“Eu nunca me maquio”

Estive duas vezes com Antonio Fagundes. Na primeira, ele surgiu no saguão do Teatro FAAP, em São Paulo, onde faz sucesso com a peça Restos, de Neil LaBute, parecendo um turista que chega de viagem. Um charuto aceso na mão esquerda, e a outra puxando a mala de rodinhas. Abandonou por instantes o braço da mulher para me cumprimentar e convidar para entrar. Ainda não eram seis da tarde. Ele teria até às sete horas para conversarmos, porque uma hora antes de entrar em cena ele precisa de solidão. Conversamos sentados em duas poltronas da plateia. Na segunda vez, entrei no camarim. E conheci a sua mulher, Alexandra Martins que estava escrevendo em um laptop branco. Ela vai atuar com ele na próxima novela das 7 da Globo, Bom dia, Frankenstein.

Brasileiros – Eu estava pensando em trazer uma cantora ídiche ao Brasil em 2010, ela é maravilhosa, mas quando vi os custos de uma montagem, revelados por você, fiquei assustado.
Antonio Fagundes –
Não se assuste, é assim mesmo.

Brasileiros – Em 1974, aluguei o Teatro de Arena, para fazer três espetáculos de poesia, eu era um ex-preso político… E isso era uma coisa simples até para mim, que não era de teatro e não tinha grana.
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A.F. -E você se pagava… O que você tinha antigamente era o seguinte: os custos eram incomensuravelmente menores, então você tinha a possibilidade de conversar com as pessoas. O Hector Babenco fala uma coisa engraçada: antigamente você filmava na rua; hoje você quer filmar e o dono da padaria quer ganhar… “Porque vai aparecer a minha padaria… Então não filma aqui na frente, porque está enchendo o meu saco, né!” E ele faz a conta de quanto ele está deixando de receber de cliente na padaria, ele faz uma conta que é absurda porque ele acha… E isso é uma falácia, porque não foi devidamente explicado… Ele acha que aquele cara que está filmando ali está cheio de dinheiro, está ganhando dinheiro de tudo quanto é lado, tem patrocínio. As pessoas falam “patrocínio”, enchem a boca para falar, como se isso fosse uma coisa. Primeiro, aquela empresa não deu um tostão, quem está dando é o governo com renúncia fiscal! Então, é uma mistura de canais, impossível de você administrar, mas que elevam os teus custos absurdamente, isso vira um círculo perverso, onde você tem os custos muito altos e o governo ainda te exigindo baixar o preço do ingresso, que já é baixo…

Brasileiros – Aquela coisa da contrapartida social…
A.F. –
A contrapartida é não deixar fechar, é não morrer, a contrapartida é continuar existindo, a contrapartida é você poder alugar o Teatro de Arena por três dias e você fazer a tua peça! Essa é a contrapartida! Eu não posso dar uma contrapartida social para um produto cultural…

Brasileiros – Lógico…
A.F. –
Se o governo quer dar uma contrapartida social, dá meia-entrada na faculdade, na privada, né. Dá meia-entrada no hospital, privado… Vai lá e subsidia para fazer isso.

Brasileiros – Eu acho demagogia essa história de que teatro tem de ser barato. Por que tem de ser barato?
A.F. –
Demagogia com o bolso dos produtores.

Brasileiros – Se as pessoas pagam 100 paus para ver o Fagundes, elas acham que é o preço que vale! Agora, quem não pode, infelizmente… A desigualdade social não é culpa do Fagundes.
A.F. –
Vamos imaginar que eu fizesse a peça aqui de graça. Quem não pode, não chega até aqui! Primeiro, porque ele não tem condução. O cara não paga os 100 reais porque ele veio ver o Fagundes, ele paga 100 reais porque esse é o custo do espetáculo, eu não estou cobrando por mim!

Brasileiros – O que eu estou querendo dizer é o seguinte: eu adoro Van Gogh, mas um Van Gogh custa 20 milhões de dólares… Quem puder pagar, paga; quem não pode, compra uma gravura na papelaria…
A.F. –
Você deu um exemplo maravilhoso. Van Gogh morreu de fome. E por que ele morreu de fome? Porque na época dele só contava quanto custava a tinta e quanto custava a tela, o nome dele não existia ainda.

