Há muitos anos, um sebo na Rua Rodrigo Silva, próximo à Praça da Sé, em São Paulo, exibia uma pilha de livros muito estranha. Era uma mesma obra em centenas de cópias com uma dedicatória a um conhecido governador cleptomaníaco. Todavia, o autor teve o trabalho de colar uma tarja em cima da dedicatória de todos os exemplares!
A dedicatória de uma obra pode ser a mais enganosa de todas. Naquele caso, o autor repetia um gesto de artistas que homenageavam seu mecenas. E também repetia outro gesto comum: o arrependimento, quando tempos e vontades já haviam mudado. Terá sorte o autor cujas conveniências ditarem mudanças no próprio original antes que ele se torne livro.
Há as dedicatórias intempestivas, como a de Marx ao seu sogro: ele se desculpa por dedicar-lhe uma brochura, mas se diz impaciente para esperar oportunidade melhor! Há as recusadas: diz-se que Darwin recusou a dedicatória que talvez Marx lhe fizesse no próximo volume de O Capital, mas Engels disse que os outros volumes seriam dedicados à liebling Jenny… Há dedicatórias em troca de favores, há as óbvias e as íntimas, mas as mais intrigantes são as que não foram feitas. Hannah Arendt faria uma a Heidegger, mas não o fez. Escreveu depois em uma nota que havia “permanecido fiel e infiel” a ele, “ambas as coisas com amor”.
A dedicatória de exemplar tem outro caráter. Pode ser a um amigo ou a um desconhecido que foi a um lançamento. Poderíamos pensar que a dedicatória de obra (que já vem impressa) sobrevive mais que a de exemplar (manuscrita), mas como explica Gérard Genette em seus Paratextos Editoriais (Ateliê Editorial), a massificação dos livros causou uma busca pela individualização do exemplar. Uma primeira edição de Mário de Andrade autografada tem um valor maior de mercado.
A esse respeito, permita o leitor outra pequena memória de alfarrábio. Há anos eu frequentava um sebo na Boca do Lixo paulistana, cujo dono se afeiçoara de mim. Conversávamos e esticávamos a conversa ao bar da esquina. Certa vez, mostrou-me parte de sua biblioteca. Ele tinha coleções magníficas: todas as edições de Euclides da Cunha em todas as línguas. Toda a coleção Documentos Brasileiros, da José Olympio, e a Brasiliana também. Dicionários setecentistas, autores modernistas autografados e assim por diante. Lá pelas tantas, falava-me de Há Uma Gota de Sangue em Cada Poema, obra juvenil de Mário de Andrade com uma dedicatória manuscrita.
Depois, outros tragos nos fizeram mais confidentes. Contou-me, sorumbático, que falsificava alguns autógrafos. Que imitava a caligrafia de vários autores com perfeição. Às vezes, arrancava a folha de guarda de um exemplar de outra edição, envelhecia a página e substituía a mesma folha em uma edição mais rara. E, assim, colocava o exemplar à venda em seu sebo. Descobri, desde então, que também as dedicatórias de exemplar são perigosas.
Não o julguei e continuamos amigáveis até a sua morte. Comprei muitos livros dele a bom preço, mas nunca um exemplar com dedicatória!
*Professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo.
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