Eu, quem? Um ensaio sobre o retrato

 

Quem de vocês sabe por que o fotógrafo tenta olhar o outro assim, desse jeito, duplo, vestido e sem roupa? Quem de vocês sabe quando esse outro estará realmente nu diante da visão representativa que cada fotógrafo leva para o retrato? O que cada um deles, ou de nós (já que o retrato pode ser visto, num piscar de olhos, nas ruas quando cruzamos com o próximo transeunte) pretende quando coloca o indivíduo por dentro de uma fotografia: ultrapassar os limites da fragilidade? Mudar um pensamento? O que será que o fotógrafo reinventa em cada retrato? Há neles um autorretrato? Quem primeiro se coloca diante do outro: a câmera ou olhar? Se a fotografia é a busca pela liberdade e se

estamos falando em liberdade, quem é estrangeiro diante de um retrato: eu ou você? Até quando precisamos da imagem do outro para “entender” a nossa própria iconografia? O que um retrato guarda e o que ele leva embora: os rastros de uma existência? Os ruídos dos tempos? Se você cola um retrato sorrindo em uma lata de sopa, o que ele quer dizer: um modelo de pensamento ou uma forma inventada para eternizar o que nunca será eterno? Se você coloca um retrato em um álbum de família, poderemos até pensar, existo, e esse será um retrato para a próxima memória. Qual a verdadeira história que um retrato eterniza? Por que o fotógrafo nos olha assim? Um retrato representa para a fotografia o que queremos ser para nós mesmos? O que poderemos representar diante de um retrato: uma figura em busca de uma frágil posteridade ou a recordação de um outro mesmo eu?

Arequipa, Peru, 1900. Quando tinham, respectivamente 15 e 13 anos, os irmãos Carlos e Miguel Vargas inventaram uma máquina fotográfica e venceram um concurso na Escola de Artes e Ofícios do Colégio Salesiano, chamando a atenção de Max T. Vargas, uma das referências para a fotografia peruana na época e proprietário de um grande estúdio na mesma cidade. Logo em seguida, os dois passariam a ser assistentes do mestre. Tinham como companheiro de profissão outro fotógrafo iniciante, Martin Chambi, igualmente representativo para a história da fotografia latino-americana. Arequipa borbulhava com o fausto progresso das minas de ouro e prata. Os irmãos Vargas inauguraram seu estúdio no Portal de San Agustín, na Praça de Armas, em 1912, transformando o local em um centro de encontro para poetas, artistas e pensadores. A alta burguesia cruzava as portas do Estúdio de Artes Irmãos Vargas em busca do seu eu visível num momento em que a publicidade, a moda e o fotojornalismo davam os primeiros passos. O que queriam? Simples: que os dois fotógrafos “revelassem a sua alma”. Ou seja, ao contrário do que os índios pensam.

Os Irmãos Vargas assim o fizeram. A partir da técnica dos retratos românticos vitorianos, deram início a um processo de trabalho impregnado de uma poética dramática que poderia refletir a imagem/existência de cada um dos personagens que estivesse do outro lado da câmera. Criaram retratos extraordinários, repletos de silêncio e de um olhar imbuído de significados e emoção. Claro que há a elegância que paira em todo o ambiente. Mas esse fato diz respeito a uma época, digamos, em que o “excesso de informações” do mundo contemporâneo atual ainda não havia nos violado o corpo, a mente, a alma – nesse tempo em que sabemos tudo e não sabemos nada. Os retratos dos Irmãos Vargas são um revelador dessa fronteira. Deixam claro que o olhar do outro poderá ir do nada ao muito além: inventamos a fotografia por quê? Se vemos todas as coisas, por que inventamos fixá-las? Não seria bastante vê-las, cada um do seu jeito? Por que é que inventamos essa “coisa” que não é para os outros verem a mesma coisa que a gente viu? Assim sendo, de que forma enxergamos quem está diante dos nossos olhos? Por que inventamos para nós a imagem do outro? Seria um retrato uma imagem real ou teria cada retrato uma resposta clandestina?

MUITAS VEZES 3X4

Não foram poucos os experimentos desenvolvidos pelos Irmãos Vargas. Sem nunca terem deixado sua cidade natal, eram informados sobre as novidades do mundo, principalmente as da Europa, a partir das revistas mensais que encomendavam para descobrir o que era novo no universo fotográfico. Essa pesquisa os levou, por exemplo, a uma evolução mais contemporânea para o retrato, a partir de 1920, com a figura feminina se impondo diante da câmera. Sempre atentos às transformações da região em que viviam, produziram, no mesmo período, a série Noturnos, em longa exposição, antes que a luz elétrica “clareasse” o romantismo da noite arequipenha. O olhar dos Vargas registrou desde prédios históricos, templos e cenas teatrais até o alistamento dos recrutas no serviço militar. Na foto, realizada em 1918, um plano aberto frontal (havia sempre outro, de perfil) identifica o grupo, com seus variados tipos reunidos. Depois da imagem geral ampliada, cada um deles era recortado em formato 3×4, para que cada indivíduo fosse identificado na ficha do alistamento militar. Assim, desse plano aberto surgiriam 19 retratos 3×4.

A revista do Duran


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