Brasileiros – E a sua tinta e a tela não valiam nada.
A.F. –
A cultura é sempre relegada à enésima posição, eu acho que não existe nenhum ministro da cultura que resolva esse problema com 0,7% de dotação orçamentária… Acabou! Esse dinheiro mal vai dar para pagar os funcionários do ministério e das secretarias de cultura, então acabou. Governo sério que efetivamente se preocupe com a cultura, esse governo vai, primeiro, aumentar a dotação orçamentária, e não é muito não, é 2%, 3%. O problema não é o preço do ingresso, o problema é como é que eu faço para esse cara ir, como é que eu interesso esse cara, como é que eu digo para ele: “Vai lá que é legal! Vai lá que você vai descobrir uma identidade, vai lá que você vai preservar a identidade”.

Brasileiros – Agora você me lembrou de uma coisa. Sempre nas campanhas eleitorais, os candidatos pedem o apoio dos artistas. Eu acho que vocês têm todo o direito, depois, de cobrar deles apoio também, como fazem os industriais, os banqueiros…
A.F. –
Veja bem, idiotas dos artistas porque eles se mobilizam para colocar o cara lá e ninguém se mobiliza para cobrar do cara. Para você ver a pureza e a ingenuidade desse bando de bobos que nós somos, que achamos que nós estamos lutando por uma sociedade melhor, mas nós não podemos puxar a brasa para a nossa sardinha, porque isso seria imoral. E não seria imoral, mas isso nós não fazemos, você não vê nenhum artista indo lá para dizer “agora que você está aí eu quero que você me dê aquilo que você prometeu”. Não tem esse lobby.

Brasileiros – Os governantes não tiram as taxas dos carros, o IPI das geladeiras? Por que não fazem também com os ingressos?
A.F. –
Você vê o Estado brigando pela construção de uma fábrica de automóveis, e eles dão para o cara mais de dez anos de isenção de imposto para o cara montar a fábrica e manter, porque ele sabe que precisa manter. O produtor cultural, não. Então, para produzir, dane-se a manutenção. Tem de fazer o cara manter, tem de fazer o cara produzir uma próxima, tem de fazer com que ele ganhe o suficiente para que não precise mais daquela verba, você tem de jogar o cara para que ele possa caminhar sozinho, senão fica um assistencialismo cultural, mas nós nunca discutimos isso, nós temos vergonha, isso é uma falha nossa.

Brasileiros – Outra discussão que acho sem sentido é aquela velha acusação: tua peça é comercial; a minha é experimental… As peças têm de ser comerciais, a diferença entre a boa e a má é a qualidade do texto, dos atores, do cenário, mas tem de se pagar e pagar os artistas, por isso tem de ser comercial?
A.F. –
O cara que diz que o espetáculo é comercial, sempre fala a posteriori, porque se ele sabe que é comercial antes… pelo amor de Deus… Eu vou dar o meu telefone para ele me dizer o que é comercial antes, que é para eu montar, porque é claro que ninguém monta um espetáculo para ir mal, e muitos vão mal. Então, se alguém tem essa fórmula, tem essa fórmula a ponto de dizer antes de estrear se é comercial ou não, por favor me diga. Esses caras que acusam, além de tudo são preguiçosos, porque eles esperam o espetáculo fazer sucesso para acusar. Eles não dizem antes, porque eles não sabem, ninguém sabe, e nem o cara que diz que vai montar o espetáculo comercial sabe qual é. O que a gente pode mais ou menos saber é o espetáculo que não é comercial, isso nós sabemos, ou seja, o Gerald Thomas não quer que ninguém assista, então ele vai fazer de tudo para que seja chato. Mesmo assim, ele pergunta “Onde eu errei?”. Porque às vezes faz sucesso. Se houvesse essa fórmula, você poderia acusar alguém de só fazer isso. Mas não existe isso, não existe isso, e ao mesmo tempo você tem de ver a relação entre o custo e o que o cara ganhou, se o cara ganhou. Se o cara gastou 100 milhões de dólares para ser comercial, ele tem de ganhar 500, senão não deu certo, Agora, se ele gastou, como A Bruxa de Blair, 60 mil dólares e ganhou 114 milhões, esse é um puta filme comercial, esse deu certo, mas ele sabia que ia dar 114 milhões de dólares? Claro que não, porque ele nunca mais conseguiu repetir isso.

