“Existe um genocídio de jovens pobres, sobretudo negros”

Mestre em antropologia social, doutor em ciência política com pós-doutorado em filosofia política, o secretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu (RJ), Luiz Eduardo Soares é um expert em segurança pública. Foi subsecretário de Segurança e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro no governo Garotinho, foi consultor da prefeitura de Porto Alegre, responsável pelo plano municipal de segurança da cidade e pela implantação do projeto piloto em 2001, e também secretário nacional de Segurança Pública no primeiro governo Lula. Mas encontrou nas palavras mais uma maneira de defender sua posição quanto às questões de segurança no País. Escreveu, entre outros, os livros Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Cia das Letras, 2000); Cabeça de Porco, com MV Bill e Celso Athayde (Editora Objetiva, 2005) e Elite da Tropa, com André Batista e Rodrigo Pimentel (Editora Objetiva, 2006). Este último deu origem ao aclamado filme Tropa de Elite, de José Padilha, sobre o dia-a-dia do Bope pela visão dos policiais. Seu novo projeto, também ao lado de Padilha, é o roteiro de Nunca Antes na História deste País, filme sobre os bastidores de Brasília, que deverá estrear antes das próximas eleições. Ele falou à Brasileiros:

Brasileiros – Qual é a sua avaliação da entidade “Polícia” no Brasil? Nas grandes metrópoles, nos pequenos municípios, tanto a militar quanto a civil. A seu ver ela é boa, ruim, péssima? Já foi pior? Está melhorando? Piorando?
Luiz Eduardo Soares – Nossas polícias estaduais, civis e militares, têm rendimentos distintos, de acordo com os estados e os momentos políticos, mas, de modo geral, não satisfazem nem a sociedade, nem os profissionais das próprias polícias, nem as exigências constitucionais. Há um nível de irracionalidade nas ações, de brutalidade, de corrupção e de ineficiência elevadíssimo. As polícias são reativas (correm atrás das tragédias em vez de preveni-las), inerciais (reproduzem padrões herdados, acriticamente), fragmentárias (não estão regidas por uma política integrada e sistêmica; pelo contrário, reagem a demandas dispersas, sobretudo as que têm apelo midiático e político). A fragmentação também decorre do que, tecnicamente, chamamos fratura do ciclo de trabalho policial: a PC faz uma parte do trabalho e a PM, outra, sem que haja cooperação verdadeira ou integração orgânica. As polícias são refratárias à gestão racional: faltam-lhes mecanismos que possibilitem a qualificação de dados e informações, diagnósticos consistentes, planejamento sistemático, avaliações regulares e monitoramento corretivo. Errar é humano e é parte da rotina de qualquer instituição, mas é gravíssimo não ser capaz de identificar os erros, avaliando o que se faz, porque isso condena ao erro, à sua reprodução. Tudo isso concorre para que as leis – mesmo respeitosas da equidade, na forma – acabem sendo aplicadas por meio de um filtro seletivo que as submete à refração ditada por discriminação de cor, classe, faixa etária e área da cidade. A consequência é a promoção da desigualdade no acesso à Justiça e a incompetência na redução da violência.

Brasileiros – A questão segurança é carregada de avaliações maniqueístas. Como o senhor vê o trabalho das entidades de direitos humanos? Como argumentar a favor de direitos humanos com familiares de vítimas da violência?
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L.E.S. – As entidades de direitos humanos nem sempre compreendem completamente todos os aspectos de sua missão, que é, entretanto, decisiva, indispensável, crucial. Não compreendem quando, por exemplo, se esquecem que todos os seres humanos cujos direitos sejam violados merecem nossa solidariedade ativa, independentemente de sua profissão. Inclusive, os policiais. Se eles estão agindo corretamente, respeitando a Constituição e os direitos humanos, e sofrem alguma forma de violência ou de transgressão a seus direitos, merecem, precisam de nossa solidariedade, enquanto cidadãos e militantes dos direitos humanos. Nem sempre os companheiros das entidades mostram sensibilidade e disposição de solidarizar-se, ativamente, quando a vítima é policial. Mas têm havido avanços e temos procurado recuperar o tempo perdido, demonstrando o caráter universal e não discriminatório seja dos direitos humanos, seja de nossa militância. Quanto a falar com familiares de vítimas sobre direitos humanos, claro que é possível, afinal, elas e seu ente querido são vítimas de violações aos direitos humanos e não teriam por que negá-los. Se o fazem, é por incompreensão do que sejam os direitos humanos e de sua fundamental importância histórica, política, social e cultural.

