Exclusivo/ Dois anos de batalha para adotar duas filhas

“As crianças chegaram! Já estão em casa”, contou-me no começo desta semana o amigo Gilberto Carvalho, feliz da vida porque finalmente tinha conseguido concretizar o grande sonho dele e de sua mulher, a Flor: adotar uma criança.

Uma não, foram logo duas, de 6 e 4 anos. Depois de dois anos de batalha nas Varas da Família, enfrentando toda espécie de burocracias e dificuldades, o casal estava comemorando naquela noite a chegada das crianças.

Chefe do Gabinete Pessoal do presidente Lula desde o primeiro dia de governo, o baixinho Gil, que quase foi padre e já era pai de três filhos adultos do seu primeiro casamento, é uma dessas figuras raras que sempre encontram tempo para ajudar os outros, mesmo sendo o primeiro funcionário a chegar e o último a sair do Palácio do Planalto todos os dias.

Minha mulher e eu acompanhamos a luta deles para adotar uma criança desde o começo, porque era sempre este o assunto quando encontrávamos o casal Gil e Flor, nossos velhos amigos. Por isso, também ficamos muito contentes com o final feliz desta história, que pode servir de estímulo e inspiração a outros casais para fazer o mesmo.

Para contar a história toda como foi, nada melhor do que o próprio Gilberto Carvalho, que gentilmente me enviou o comovente relato publicado abaixo:

“Então, Ricardo, vamos lá:

Como você sabe, tenho três filhos do primeiro casamento – a mais velha, Myriam, tem 29 anos, o Samuel, 26, e o Gabriel, 22. Sempre digo que os filhos foram o que deu mais certo na minha vida, uma relação muito intensa, que tem sido fonte de alegria e energia para minha vida.

Mesmo com a separação, a relação seguiu muito forte. Quando encontrei a Flor, disse a ela que minha paternidade estava realizada, que havia feito inclusive vasectomia Ela, de sua parte, que não tinha tido filhos, disse que não estava nos seus planos a maternidade.

Com a estabilização de nossa relação, e depois de um trabalho terapêutico, a Flor falou da possibilidade da adoção. No início, falei brincando que eu me preparava mais para ser avô e não pai

Mas logo concordei que era um direito dela experimentar a maternidade e pensei que Deus tem sido tão misericordioso conosco e comigo em particular que jamais poderia me negar a um gesto de tentar fazer feliz um “serzinho” humano

Assim, em abril de 2007 demos início ao processo na Vara da Infância e da Juventude de Brasília. No perfil desejado, colocamos que gostaríamos de adotar preferencialmente uma menina de 0 a 3 anos.
Depois do processo de entrevista, participação em palestras, visitas à nossa casa, recebemos em outubro daquele ano a sentença do juiz, que nos habilitava para a adoção e nos inscrevia no cadastro de pretendentes qualificados. A partir daí, a longa espera

Durante este processo, várias oportunidades se ofereceram para a gente “furar a fila”. Mas tínhamos compreensão de que não poderíamos ir por esse caminho. Nas poucas vezes que decidimos examinar estas possibilidades sempre vimos que era complicado e que o melhor era aguardar.

Muita gente telefonava, informava que em tal lugar era mais fácil; que em tal cidade havia um casalzinho de irmãos disponíveis para adoção; em outra cidade, outra criança. Mas nunca as coisas se concretizavam efetivamente, até porque não aceitávamos ir por caminhos paralelos. E tudo isso provocava sempre um desgaste emocional pesado.

Ocorre que o processo de adoção é muito burocratizado no nosso país. Felizmente, o Presidente Lula sanciona na próxima segunda-feira, dia 3, a nova lei da adoção que simplifica muito esse processo.
Há um agravante: como as Varas da Infância têm em geral poucos funcionários, elas não conseguem montar uma “rede de captação” de crianças disponíveis. Então, em cada hospital ou clínica se cria uma rede informal, que entrega diretamente as crianças a pessoas interessadas, que, em seguida, legalizam a adoção. Por esta razão, a fila do cadastro anda muito devagar.

Além disso, o processo de retirada do pátrio poder dos pais biológicos é muito lento. E aí ocorre um fato perverso: a criança permanece, à espera do fim deste processo, durante muito tempo nos abrigos e orfanatos. Quanto mais ela cresce, mais diminui a chance de vir a ser adotada, uma vez que a imensa maioria dos casais que querem adotar desejam crianças pequenas, como era o nosso caso.

