Ex-Ministro mostra o poder de Roberto Marinho no governo Sarney

A madrugada não prometia nada. O salão principal do Palácio da Liberdade estava abarrotado. Todos queriam se despedir, em silêncio, de Tancredo Neves. Aos murmúrios e cochichos, políticos trocavam impressões do que viria. De 15 de março até 21 de abril de 1985, ainda havia esperanças de que ele voltasse. Agora se cristalizava a certeza de que o governo seria regido pela batuta de quem, até anteontem, esteve a serviço da ditadura.

Atrás de uma coluna, o senador Fernando Henrique segredou ao Ministro da Justiça, Fernando Lyra: “Sarney não fará nem 2% do que Tancredo faria.”
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Memorizei a frase. Era digna de qualquer “melhores da semana” de qualquer publicação. Mas meu editor não a publicou. E ainda me questionou: “Ele não poderia ter dito aquilo, você quer intrigar a Nova República quando mal começou?”.

Muitos anos depois, o editor se desculpou. Lamentou não ter publicado a frase. Achou-a factível. Agora, com a publicação de Além do Feijão com Arroz – autobiografia de Maílson da Nóbrega, com Louisie Sottomaior (Editora Civilização Brasileira, 591 páginas) -, a afirmação ganha mais força ainda.

Quando Maílson chega ao Planalto pela segunda vez, o governo Sarney é um exército em frangalhos. Ele é o quarto ministro da Fazenda, depois dos fracassos de Francisco Dornelles, Dilson Funaro e Bresser Pereira em deter a inflação. Ministros caem, a inflação não.

Às vésperas do Natal de 1987, quando a maioria dos brasileiros se perguntava o que ganharia de presente, Maílson já era o Ministro da Fazenda interino, faltava ser efetivado. A convite de Sarney, ele viaja ao Maranhão sem saber o motivo exato:

A revelação de Curupu
No dia 28 de dezembro de 1987, Sarney telefonou pedindo que eu fosse à casa de praia da família na Ilha do Curupu, em São Luís. (…) Aquela era a primeira ocasião em que conversávamos longamente por umas três horas, inclusive amenidades. (…) Finalmente Sarney externou seu desejo de me efetivar como ministro. Apenas precisaria de uns dias antes de anunciar a decisão. Havia “arestas a aparar”. Ao ser perguntado sobre elas tentou desconversar. “Tenho algumas dificuldades. É necessário conversar com líderes políticos e algumas outras pessoas.” E então revelou: “Quero antes conversar com o doutor Roberto Marinho”.

A sabatina do Cidadão Kane
Apenas no dia 5 de janeiro recebi novas notícias. Naquela manhã, por telefone, Sarney perguntou se haveria problema em conversar com Roberto Marinho. (…) A reunião seria naquela mesma tarde, no escritório da Globo, que ficava no Setor Comercial Sul. (…) Desde então, passei a enxergar muitas semelhanças entre o empresário e William Hearst (…) que inspirou o filme Cidadão Kane, de Orson Welles, de 1941.

(…) Durante nossa conversa cordial discorri sobre os temas de que já tratara com Sarney e muitos outros. (…) Depois da explanação, me questionou sobre tudo. Parecia me sabatinar. Depois de quase duas horas revelou: “Gostei muito.”

Saindo da sala, dei lugar a Antonio Carlos Magalhães, Ministro das Comunicações e amigo tanto de Marinho quanto de Sarney. Pediu para que eu o esperasse. (…) Depois de alguns minutos, ACM deixou doutor Roberto, confirmando que o empresário ficara com uma impressão muito boa sobre mim. (…)

De volta ao Ministério, ali pelas 6 da tarde, apenas 10 minutos depois de sair do escritório da Globo, fui surpreendido pela secretária. “Parabéns.” Não entendi. (..) “O senhor é o novo ministro da Fazenda. Deu no plantão do Jornal Nacional.” Logo tocou o telefone. O presidente me convocava ao Palácio do Planalto. Quando cheguei, ele estava com o ato de nomeação em mãos, pronto.

Maílson percebeu, aos poucos, que Roberto Marinho se comportava como cabeça de um poder paralelo. Ele podia muita coisa, inclusive convidá-lo para almoçar na Vênus Platinada.