Brasileiros – Não dá para repetir!
A.F. –
Isso foi um rabo que ele teve, uma sorte. O mercado na época precisava disso, as pessoas se entusiasmaram com aquela linguagem nova, acharam interessante a forma como ele fez, sei lá. O acaso, o acaso é uma coisa tão presente na vida da gente, imagina numa obra de arte… O próprio Van Gogh foi vítima desse acaso, se ele soubesse que um quadro dele iria ser vendido por 80 milhões de dólares no momento em que ele estava pedindo dinheiro para comprar pão, ele cortava as duas orelhas! Porque ele precisava de um dinheirinho para comprar o pão, para continuar pintando, ele suicidou-se porque ele não aguentou mais aquela pressão, mas o quadro dele foi vendido por 80 milhões de dólares, isso é um acaso…

Brasileiros – Eu vi a tua peça, é ótima. Posso contar o final ou não?
A.F. –
Ninguém conta o final. E eu acho isso maravilhoso. A plateia fica tão chacoalhada, tão mexida, tão chocada com o desenvolver do espetáculo que eles optam por não contar e os que não gostaram, falam que não gostaram e não falam: “Ah! Vou detonar essa peça!”. Não, eles também não contam. Tem os que falam “É uma porcaria, por causa daquele final”, e também não contam. E vem outro e fala: “É maravilhoso, é o melhor espetáculo da minha vida, aquele final…”.

Brasileiros – Eu matei o segredo antes do final. A hora em que você menciona o estupro, eu falei: “Então é isso!”. Mesmo assim, não deixei de prestar atenção, porque eu queria que ele confessasse. Eu imaginei o que era, mas queria que o cara confessasse. E confessou! Como ele foi capaz de fazer uma coisa dessas! Isso podia ser Shakespeare.
A.F. –
É Shakespeare! A gente não pode falar mais porque nós vamos entregar.

Brasileiros – Você está fumando cigarro também como na peça ou só charuto?
A.F. –
Eu fumo só charuto. O cigarro é que faz mal. Quer dizer, o charuto também faz. Depois, o charuto eu ia ter de ficar fumando a peça inteira, e o cigarro eu posso acender, apagar.

Brasileiros – O teu personagem matou a mulher com o cigarro, porque só ele fumava, ela não, e ela morre de câncer do pulmão, e ele também vai morrer daí a oito meses, também de câncer…
A.F. –
Justamente, você vê que ele tem personalidade.

Brasileiros – Que idade você acha que ele tem? A tua idade?
A.F. –
Se a gente fizer a conta na peça, ele tem 55 anos, isto porque ele conheceu a mulher com 25, ficaram 30 anos juntos, ele está com 55 e ela faleceu aos 70.

Brasileiros – O que já é inusitado, achar encanto numa mulher mais velha é difícil.
A.F. –
É lindo.

Brasileiros – Você já se apaixonou por alguma mulher mais velha que você?
A.F. –
Eu já tive namorada mais velha.

Brasileiros – Mas assim com essa diferença, 15 anos?
A.F. –
Dez anos, quando eu tinha 19 anos, namorar uma mulher de 29 era um absurdo, mas eu namorei.

Brasileiros – Na minha classe, eu estudava no Aplicação, você no Rio Branco, que era ali perto, tinha um cara de 23 anos que começou a namorar com uma menina da nossa idade, aliás eu estava a fim dela e o outro chegou primeiro. “O que você vai fazer com aquele velho?”, eu perguntei a ela. “Ele tem 23 anos!”
A.F. –
Um dia, eu liguei para casa… Eu tenho quatro filhos, né. A minha filha mais velha – hoje ela está com 28, 29 anos -, mas na época estava com seis aninhos e ela atendeu o telefone, eu vi que era ela, aí eu perguntei: “Quem está falando?”. E ela falou: “Aqui é uma velhinha de 29 anos!”. Aí eu falei: “Quando você tiver 29, eu vou te perguntar se você continua achando isso!”.

Brasileiros – Você percebeu o tempo passar? Você se sente com 60 anos?
A.F. –
Eu acho que não, não.

Brasileiros – Você não se sente um garoto às vezes, como quando tinha 18 anos?
A.F. –
Eu não me sinto um garoto, porque eu sinto, digamos, uma responsabilidade maior hoje do que quando eu tinha 18 anos, mas acho que a gente para um pouco, né, na cabeça a gente para um pouco, numa idade mais ou menos ideal, que deve ser entre 18 e 30 anos… alguma coisa assim, e a gente fica assim até tentar subir a escada de três em três… Aí a gente dá uma paradinha para ver que já não consegue mais. O problema da idade está no fato que o futuro diminui.

