formigas e abelhas. Puro teatro grego, puro Nelson. Pude ver como somos parecidos com eles em seus formigueiros e colmeias, com suas rainhas assassinas e zangões assediados e abusados. Tudo cheira a sexo, morte e renovação. O que nos diferencia deles é que temos bons dramaturgos, como Nelson e Newton. Às abelhas e às formigas sobraram apenas as fábulas e os espetáculos infantis.

Como dizem que sexo tem tudo a ver com comida, ao final do espetáculo é possível degustar pratos da culinária nordestina que devem ser encomendados na compra dos ingressos. Cardápio e preços podem ser consultados no local ou no site do grupo.


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