Almoço reservado
Pouco depois da minha posse, Roberto Marinho me convidou para um almoço, reservado, no Jardim Botânico, onde a TV Globo funcionava. (…) O encontro foi muito agradável. Conversamos sobre conjuntura econômica e política do país, um papo muito leve. Não sei como se intrometeu nisso outro assunto. Ele disse, sem pedir reservas, que indicara dois dos ministros de Tancredo Neves, confirmados por Sarney: ACM, das Comunicações e Leônidas Pires, do Exército. Não sei se era verdade, nem se ele exibia que era poderoso.

Até para não parecer que estava legislando em causa própria, em março de 1988 Maílson recomendou a Camilo Calazans, presidente do Banco do Brasil, que não levasse adiante uma medida que aumentava salários na faixa de tempo de serviço que o abrangia. Camilo, no entanto, rebelou-se e anunciou a medida à revelia. Maílson resolveu demiti-lo, sem saber que estava mexendo num vespeiro. Maílson conta na autobiografia:

A demissão do presidente do BB
Ali pelas três o Presidente Sarney ligou, sugerindo que reconsiderássemos a decisão (de demitir o presidente do Banco do Brasil). Insisti que ele não devia recuar. Era um caso de indisciplina grave. (…) Só então revelou que o doutor Roberto intercedia por ele. Diante do meu silêncio, perguntou se eu ouviria as razões do empresário. Aceitei.

Minutos depois, Roberto Marinho me falava, ao telefone, que “ouvira rumores” sobre a demissão. Pedi que ele ainda não divulgasse a notícia, mas que, realmente, Calazans estava demitido, por um ato presidencial. Lembrou que era amigo de Camilo há muitos anos, (…) e pediu para que eu ponderasse. Concordei sobre as qualidades de Calazans, mas repeti. Tratava-se de um caso de grave indisciplina. (…) Sem argumentos, respondeu apenas: é.

Ainda em março, o anúncio e, logo em seguida, o cancelamento de um programa econômico do governo desapontou a muitos, entre eles o dono da Rede Globo.

O DIA EM QUE SARNEY RENUNCIOU
Ministros foram convocados para votar contra ou a favor

Dos 806 dias no Ministério, os mais difíceis para Maílson devem ter sido os 100 últimos. Impotente diante da inflação, convencido de que não havia mais instrumentos para derrubá-la dos 40% ao mês, ele propõe a posse antecipada do novo governo – Lula ou Collor – ou a renúncia do presidente:
No início de dezembro de 1989 (…) a inflação disparava, ainda faltavam três meses para o novo presidente assumir e não podíamos fazer mais nada. (…) Com a renúncia de Sarney, a economia podia ser beneficiada do novo ambiente, mais cedo. (…) Decidimos levar a idéia ao presidente antes do segundo turno. (…)
O relógio marcava 18h20 a 7 de dezembro de 1989 naquele sábado que poderia fazer história. Recostado em sua espaçosa cadeira diante dos ministros, Sarney aparentava calma. (…) Passou a palavra a mim, pedindo que eu apresentasse o quadro da grave conjuntura que vivíamos. (…) Era preciso discutir a hipótese da renúncia. O General Leônidas se irritou. (…) Aquele momento histórico da transição para a democracia não podia ser maculado com um ato de covardia. (…) Se seguiram quase duas horas de debates. (…) Era chegada a hora de cada um emitir seu parecer. (…) A votação pendia para a permanência de Sarney. Cinco ministros, a metade, manifestaram essa opinião. Quatro apoiaram a renúncia. Um ficou na dúvida. Sarney não se manifestara durante toda a reunião. (…) Já passava das 8 da noite quando o presidente tomou a palavra, depois de mais de três tensas horas e de discussões, acirradas em certos momentos. Revelou que, diante da conjuntura acinzentada e do panorama negro avaliara nos últimos meses a hipótese de deixar o governo antes do término do mandato. (…) Ressaltou que não o faria “sem estar em sintonia com as Forças Armadas” que tanto o apoiavam. Embora da ata da reunião conste que o presidente apenas pediu para que todos continuassem refletindo sobre o assunto, sem tomar qualquer decisão, entendi que decidira ficar.