Brasileiros – Chega uma hora em que o passado é maior que o futuro e isso não tem volta… Li em algum lugar que você vai fazer outra novela, é verdade?
A.F. –
Vou fazer a próxima das 7 agora, começa a gravar em outubro, é uma novela do Bosco Brasil, um dramaturgo, ele faz muito teatro. Eu acho que é a primeira novela solo dele, e eles me chamaram para fazer, eu topei, e vai ser divertido, gostoso, uma novela das 7 é mais suave, a das 8 tem muita pressão e, além disso, a produção é maior também, e o tempo de gravação é o mesmo, então você tem lá, digamos, muitos eventos, muitas coisas, que às vezes você grava… A minha última novela, que foi a do Aguinaldo Silva, eu gravava até as 4 horas da manhã e entrava às 9.

Brasileiros – Você está brincando!
A.F. –
É um desgaste, não dá para fazer duas, três novelas das 8 em seguida, você não aguenta, é muito pesado o trabalho de gravação.

Brasileiros – A Marília Pera acaba de abandonar a minissérie Cinquentinhas, também do Aguinaldo.
A.F. –
Ah é? Eu não sabia disso, não.

Brasileiros – Abandonou alegando que não estava preparada para ser coadjuvante, que a estrela – ela disse isso – é Suzana Vieira e que, certa ou errada, ela não suporta ser coadjuvante. Esse tipo de coisa, abandonar a novela, já aconteceu com você? Ou querer abandonar?
A.F. –
Eu sair no meio de um projeto? Não aconteceu nunca. Depende do que foi tratado antes com a pessoa. Eu, normalmente, sofro até o fim. Eu aceitei, eu vou até o fim. Mas isso é a minha personalidade, o meu jeito de ser, e as pessoas não são obrigadas a ser iguais. E eu não sei qual foi o acordo que fizeram com ela, de repente pode ter sido isso: combinaram uma coisa com ela e é outra, ela tem todo o direito de sair na hora em que ela quiser.

Brasileiros – Você se incomodaria de ser coadjuvante?
A.F. –
Eu gostaria de ser o coadjuvante se me chamassem para ser o coadjuvante. Porque senão fica uma coisa estranha, seu nome é o primeiro lá e você faz um papel pequeno, fica estranho isso, é quase um desrespeito, você não avisar o público que ele está lá fazendo uma participação especial. O ator, depois que chega em determinado ponto, ele tem um determinado peso numa obra. Às vezes, você vê o Jack Nicholson fazendo um papel pequeno, mas vai ser sempre Jack Nicholson, vai ser maravilhoso, mas ele foi chamado para fazer aquele papel pequeno. Não é que ele foi chamado e, de repente, no meio do processo o puseram em uma posição de menos destaque, que não foi o que ele combinou. Tem de saber o que foi combinado. O que é combinado é válido.

Brasileiros – No teatro, você chega aqui, faz o teu papel, passa uma hora e meia sendo o senhor Edward Carr, depois vai para casa e volta a ser o Antonio Fagundes. Mas, em uma novela você passa seis meses fazendo um tipo…
A.F. –
Um ano.

Brasileiros – Você passou seis meses, um ano fazendo o tal do Juvenal Antena. Você não acaba virando o Juvenal Antena?
A.F. –
Não.

Brasileiros – Você está todos os dias vivendo aquele cara, todo dia.
A.F. –
É uma mística sobre o trabalho do ator, é mentira, seria um caso de psicanálise. Eu acho que eu sou bastante são neste sentido. Você nunca se deixa tomar por uma personagem. Para mim é uma grande mentira ou encaminhemos para um psicanalista, a pessoa está com problemas…

Brasileiros – Mas é o tempo todo. Todos os dias você fala como aquele cara, age como ele, será que não acaba assumindo aquele cara mesmo sem querer?
A.F. –
Quantas horas de entrevista você faz por dia? Você vira repórter todo dia? Não, não é. É a tua profissão. Você, quando conversa com alguém, não fica fazendo as mesmas perguntas que faz quando entrevista uma pessoa. Nem o teu interesse, é interesse profissional, por mais informação profissional que se tenha, você não vai carregar a tua profissão para onde for… Você está na praia, não vai ficar pensando que bom que seria fazer uma entrevista com aquela pessoa. Então, não existe isso, nem na sua profissão, nem na minha.

Brasileiros – Escuta, você chegou a ser assediado pela Record que está empenhada em tirar as estrelas da Globo?
A.F. –
Não, não fui procurado.

