O Homem que Engarrafava Nuvens não é um documentário convencional. Sim, o longa-metragem dirigido por Lírio Ferreira, assim como outros filmes recentes do gênero, focaliza a vida e obra de uma personalidade da música brasileira: Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga em clássicos do quilate de Asa Branca, Assum Preto, Paraíba, Baião e Qui Nem Jiló. Porém, mais do que relatar a história do biografado – bombardeando o espectador com datas e fatos -, esse filme encantador vai além e resgata a importância do baião para a cultura brasileira.
O longa vai estrear em 15 de janeiro, trazendo outro atrativo: a atriz Denise Dumont, filha do compositor, e quem produz, narra e guia o espectador nesse mergulho na vida do poeta, político (deputado federal pelo Ceará) e pai Humberto Teixeira.
[nggallery id=15296]
“Na jornada em busca do meu pai, descobri o Brasil, o Nordeste, as raízes da obra dele, e vi que essas raízes continuam vivas”, diz Denise. “Agora, sinto ainda mais orgulho do meu pai e do meu País.”
Humberto Cavalcanti Teixeira nasceu em Iguatu, Ceará, em janeiro de 1916, e muito cedo destacou-se pela sensibilidade musical. Aos seis anos, dava seus primeiros passos na musette – versão francesa da gaita de foles. Seu tio, Lafaiete Teixeira, era maestro e foi o responsável por guiar Humberto também na execução da flauta e do bandolim. Aos 13, o garoto editou sua primeira composição: Miss Hermengarda, homenagem a uma concorrente de um dos primeiros concursos de beleza do Ceará. Dois anos depois, Humberto já estava morando no Rio de Janeiro.
Em 1943, equilibrava o ofício de advogado com o de compositor de marchas, sambas, xotes, sambas-canção e toadas. Dois anos depois, deu a guinada definitiva: encontrou-se com Luiz Gonzaga. Era o início de uma união que revolucionou a música brasileira.
“Naquele mesmo dia em que nos conhecemos, eu e Luiz Gonzaga ‘sanfonizamos’ os primeiros acordes e a linha mestra, não só de Baião, mas também de Asa Branca“, lembrou Teixeira, em depoimento incluído no documentário. “Asa Branca tornou-se um hino que diz respeito a muitos brasileiros. Quando nós a gravamos pela primeira vez, muitos pensaram que era uma espécie de música de igreja ou de cego. Não acreditavam jamais que um ritmo como o de Asa Branca e uma letra triste e enternecida como aquela pudessem alcançar o sucesso que teve.”
No dia 3 de março de 1947, em estúdio da RCA Victor, Asa Branca foi finalmente gravada, tornando-se trilha sonora sentimental para a imensa legião de nordestinos que fugiam da terra ardente do sertão.
A partir de Asa Branca, Luiz Gonzaga tornou-se uma grande estrela. Seu parceiro, no entanto, ficou em segundo plano nos compêndios da história. “Todo o mundo conhece Asa Branca, mas poucos sabem que meu pai foi um dos compositores”, reclama Denise. “Percebi que meus filhos não sabiam quem foi Humberto Teixeira. Fazer o longa-metragem seria uma forma de preencher essa lacuna. No decorrer das filmagens, percebi que ficar em segundo plano, atrás da escrivaninha, era uma opção dele. Mas vi nessa atitude mais um impulso para trazer sua obra e vida para o primeiro plano.”
Denise Bittencourt Teixeira nasceu em 1955, no Rio de Janeiro. Desde criança sonhava em ser atriz. Na mentalidade machista de Humberto, no entanto, essa profissão não cabia a uma mulher de respeito. Contra a vontade do pai, rebelde e destemida, Denise começou no teatro amador e cursou o Tablado, de Maria Clara Machado. Em 1973, fez sua estreia na televisão, na novela O Semideus, de Janete Clair. Proibida pelo pai de usar o sobrenome Teixeira, foi rebatizada Denise Dumont por Daniel Filho e Walter Avancini, da Rede Globo.
No cinema, teve a oportunidade de trabalhar com cineastas do porte de Walter Hugo Khouri em Eros, o Deus do Amor e Hector Babenco, em O Beijo da Mulher Aranha. Filmou até com Woody Allen. Em A Era do Rádio, aparece rapidamente cantando Tico-tico no Fubá à la Carmen Miranda.
O Homem que Engarrafava Nuvens teve longa gestação. “O filme começou a nascer em conversas com a Ana Jobim.” Nesses encontros com a viúva de Tom Jobim, Denise impressionou-se com a dedicação despendida por Ana para preservar o legado do compositor de Águas de Março.
“Depois de uma dessas conversas, falei sobre o projeto com o meu marido, Matthew Chapman (co-produtor do filme). Ele topou na hora e me deu US$ 5 mil para começar a tocar o filme. Depois, fui bater na porta de meu amigo Daniel Filho e as coisas foram caminhando.”
A rigor, a produção se estendeu por dez anos. Em associação com a produtora de Daniel Filho (a Lereby) e a Total Entertainment, Denise foi juntado recursos para conhecer com afinco o Brasil que inspirou a obra de seu pai. Viajou com o diretor e a equipe para o sertão do Cariri, interior do Ceará, e passou, pela primeira vez, por Iguatu, Exu (cidade natal de Luiz Gonzaga), Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha.
Lírio entrou na história
Para reger a execução do projeto e precaver-se de realizar um filme chapa branca, Denise precisava de um maestro adequado. “Minha comadre, a atriz Leandra Leal, disse que tinha o nome certo para dirigir o filme.” Era o cineasta pernambucano Lírio Ferreira, premiado por Baile Perfumado e Árido Movie.
Realizar uma biografia de um compositor brasileiro não seria novidade para o diretor. Em 2006, em parceria com Hilton Lacerda, ele assinou o documentário Cartola – Música para os Olhos, sobre o refinado sambista da Mangueira. Lírio adorou a ideia. “Foi uma feliz coincidência”, diz. “Depois de me enfronhar no samba, pude saber mais sobre o baião. São os dois principais ritmos da nossa cultura musical. O projeto é muito rico e complexo. Fiz um filme sobre o Teixeira, o baião e, também, a busca da Denise. Ao longo das filmagens, ele acabou se tornando também personagem. Não foi uma decisão prévia, não. A Denise pediu para fazer algumas entrevistas, e a câmera foi gostando dela. No processo de montagem, percebemos definitivamente que O Homem que Engarrafava Nuvens era também sobre a jornada de Denise.” Embora nordestino, Lírio confessa que “não tinha ideia da dimensão da obra” do compositor cearense. Tal como havia feito ao retratar o universo de Cartola, também foi buscar imagens que, a seu ver, representam o mundo de Teixeira. Cenas de vaqueiros do agreste e de jangadeiros estão no filme. Assim como interpretações de músicas do compositor, a cargo de grandes nomes. Gal Costa e Sivuca, por exemplo, dão conta de Maria Fulô.
Certa vez, Humberto, que morreu em 1979, aos 64 anos, resumiu: “Sou o Doutor do Baião. Quebrando rotinas e cânones, imprimi novos rumos à seresta nacional. Com o baião, fincou-se um novo marco na evolução da música popular brasileira”.
Já no final da vida, questionado se não era demasiada a reclusão em sua casa do bairro de São Conrado, na Zona Sul, no Rio de Janeiro, ele respondeu que estava com a filha, engarrafando nuvens.
Deixe um comentário