Foi conhecendo essa realidade e ajudando no processo de discussão da nova lei, que resolvemos ampliar o perfil de idade da criança que esperávamos e também a aceitar, se fosse o caso, uma dupla de irmãos.

Subjetivamente, a gente foi nesse tempo todo se preparando – uma preparação espiritual, rezando e pedindo desde então pelo nosso futuro filho. Compusemos uma oração que rezamos muitas noites juntos e, ao mesmo tempo, preparando um quarto da casa com berço, decoração infantil, etc. O berço tivemos que doar agora porque as meninas que recebemos não cabem mais neste berço

Mas, como a vida sempre reserva surpresas, minha filha que estava em Madri conheceu uma menina, a Fernanda, cujo irmão era juiz da infância em Santa Catarina, o Dr. Alexandre Rosa, uma ótima figura.
Falando com ele, conheci o Dr. Francisco de Oliveira, também de Santa Catarina, que é o responsável nacional pela área de adoção na AMB (Associação dos Magistrados do Brasil). Eles me puseram a par de todas as dificuldades que enfrentavam para a aprovação da nova lei e eu me interessei por ajudar.

Conseguimos agora esta vitória da aprovação da nova Lei de Adoção. Nas nossas conversas, um belo dia o Dr. Francisco nos fala de duas irmãs, de 4 e 6 anos, em Santa Catarina, cujo processo de liberação para adoção estava adiantado e nos pergunta se tínhamos interesse.

A primeira hipótese que ele havia nos apresentado era de uma família de cinco irmãos. Aí era demais para as nossas possibilidades A gente manifestou interesse pelas irmãs e ele nos descreveu o histórico familiar.

Como em quase todos os casos, a história é muito triste: pai preso por tráfico, mãe que se prostituira. No dia 21 de julho, finalmente, ele nos avisa que as meninas estavam disponíveis. Largamos tudo e, já no dia 24, viajamos a Santa Catarina para conhecer as meninas.

O primeiro contato, ainda no abrigo, foi muito impactante. Elas nos encantaram à primeira vista Mas ainda não podíamos dizer nada a elas. Tivemos uma reunião com a juíza, uma mulher extraordinária, corajosa, que toda semana almoça em um dos abrigos da comarca, mobiliza a comunidade e consegue dar um padrão admirável a esses abrigos.

Ela nos contou histórias incríveis e, ao mesmo tempo, histórias tristíssimas. Mas nos confortou e deu grande segurança para a gente ir em frente. Visitamos de novo as meninas no sábado. Elas já haviam desconfiado de tudo e começaram, mesmo no meio das outras crianças do abrigo, a nos chamar de pai e mãe

É como você estender uma corda a alguém que está se afogando, Kotscho Elas se agarram com toda força Aliás, o que corta o coração é conversar com as outras crianças, que te pedem para que você as leve também, ou arranje uma família para elas Dá vontade de carregar todas

Na segunda-feira, às dez da manhã, fizemos a audiência formal e jamais vamos nos esquecer do momento em que, no final da audiência, nos trouxeram as duas, cada uma com uma mochilinha nas costas. Vieram direto para o nosso colo A mais nova chorando, assustada com os cabelos ouriçados de uma das assessoras da juiza, achava que ela era uma bruxa.

De lá para cá, foi uma movimentação doida, carro, avião, a chegada em casa. O pessoal do gabinete havia preparado a nossa casa com cartazes de boas vindas e dois sacos de brinquedos e quinquilharias para as duas.

A excitação total pelo novo, a alegria indizível de duas meninas que te abraçam, te chamam de pai e mãe, bagunçam completamente a casa e “feito posseiras”, tomam conta de seu coração

Elas estão ótimas, muito carinhosas, com as birras próprias de criança, exercitando os limites, testando a gente Sabemos que temos pela frente um grande e difícil caminho de reconstrução desses coraçõezinhos machucados.

Mas já posso dizer que elas estão nos fazendo um bem danado, talvez maior do que o bem que possamos lhes fazer.

É isso.

Kotscho, como te falei, é importante preservar a identidade das duas e a cidade de origem delas. O resto, fique à vontade.

Um forte abraço e obrigado por essa oportunidade,

Gil”


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