Brasileiros – O que você acha da Record? Primeiro, é uma TV da Igreja Universal, não sei até que ponto é ético, uma Igreja que vende um determinado produto, poderia até se chamar de propaganda enganosa, caso houvesse um CONAR da TV, porque passa a ideia de que, ao dar dinheiro, depois a pessoa recebe de volta mais do que deu e isso não é verdade. Você vê falta de ética na Record? Tem também essa coisa de eles tentarem copiar a Globo em tudo. O que você acha disso? E como isso repercute na Globo? Aumenta a pressão pelo fato de a Record estar subindo?
A.F. –
Eu acho que para uma empresa grande como a Globo, a competição sempre será sadia. Ao contrário, o problema da Globo durante anos foi monopolizar a comunicação. Agora, é bom até ter outra, outras emissoras. E, naturalmente, as outras emissoras, qualquer uma das outras emissoras, se copiam o que a Globo faz, é porque a Globo vem fazendo com sucesso há muitos anos. Elas copiam as coisas que deram certo. Eu acho natural não só a Record, como o SBT, a Bandeirantes, até descobrirem seus caminhos, copiarem. A Globo, quando começou, fazia novelas “mexicanas”, copiava das novelas mexicanas até descobrir o viés da teledramaturgia brasileira, o que levou anos. Era a Glória Magadan quem escrevia as novelas da Globo. Eram novelas muito boas, mas eram novelas de uma realidade diferente da nossa. E, de repente, entrou Dias Gomes, Lauro César Muniz, que começaram a trazer uma linguagem brasileira, ou seja, a Globo descobriu um caminho brasileiro e deixou de copiar as telenovelas argentinas, venezuelanas, mexicanas, que eram as que faziam sucesso. As emissoras, cada uma, levam um tempinho para descobrir o seu caminho, a sua linguagem e, às vezes, nesse processo de descoberta, nesse tempo que leva, é natural que se copie. Mas, por mais que eu queira copiar o Marlon Brando, jamais serei o Marlon Brando. Marlon Brando é uma personalidade única. Isso acontece também com quem quer copiar uns aos outros. Não dá certo. Vai ficar só uma citação do que está sendo feito em outra emissora, mas não chega a ser uma cópia.

Brasileiros – Como é que você reagiria a um convite? Você trabalharia na Record?
A.F. –
Eu trabalho há 33 anos na Globo, estou muito bem lá, sou muito respeitado lá dentro artisticamente, como profissional, acho a Globo uma grande empresa, não pensei em sair de lá, não. Mas o futuro a Deus pertence, como dizem.

Brasileiros – Você não teria nenhum problema de trabalhar na Record por essa ligação com a Igreja?
A.F. –
Eu tenho a impressão de que estão fazendo de tudo para separar a Igreja Universal da própria emissora, embora o dinheiro original tenha vindo de lá. A própria emissora deve estar faturando muito e já não deve precisar tanto da Igreja.

Brasileiros – Mas ali há uma troca, a Record puxa audiência para a Igreja…
A.F. –
Nunca parei para pensar nisso porque não é uma emissora que por enquanto me interesse trabalhar, então o dia em que eu for para lá, você me refaz essa pergunta (risos).

Brasileiros – A próxima novela você vai fazer com tua mulher… E que você conheceu nas gravações de Carga Pesada. É a primeira vez que você contracena com a ela. Qual é a sua expectativa? É bom trabalhar com a mulher?
A.F. –
É profissional, não tem nada a ver…

Brasileiros – Mas em termos de pressão, o Fagundes com a mulher, o que você está imaginando que vai acontecer?
A.F. –
Eu não imagino nada. É profissional.

Brasileiros – Pelo menos acaba o ciúme, ela está lá com você, não tem problema…
A.F. –
Precisaria entrevistá-la…

Brasileiros – Você disse que a novela das 7 é menos fatigante que a das 8. E em termos de grana, a das 7 paga menos que a das 8?
A.F. –
Eu tenho contrato com a emissora, não com a novela.

Brasileiros – Você tem contrato até?
A.F. –
Como você. Você é contratado por sua revista para fazer uma matéria de capa ou dar uma nota. Você não vai ganhar mais se fizer uma matéria de 12 páginas.

