Nasci no dia 17 de janeiro de 1941, em pleno início da Segunda Guerra Mundial. Nasci um mês depois que meu pai (da resistência judaica que trabalhava na agência interamericana de notícias) e minha mãe vieram da Áustria ao Brasil na condição de refugiados do nazismo. Minha mãe muito traumatizada, não podendo ficar muito tempo comigo, deixava-me nas mãos da minha babá, Lúcia, que era filha de Santo do candomblé. Sendo assim, durante sete anos, três vezes por semana, eu ia com a Lúcia para o terreiro e ali eu a via transformar-se de babá a rainha absoluta. Adormecia em seu colo ao som dos tambores, e acordava na Camarinha, um lugar celestial de apoio e amor absolutos. Eu adormecia nos braços da Lúcia, agora vestida de rainha – o que ela realmente sempre foi – e passando a mão nos meus cabelos ela dizia: “Seus pais vieram de um lugar de gente cruel e má, mas aqui você encontrará seus amigos e amigas para sempre!”. Até hoje adormeço em seus braços e acordo na Camarinha dos meus sonhos e memória!
Meus pais se separaram, em 1948, e fui para São Paulo morar com a minha mãe e meu padrasto que era violinista do Teatro Municipal. Além da música clássica, ele fazia bicos na Rádio Record e na Rádio Tupi, acompanhando os ídolos populares da época. Eu, então, dos 7 aos 14 anos, ia com ele assistir e conhecer Jackson do Pandeiro, Aracy de Almeida, Blecaute, Jorge Veiga, Isaura Garcia e muitos outros.
São Paulo, na década de 1950, era um Brasil onde a lei ainda era demasiadamente injusta, no campo dos Direitos Humanos, então era um absurdo: não havia divórcio e qualquer mulher poderia ser assassinada pelo próprio marido com o argumento fatal da “defesa da honra”. Isso valia também para os homossexuais, qualquer homem podia tirar a vida de outro com o argumento de que havia sido desonrado com o convite para exercer práticas hediondas, tendo assim o direito de matar em defesa e honra de sua hombridade ferida. Havia preconceitos de etnia (contra a etnia negra, mulata, cafuza, indígena) e preconceitos gerais de classe social. Vivia-se na democracia e, no entanto, os candomblés e as umbandas não eram muito bem-vistas. Só Jorge Amado e Dorival Caymmi, por intermédio de sua arte, nos falavam dessas religiões pagãs e milenares. Mas havia sempre uma afirmação na alma popular das coisas mais importantes, por exemplo: devido à grande presença dos japoneses no final da década de 1960, em São Paulo, a umbanda criou um orixá samurai!
O povo brasileiro sempre respondeu com dadivosidade e receptividade à chegada de cada etnia, por mais estranha que fosse, judeus refugiados de toda a Europa, nordestinos que por meio de seu trabalho ergueram a moderna São Paulo. Mas havia nessa época, em que já se planejava a construção de Brasília – e o grande Darcy Ribeiro tinha imensa importância como antropólogo e ideólogo -, preconceitos terríveis: ao mesmo tempo que os nordestinos eram recebidos de braços abertos pelo povo, ainda havia quem deles debochasse em tom racista. Em reação a esse gesto neonazista de quem os xingava de burros e inferiores, a resposta criada pelos próprios nordestinos foi: “Baiano burro, já nasce morto”.
Fui exilado, incluído na Lei de Segurança Nacional, e meus livros e meu primeiro disco apreendidos. Morei sete anos em Nova York, em l969 fui para Londres, onde conheci pessoalmente Gil e Caetano e, a partir dessa data, nunca mais nos separamos. Fui secretário do poeta Robert Lowell, e o ajudava a ler em português o livro de Euclides sobre a Guerra dos Canudos, tamanha era a curiosidade deste, que foi secretário literário de Ezra Pound, pelo mistério chamado Brasil. Quando eu, Caetano e Gil voltamos do exílio, começamos, através de shows e discos, a lutar pela redemocratização. E foi pela luta de nossa geração que conquistamos a Constituição Cidadã e a República brasileira do século XXI. Lembro-me de que, na década de 1980, Gil fez um show em Manaus e, quando apresentou o percussionista Chico Azevedo, disse que Chico era descendente de índios. Os aplausos esfriaram. E depois no camarim, Gil, ao receber seus fãs, ouviu: “Gil, ó Gil, porque você humilhou o seu percussionista dizendo que ele era descendente de índios. Por aqui, essa é a maior ofensa que pode existir!”. Imaginem, eram os fãs de Gil, do Tropicalismo, afirmando tal barbaridade! Muitos anos depois, na década de 1990, em Parintins, no Amazonas, onde é celebrada uma festa carnavalesca com tradições indígenas, o louro mais louro de olhos azuis, e a loura mais loura de olhos verdes, juravam e afirmavam que eram índios, e ai de você se dissesse o contrário! Sintomas de grandes mudanças, mas ainda há muito o que fazer, desafio que encaro com a maior alegria e felicidade, pois sei que essas novas gerações vão reconstruir tudo, dos pés à cabeça, despeço-me por enquanto e reafirmo o que digo em meu disco com Caetano Veloso: “Eu não peço desculpa”, “Ou o mundo se brasilifica, ou virará nazista!”. E também: “Jesus de Nazaré e os tambores do candomblé”. Porque, como disse o Nazareno: “O amor não quer se mostrar, o amor não tem vaidades, porque o amor é para sempre!”. E viva Stefan Zweig que escreveu: “Brasil, o País do futuro!”, pois somos, sim, o País do futuro e esse futuro já começou!!!
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