Nem tudo está perdido. Zélia Duncan finalmente ressurge com um novo disco depois de Pré-Pós-Tudo-Bossa-Band, álbum autoral de 2005 que veio na cola de Eu me Transformo em Outras, de 2004, em que atuou como intérprete. O recém-lançado Pelo Sabor do Gesto, adornado pelos desenhos e aquarelas de Brígida Baltar, traz uma Zélia em paz, a salvo de bichos que pegam e maremotos, mas, ao mesmo tempo, firme e decidida. A ponto de dividir a produção entre John Ulhoa, o mineiro do Pato Fu, e Beto Villares, o paulista dos modernos – com quem já havia feito Sortimento, em 2001, seu terceiro disco e que participou de Pré-Pós. A ideia de trabalhar com John, a quem conhecia e admirava há muito, se cristalizou ao ouvir Onde Brilhem os Olhos Seus, disco da mulher de John, Fernanda Takai, dedicado ao repertório de Nara Leão. É a voz das duas que se ouve na faixa de abertura “Boas Razões”, versão de Zélia para “Bonnes Raisons” do francês Alex Beaupain, da trilha do filme Canções de Amor (Les Chansons d’Amour – 2007) de Christophe Honoré. Aliás, a música que dá título ao disco, originalmente “As-tu Déjà Aimé?” vem do mesmo lugar. O motivo? Simples. Zélia ganhou o filme de seu amigo o DJ Renato, apaixonou-se pelas músicas e entrou em contato com Beaupain, via Myspace. Ele gostou do que ouviu e liberou as composições. Isso não é novidade para ela. Seu primeiro e estrondoso sucesso foi “Catedral”, versão de “Cathedral Song”, de Tinika Tikaram.
Na verdade, três anos e meio separam os dois papos mais formais que tive com Zélia. Na primeira vez, a artista fluminense me contou toda sua vida pelo telefone. Estávamos os dois em São Paulo. Eu na redação, ela na casa da cantora Cyda Moreira. Enquanto pensava em reeditar o disco de Cyda cantando Brecht pelo seu selo Duncan Discos, cuidava do lançamento do DVD de seu último CD, Pré-Pós-Tudo-Bossa-Band, fazia shows com Simone e se preparava para uma me gaturnê com Os Mutantes. O segundo foi cara a cara, há poucas semanas, no Parque Lage, Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Zélia estava lançando seu novo disco, Pelo Sabor do Gesto, o nono de uma carreira cheia de saltos e achados. No final de 2006, batizei meu texto, nunca publicado – Um perfil no meio do meu maremoto -, certamente influenciado por algo que ela disse.
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Na semana passada, rememorando esse período, Zélia concordou: “É, o bicho estava pegando”. Entre outras coisas, tinha a Simone, que conheceu ao produzir junto com a Bia Paes Leme o disco Timoneiro, com a obra de Hermínio Bello de Carvalho, e de quem ficou amiga, o que rendeu (mais) uma versão para a música de Damian Rice, “Blower’s Daughter”, do filme Closer, DVD, show, excursão por dez cidades do Brasil e encerrada no início de 2009, em Portugal. Havia ainda a turnê de Pré-Pós-Tudo, DVD e tal, que só terminou em fevereiro deste ano também, com uma despedida no Clube Pinheiros de São Paulo – os shows que realizou enquanto produzia o disco atual ela chama de “Bailão da ZD”, com um repertório totalmente híbrido. Para completar, como se não bastasse a participação de Zélia nos Mutantes, o selo Duncan Discos soltava Alzira E., o novo CD da Espíndola mais bluesy. Ou seja, era só abrir o jornal, ligar a televisão, acessar a net que Zélia estava lá. Na época, houve quem dissesse que ela estava se “expondo demais”.
Ela própria avalia: “Eu não acho que exagerei não, foi como eu quis, queria passar por isso. Era um risco tão grande que até acredito que saí ilesa. No sentido artístico foi ótimo para mim. Claro que tinha gente que queria me matar porque entrei nos Mutantes, mas sempre tem gente querendo matar outras por algum motivo. Eu tive momentos de extrema alegria com os Mutantes. O show de Londres foi maravilhoso, o show de São Paulo no Monumento do Ipiranga foi histórico, teve um em Porto Alegre que foi uma loucura, fizemos ainda um show em San Francisco, incrível. Então, eu tive a oportunidade de estar no palco com aqueles caras, e vivendo o rock’n’roll já com uma carreira solo, um privilégio para mim. Mas tinha de ter saído mesmo na hora que eu saí. Se eu tinha que ter entrado? Ah, tinha. Em relação a mim mesma, sim. E para a banda foi muito importante ali naquele momento. Eles precisavam de alguém, e algumas pessoas não tinham dado certo. E quando Sérgio me conheceu, foi fulminante. Entrei numas, liguei para a Rita, ela deu força, e falei, ‘cara, vou viver isso, dane-se’. Mas a segunda turnê para a Europa foi heavy. Se não fosse, eu continuaria mais um pouco só. Eu não precisava ter saído de repente. Mas eu sou uma mulher de 44 anos. Chegar, por exemplo, no aeroporto de Lisboa, não ter nenhum carregador e 50 volumes para todo mundo carregar. Desculpa, não vou fazer. Não vou, mentira, porque na hora eu fiz. Eu gosto de rock’n’roll, mas da música.”
Para Zélia, Pelo Sabor do Gesto, é o mais pop de todos. Se em Pré-Pós atirava para todos os lados, rock, MPB, pop; no CD atual prevalece a estética inteligente e sofisticada e, digamos, objetiva dos produtores. Principalmente John que seria o responsável por poucas faixas acabando por dividir com Beto, 7 a 7. Além de seus contemporâneos, Chico César, Zeca Baleiro, Paulinho Moska e Edu Tedeschi, Zélia mais uma vez homenageou ídolos como Rita Lee e Itamar Assumpção – “Duas Namoradas” tem letra de Alice Ruiz – garimpou o gaúcho Nei Lisboa e um sucesso de Evinha do Trio Esperança – “Os dentes brancos do mundo”, dos irmãos Valle, Marcos e Paulo Sérgio -, e deu um espaço para os novos. Dante Ozzetti, o irmão mais talentoso de Ná, e o tecladista Marcelo Jeneci que entrou aos 45 minutos do segundo tempo. O show estreou na cidade natal de Zélia Duncan, Niterói, uma fluminense que surgiu em Brasília, mora no Rio e lança disco produzido por um paulista e um mineiro. “Eu sou a ponte”, define ela, toda suave.
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