Brasileiros – Já vi muitos atores e atrizes reclamarem dos textos das novelas, muitas vezes absurdos. Hoje os textos são melhores?
A.F. –
São. E é uma coisa do mercado brasileiro, porque no exterior eles pararam lá naquilo da soup opera. O que eles fazem, que tem uma produção mais elaborada, são os seriados, mas aí são temporadas, eles têm mais tempo para fazer porque eles fazem 13, 14 episódios e nós fazemos 200 no mesmo tempo que eles fazem 13 episódios, então fica diferente por causa disso também. No mais, eles pararam na produção de soup opera, nós não fazemos disso faz anos, que é aquela coisinha que tinha um cenariozinho ali e os personagens iam envelhecendo junto com a trama…

Brasileiros – Tira uma dúvida, acho que a Globo descobriu primeiro como convencer os homens a assistir novela, porque antes eram só as mulheres. E ela conseguiu isso primeiro colocando em cena mulheres lindas e gostosas e cenas mais apimentadas…
A.F. –
Não é por aí. Isso é simplificar demais. As nossas novelas, no exterior, são consideradas novelas de protesto, por causa do seu conteúdo político-social, porque você não vê em nenhuma novela mexicana, venezuelana se discutir o homossexualismo, eles nem pensam em falar sobre isso, eles nem pensam em falar de Síndrome de Down, não têm essa preocupação social, não têm essa preocupação de discutir corrupção, e nós temos novelas que são só a corrupção, então isso começou a interessar também ao homem, porque as mulheres bonitas e gostosas sempre existiram nas novelas, e nem isso fazia os homens assistirem.

Brasileiros – A Beto Rockfeller você fez?
A.F. –
A Beto Rockfeller não, eu fiz O Machão, os primeiros 30 capítulos foram da Ivani Ribeiro, depois foi o Sérgio Jockymann. O Machão foi a quarta maior novela em termos de duração da história da telenovela brasileira, teve 365 capítulos, foi na Tupi ainda.

Brasileiros – Lá, você fez o quê? Dinheiro Vivo, não é?
A.F. –
Eu fiz Bel-Ami, do Teixeirinha, Teixeira Filho. Fiz Nenhum homem é Deus.

Brasileiros – Falando em Nenhum homem é Deus, já que você já foi Deus no cinema, na história do João Ubaldo Ribeiro (Deus é brasileiro), diz uma coisa: por que quem diz que não acredita em Deus é considerado no Brasil quase um imoral, um pária, um renegado, alguém que deveria ser riscado do mapa?
A.F. –
Isso eu acho que é perigoso dizer em qualquer lugar, nos Estados Unidos também…

Brasileiros – Mas por que tanto apego a essa entidade Deus, que afinal de contas foi criada por Abraão? Ele foi o primeiro a dizer que Deus era um só e que falava com ele. Naquele tempo, havia milhares de deuses. E ele começou a dizer que tem um só, e que fala com ele…
A.F. –
E mesmo na Bíblia ele tem diversos nomes, porque também não podia fazer um Deus só assim de cara, ele mudava os nomes de vez em quando, punha um nome, punha outro…

Brasileiros – Não tinha jornal, não tinha TV, nada, nada e Abraão conseguiu convencer todo mundo que Deus existia e que falava com ele, transmitiu essa ideia para todo mundo.
A.F. –
E para outras religiões também, ele foi o fundador de três, né. Mas é engraçada essa coisa, eu não sei se as pessoas misturam uma coisa com a outra, quem não acredita em Deus não tem nenhum valor, não tem valor ético, não tem valor moral. Eu acho que é um pouco assim, porque na verdade eu trocaria a religião de muitos políticos pelos valores éticos.

Brasileiros – Mas, escuta, que horas são? E a minha fotógrafa?
A.F. –
São seis e meia… Daqui a pouco tenho de ir me preparar.

Brasileiros – Ela pode fotografar você dos bastidores?
A.F. –
Não, qualquer movimento ali atrás me atrapalha. Nos bastidores antes de entrar em cena, um pouquinho, talvez, mas ela teria de chegar já, porque às 7 horas eu paro tudo.

Brasileiros – Combinei com ela às seis e meia, ela deve estar chegando.
A.F. –
Aí atrás eu não deixo nem que a equipe ande, eu estou sozinho em cena e é um problema, eu não tenho onde me apoiar, a não ser na minha concentração.

Brasileiros – Não tem um lugar de longe onde ela possa ficar sentada?
A.F. –
Nos bastidores não, mas ali em cima, no balcão, ela pode ficar. Bastidor ela nem teria como ficar sem aparecer porque o cenário é todo vazado.