Brasileiros – Existe uma guerra entre o estado oficial e o estado paralelo? Há uma trégua nesse momento? Em que pé ela está?
L.E.S. – Não há estado paralelo. O que há são enclaves territoriais e sociais subtraídos à vigência do estado democrático de direito. E há também paradoxos, que embaralham a própria noção de estado. Quero dizer o seguinte: se o estado age como criminoso, uma vez que perpetra crimes (ao descumprir a lei – a Lei de Execução Penal (LEP), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a própria Constituição, ao encobrir, tolerar e estimular execuções extrajudiciais, por exemplo), como traçar com clareza os limites que separam os universos da legalidade e da ilegalidade?

Brasileiros – Qual é a sua opinião sobre as estatísticas sobre os confrontos policiais e os chamados autos de resistência?
L.E.S. – Essa é uma questão gravíssima. Está em curso em vários estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, um verdadeiro genocídio de jovens pobres, sobretudo negros, do sexo masculino. Nos últimos cinco anos, mais de mil pessoas, anualmente, têm sido vítimas letais de ações policiais no Rio. Uma parcela imensa desse número monstruoso é de execuções. O extraordinário e repulsivo é que a sociedade se cala, o MP se cala, a Justiça se cala, a mídia se cala – ainda que, aqui e ali, faça alguma crítica pontual. Tomemos o caso de 2007 (não há dados fechados sobre 2008). Naquele ano, houve 1.330 mortes, registradas como autos de resistência, no estado do Rio. Quantos desses casos foram investigados, sequer?

Brasileiros – O que é a desconstitucionalização das polícias e como implementar esse conceito?
L.E.S. – É a atribuição aos estados da autoridade para manter ou alterar o atual modelo policial (polícia civil e polícia militar, no formato organizacional conhecido), que herdamos da ditadura e no qual jamais tocamos, porque a Constituição não permite. Isso abriria uma janela para mudanças profundas. Na prática, de acordo com a correlação política em cada estado, haveria possibilidade de uma verdadeira refundação das polícias, com efeito demonstração revolucionário para o País. Observe-se que uma mudança nacional uniforme encontraria resistências insuperáveis, hoje, até porque há polícias que têm avançado muito, como a PM de Minas Gerais. Situações de sucesso bloqueariam mudanças inadiáveis no Rio, por exemplo. Mas para que haja reais avanços seria preciso que, paralelamente à desconstitucionalização, viesse a implantação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

Brasileiros – O que seria o SUSP?
L.E.S. – O SUSP é a normatização que: (a) unifica e qualifica a formação policial, em plano nacional, respeitando-se diversidades institucionais e regionais; (b) que organiza racionalmente e uniformiza – permitindo a integração e a cooperação – dados e informações; (c) que determina a criação de mecanismos de gestão racional, com diagnóstico, planejamento, avaliação e monitoramento; (d) que valoriza a perícia e a intersetorialidade; (e) que estimula a prevenção; (f) que institui o controle externo e a participação da sociedade; e (g) que valoriza os profissionais, dignificando-os, respeitando-os como cidadãos e trabalhadores.

Brasileiros – Qual é a sua análise sobre a corporação Bope?
L.E.S. – O Bope foi muito violento e incorruptível. Hoje, temo que já não seja incorruptível. Entretanto, há virtudes que têm de ser reconhecidas e respeitadas, até porque, quando bem aplicada, a força mais eficiente é a que menos viola direitos.

Brasileiros – O que acha de essa corporação estar sediada dentro da comunidade de Tavares Bastos?
L.E.S. – Se houver um direcionamento para o respeito à Constituição e aos direitos humanos, vejo com bons olhos o convívio com a comunidade.

Brasileiros – O que o levou a escrever o livro Elite da Tropa?
L.E.S. – Eu havia escrito Cabeça de Porco, com MV Bill e Celso Athayde, mostrando o mundo objetivo e subjetivo dos jovens envolvidos com a violência nas favelas brasileiras. Nosso propósito era mostrá-los como seres humanos que precisavam da sociedade para salvar-se do inferno que é a violência. O livro Elite da Tropa, que escrevi com Rodrigo Pimentel e André Batista, procura fazer exatamente o mesmo do outro lado, desvendando a humanidade dos policiais e revelando como chegam a agir como tantas vezes agem, no contexto de uma formação profissional absurda e de políticas de segurança criminosas.


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