Dívida exportada
Em março de 1988, o Conselho Monetário Nacional, sob minha presidência, aprovou uma ideia inovadora: trocar dívida externa por exportações. (…) Anunciei o programa (…) a repercussão foi grande. (…) Em poucos dias, o Banco Central recebeu dez bilhões de dólares em propostas de enquadramento no programa. (…) Tivemos de revogar a medida. (…) Diversos empresários ficaram decepcionados. Um deles, Roberto Marinho.

Ô ministro!
No fim de uma manhã fria (no segundo semestre de 1988) recebi uma ligação do Presidente Sarney. Ele almoçava com Roberto Marinho e me convidou a acompanhá-los. Logo que me sentei, doutor Roberto revelou que tinha um plano para resolver o problema da dívida externa. Disse que conversara pessoalmente com o Presidente Bush. (…) (Era) um projeto de produzir casas pré-fabricadas para exportação, que seriam trocadas por dívida externa, num negócio de 1 bilhão de dólares. (…) Ouvi respeitosamente os argumentos do empresário, (…) (mas) afirmei que aquela operação não interessava ao país. “Ô ministro, então o senhor acha que proponho algo contra os interesses do país?”

(…) Foi Jorge Serpa quem me procurou – um poderoso lobista, respeitado e temido -, dias depois do almoço com Marinho, para conversarmos novamente sobre o negócio envolvendo as casas pré-fabricadas. Ouviu que não.

Se deu no Jornal Nacional, aconteceu
No dia 31 de outubro, o
Jornal do Brasil, inimigo figadal do dono de O Globo publicou um artigo eletrizante (…). Ele relatava as pressões que eu e o ministro João Batista de Abreu, do Planejamento, sofríamos (…). Não citava o doutor Roberto Marinho, mas contava a respeito de uma operação de um bilhão de dólares relacionada à exportação de casas pré-fabricadas. (…)

Logo veio o telefonema do presidente da República: “Doutor Maílson, o Roberto está indignado. Precisamos desmentir essa informação do Jornal do Brasil. “(…) “Presidente, o vazamento é lamentável, mas é impossível atender ao pedido do senhor. A informação é verdadeira. (…) O doutor Roberto não me pressionou pessoalmente para incluir o programa no pacto Social, mas o que está na coluna do Castello é procedente.”

(…) Por volta das 18 horas, Sarney telefonou novamente. “O senhor falaria com o Roberto?” (…) Pouco depois das 19h, doutor Roberto me ligou. Falava baixo. (…) “Doutor Maílson, estou muito chateado, indignado. Não mereço tudo isso. Estou trabalhando pelo país. Meu interesse é ajudar.” (…) “Doutor Roberto, também não gostei do que aconteceu, mas não vejo razão para o senhor se preocupar. (…) Nunca ouvi do senhor qualquer pressão para incluir no Pacto Social a troca de dívida externa por investimento.” (…) “Ótimo. Vou mandar uma equipe da TV Globo para gravar essa declaração.” (…) “Desculpe-me, doutor Roberto, mas isso eu não farei.” (…) “Então eu não estou satisfeito.” (…) “Sinto muito.”

(…) Talvez meia hora depois Rosa entrou na minha sala. “Você viu???” (…) O noticioso tinha sido aberto na voz grave de Cid Moreira: “veja nesta edição: ministro da Fazenda desmente acusações contra o jornalista Roberto Marinho.” (…) Resolvi deixar passar, esperando que o episódio fosse esquecido.

Quando qualquer problema envolvia alguém próximo a Roberto Marinho, era preciso ficar com o pé atrás. Mesmo que esse alguém estivesse sob a mira da Polícia Federal. Maílson com a palavra:

O protegido do dr. Roberto
As dificuldades para importar produtos e equipamentos geravam também outros problemas, como contrabando e sonegações. Por causa deles, já em maio aborreceríamos novamente Roberto Marinho, tentando demitir um delegado da Receita Federal do Rio de Janeiro tido como seu protegido e sobre quem pairavam denúncias de corrupção, principalmente em facilitar a entrada ilegal de produtos importados. Mesmo sem provas cabais, era inconveniente manter no cargo alguém sob tamanha suspeição. Acontece que todas as vezes em que uma investigação chegava aos seus calcanhares, algo irritava o doutor Roberto, como uma fiscalização em uma das unidades do grupo. (…) Um dia, quando a fiscalização bateu às portas de uma das unidades (…) o doutor Roberto voou a Brasília para expor seu desgosto ao presidente. Quando Sarney me telefonou, garanti que sequer sabia da fiscalização. De qualquer maneira, ela foi suspensa. Dias depois, conseguimos fortes indícios de irregularidade na liberação de um contêiner de produtos importados no aeroporto do Galeão (…) (que) acrescentaram novas suspeitas ao delegado. Contei o ocorrido ao ministro Antonio Carlos Magalhães, pedindo para que informasse a Roberto Marinho de que ele poderia estar protegendo alguém com sólidas suspeitas de irregularidade. No dia seguinte, ACM comunicou que não haveria objeções à demissão, que foi feita.

Tal como mandava o Jornal Nacional desmentir o que Maílson não havia desmentido, Roberto Marinho estampava em seu jornal fatos que ele gostaria de ver acontecer:

Demitido pelo O Globo
Na noite de 3 de agosto de 1989, na saída de um jantar em São Paulo a repórter Célia Chaim, do jornal O Globo me abordou: “O que o senhor tem a declarar sobre sua demissão, ministro?” (…) Na manhã seguinte recebi um telefonema do general Ivan. “Você já leu O Globo?” (…) A primeira página estampava: “Inflação derruba Maílson”. (…) O jornal anunciava a criação de um “superministério da Economia”. (…) A primeira página da edição do sábado dia 5 informava: “Sarney escolherá com o Congresso o novo coordenador da economia.” (…) Nos dois dias seguintes continuou batendo na mesma tecla.

(…) Algumas vezes me perguntei porque não me demitia, tantas eram as pressões.

Maílson aguentou até o fim. Até a manhã de terça-feira, 18 de março de 1990, quando transmitiu o cargo a Zélia Cardoso de Mello. Foram 26 meses e 12 dias, 806 ao todo. Foi o mais longevo Ministro da Fazenda de Sarney. Não venceu a inflação. Mas não foi o único. Ela já vinha dos governos militares. E desafiava economistas de primeiro time, como Delfim Netto.

Ao mostrar, em seu livro, as entranhas do poder – de forma como ministro nenhum teve coragem de expor até hoje -, ele presta, talvez, um serviço mais importante do que se tivesse derrubado a inflação.

OS TRÊS PEDIDOS DE COLLOR
Um deles era o feriado bancário e outro, não contar nada a Maílson
Nos primeiros dias de março de 1990, Collor anunciou que Zélia seria sua ministra da Economia. (…) Logo depois, visitou Sarney em seu sítio de Pericumã, em Brasília. (…) A visita foi interpretada por comentaristas como um gesto de conciliação depois de uma campanha pouco civilizada. Não era. No mesmo dia, depois da partida do presidente eleito também fui chamado até lá. Sarney contou que Collor lhe tinha feito dois pedidos ao qual acrescentou um terceiro: não me contar nada. (…) A primeira solicitação era para encaminhar ao Senado uma proposta de nomeação de Ibrahim Eris para a presidência do Banco Central. A explicação era convincente: gostaria de iniciar o seu governo com o presidente do BC empossado. (…) O segundo pedido era um feriado bancário. (…) “Quando deverá ser esse feriado, presidente?” Collor avisaria.Uma loucura!

Na terça feira 11 de março, a três dias do término do governo, Sarney me ligou. Falou em código: “Recebi aquela informação, doutor Mailson.” Era hora de agir. Por volta das 15 h me reuni com Wadico Buchi, presidente do B.C. (…) Ele foi contra. “Acho uma loucura! Você me autoriza a dissuadir Ibrahim?” (…) Wadico correu ao Bolo de Noiva. Telefonou de lá: “Eles não abrem mão.” Naquele dia, após o fechamento do mercado financeiro, o BC decretava feriado bancário por três dias.

» Além do Feijão com Arroz, Maílson da Nóbrega, Editora Civilização Brasileira

Memórias de Almino


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