Brasileiros – É, eu não vi coxia.
A.F. –
Não tem visibilidade.

Brasileiros – Só tem aquela porta pela qual você sai…
A.F. –
Mas daquela porta você não vê a cena, ali só entra luz e se você aparecer lá para ver a cena, você está aparecendo para o público. Ela pode ficar lá em cima. Monólogo é um problema, porque totalmente sozinho em cena é um esforço de concentração fascinante.

Brasileiros – Tem alguém que acompanha o texto dos bastidores enquanto você atua?
A.F. –
Tem, tem uma pessoa que fica do lado de fora…

Brasileiros – De repente pode dar um branco…
A.F. –
Pode.

Brasileiros – Você usa algum fone escondido?
A.F. –
Não, não.

Brasileiros – A pessoa tem de falar alto caso você esqueça?
A.F. –
Não, aí.

Brasileiros – Porque é muito texto, né? São quantas páginas?
A.F. –
Quarenta e três páginas. Mas esse é um problema mais de concentração que qualquer outra coisa, o decorar para o ator é uma coisa mais fácil.

Brasileiros – Como é que você decora? É por trechos?
A.F. –
Não, você estuda tanto aquele texto ali que acaba assimilando aquelas palavras, mas o problema é exatamente esse, você assimila dentro de um determinado contexto e um espetáculo de teatro é uma obra viva, ou seja, aquele contexto não está nunca preservado.

Brasileiros – Depende até de quem está na plateia?
A.F. –
Sim, eu estou aqui e tem um cara na poltrona balançando a perna, eu estou vendo o cara mexer a perna e eu penso: “será que ele vai mexer a perna a peça inteira?”.
No que eu pensei “ele vai mexer a perna a peça inteira” eu já saí do contexto onde eu estava. Então, é um esforço de concentração mesmo, de voltar sempre para o contexto que você criou para desenvolver aquilo, mas ao mesmo tempo eu tenho de comunicar aquilo para uma plateia diferente a cada dia. Então você vê que decorar é o de menos, a verdadeira batalha do ator é essa união, é essa troca de energia com uma plateia cada dia diferente, e nem sempre a favor.

Brasileiros – Mas alguém já te atrapalhou de propósito?
A.F. –
Um cara que fica com a perna balançando a peça inteira, ele não está prestando atenção.

Brasileiros – Mas é só um tique nervoso, vai ver…
A.F. –
Tem aquele que dorme, aquele que ronca, aquele que tosse. Outro dia aconteceu isso, ontem eu acho até, o cara tossiu durante 15 minutos ininterruptamente, uma tosse que eu recomendaria a ele que fosse ao hospital direto saindo do teatro. E ele ficou 15 minutos atrapalhando a peça porque ele estava atrapalhando a plateia, não ouviu nada porque se você está tossindo, você não está ouvindo nada e eu 15 minutos aí em cena, fazendo o diabo para que a plateia ficasse grudada no que eu estava falando e não ouvindo a tosse do cidadão. Depois de 15 minutos, ele levantou e foi embora.

Brasileiros – E você não deu nenhum toque?
A.F. –
Não, o que você pode fazer? Ou a pessoa tem a sensibilidade de perceber que não é bom ele ir ao teatro com aquela tosse e que é melhor ir para o hospital ou então você faz o quê? Para e chama atenção do cara? Não tem como, né. Mas veja, isso é uma das pequenas coisas que pode acontecer. Não tem espetáculo que resista a isso, por mais que você tenha o texto de cor.

Brasileiros – Mas tem uma coisa que você precisa saber. Quando eu vim assistir, a plateia estava cheia de mulheres… e mulheres bonitas…
A.F. –
Mas isso é o nosso habitual em teatro, a gente tem de agradecer sempre ao sexo feminino, porque sem elas não haveria arte, o homem realmente não se interessa muito por teatro, dança, música.

Brasileiros – Acha que é coisa de viado! Até na juventude, no colégio a gente sempre montava uma peça no fim de ano, uma vez eu fiz o papel de diabo, mas naquela época se eu fosse ator meus amigos me chamariam de viado, você não teve essa pressão?
A.F. –
Sabe o que é engraçado? Tinha até uns grupos homofóbicos, tinha grupo que você não entrava se você não fosse espada, como se diz hoje. O Teatro de Arena era um grupo assim, era tudo comunista.

Brasileiros – Não tem comunista viado (risos). E você, desde pequeno embarcou nessa, né?
A.F. –
Eu comecei a fazer teatro com 12 anos, teatro estudantil, teatro amador, infantil, até me profissionalizar com 16 para 17 anos, era molequinho ainda. No Arena Conta Tiradentes eu tinha 17 anos.

Brasileiros – O que o Arena montava era sucesso. Lotava toda noite.
A.F. –
Na década de 1960, tinha uma turma muito grande de estudantes que ia ao teatro constantemente, mas hoje eu me pergunto se eles gostavam de teatro ou se eles gostavam de política. Porque o teatro naquela década e na década seguinte, durante a repressão, foi mais política que teatro, foi um péssimo teatro e uma péssima política também, porque a gente não conseguiu mexer em nada, e não fizemos um bom teatro também naquele período. (Surge a fotógrafa.) Chegou. Tudo bem?

Brasileiros – Fagundes, esta é a Lu.
A.F. –
Como vai?

Brasileiros – Você veio vestida de astronauta? Veio de que planeta?
Luiza Sigulem –
Estou parecendo astronauta?

Brasileiros – Está parecendo personagem dos Jetsons ou do Guerra nas Estrelas… Lu, aproveita para fotografar agora, às sete horas ele tem de se mandar, mas você pode fotografar alguma coisa antes de ele entrar em cena… Quando ele estiver em cena, você pode tirar fotos lá de cima. Porque lá atrás não tem espaço para você ficar.
A.F. –
O cenário é todo transparente…

Brasileiros – Mas ela pode fotografar você se maquiando?
A.F. –
Eu nunca me maquio.

Brasileiros – Você não se maquia? É ao natural?
A.F. –
É a pelezinha que Deus me deu…

Brasileiros – E ela pode fotografar alguma coisa no camarim?
A.F. –
Pode, mas é um pouquinho porque esse tempinho eu uso para me concentrar, senão eu me distraio muito.

PRIMEIRA E ÚNICA MULHER – por Celso Curi

Falar de morte e de amor incondicional é algo que pode resvalar no lugar comum, na pieguice, no melodrama, mas Restos, de Neil LaBute – dramaturgo e diretor de cinema americano – em cartaz no Teatro FAAP, protagonizado por Antonio Fagundes, passa bem longe de tudo isso. O texto tece os acontecimentos sem dar à plateia tempo para que ela sequer enverede por caminhos da emoção superficial. Tudo é profundo e simples ao mesmo tempo. Uma bela escolha desse ator-produtor que há mais de quarenta anos atua no teatro, cinema e televisão.
Logo, ao abrir das cortinas, vendo o piso de grama negra, reluzente, como se fosse um delicado brocado – pisado pelos pés descalços de Fagundes -, fica claro que não iremos presenciar um simples funeral da pessoa amada. O caminho será longo e
pouco confortável para nudez ainda representada apenas pelos pés delicados de um homem emocionado, simples, que ganha a vida alugando automóveis antigos, e tem grande orgulho de ter uma rede, país afora, chamada Carr’s Cars. A mais comum das histórias de amor, sexo e convivência matrimonial, não fossem os segredos que ela contém e que serão apenas revelados no final: sem alardes, Mary Jo – a tão presente esposa de Edward Carr é, em todos os sentidos, a única mulher da vida dele.
Carr não se poupa em tocar em assuntos íntimos, como o de sua primeira experiência sexual, que aconteceu com sua mulher que acaba de morrer. Fumando um cigarro atrás do outro – apesar de ter, segundo o seu médico, apenas mais alguns meses de vida, acometido por um câncer -, vai revelando que nunca teve outra mulher nem antes, nem depois dela. Alegra-se até, em determinado momento, que ela tenha morrido antes dele e, portanto, não lhe seria conferida a chance de conhecer outros homens depois dele. Palavras duras, mas que contêm a melhor essência desse amor.
Texturas e mais texturas se apresentam uma após a outra e as camadas dessa personagem, por vezes quase rude, se misturam às propostas por todos envolvidos nela, tanto pela atuação madura de Antonio Fagundes, como pela encenação brilhante de Márcio Aurélio – grande conhecedor da alma humana – e que já nos brindou com obras primorosas, como Agrestee Ópera JoyceRESTOS
Teatro FAAP – Rua Alagoas, no 903
– Consolação, São Paulo (SP)
(11) 3662-7232 / 3662-7235

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