EUFORIA COMEDIDA – Apesar de enfatizar as conquistas recentes do País, Hatoum vê um déficit comprometedor para o futuro: a falta de investimentos em educação

Recém-chegado da Eu­­ropa, o escritor manauara Milton Hatoum foi um dos destaques do encerramento da Feira do Livro de Frankfurt, em outubro, na Alemanha. Maior evento mundial do mercado editorial, a feira prestará homenagem ao Brasil em 2013. A viagem também rendeu encontros com leitores em Roma, Bologna e Veneza, na Itália.

Além de um novo romance (ainda sem título), nos próximos anos, a ficção de Hatoum será matéria-prima para três novos filmes brasileiros. Marcelo Gomes, de Cinema, Aspirinas e Urubus, filmará Relato de um Certo Oriente; o jovem carioca Guilherme Coelho adaptará Órfãos do Eldorado; e Sérgio Machado, de Cidade Baixa, rodará O Adeus do Comandante, extraído da coletânea de contos A Cidade Ilhada. Uma microssérie, com direção de Luiz Fernando Carvalho, levará o romance Dois Irmãos para a grade da Rede Globo, e os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, craques dos quadrinhos (não por acaso) irão verter o mesmo romance. Hatoum define a incursão no cinema como “estranha”, por ser uma arte “feita por uma multidão” e a literatura um ofício recluso. E é solitário, na edícula, alugada, na rua do prédio onde mora, na Zona Oeste de São Paulo, que ele escreve o quinto romance.

Casado com Ruth Lanna, ex-diretora de programação da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, Hatoum tem, com ela, dois filhos, João, 8, e Gabriel, 5. Ao falar dos meninos, o escritor provoca: “Eles estão apaixonados pelo Vincenzo, apesar de ele ter trazido uma camisa da Seleção Italiana para a Ruth!”. Arsillo, que tem livros sobre Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira publicados na Itália, defende-se dizendo que é torcedor do Roma, do Vasco e do Brasil. Atento às palavras de Hatoum, em dado momento da conversa, o italiano diz que existem escritores “de mar” e “de rio” e que o amigo Milton é um autor “de rio” (leia mais à página 137). Com a palavra, o romancista e anfitrião.

Brasileiros – Como foi sua infância em Manaus e a influência da ascendência libanesa para sua formação?
Milton Hatoum –
Meu pai, Hassan Hatoum, era libanês, veio para o Brasil pouco antes da Segunda Guerra. Chegou a Manaus em 1939 e não veio como imigrante, veio conhecer a região onde o pai dele, que chegou ao Acre em 1904, havia morado. Meus pais se conheceram no Acre, se casaram, viveram lá por nove anos e, depois, voltaram para Manaus, em 1950, onde nasci, dois anos depois. Passei minha infância em Manaus, ouvindo a língua árabe, nas conversas do meu pai com meus avós. Minha avó paterna falava francês e era uma católica fervorosa.

Brasileiros – E você também foi submetido a uma formação religiosa?
M.H. –
Não, até fui batizado no catolicismo, mas meus pais nunca me constrangeram a ponto de me obrigar a ser religioso. Minha religião é a literatura. Meu pai era um muçulmano lacônico e passei 15 anos em Manaus, nesse ambiente familiar. Li muitos livros e depois fui sozinho para Brasília, aos 15 anos, onde estudei por dois anos.

Brasileiros – Nesses 15 anos, você se sentia um pouco estrangeiro?
M.H. –
A questão da imigração era menos evocada do que seria em São Paulo. Só fui me dar conta que era “filho de imigrante”, com certa perplexidade, quando vim morar em São Paulo. Mesmo porque meu pai nunca frequentou clubes de imigrantes. Havia o Sírio Libanês, de Manaus, mas ele não ia lá. Aliás, existia o Cheik Clube que, apesar do nome, era um clube de caboclos. Eu tinha uma banda e cantava no Cheik, um lugar meio kitsch. Lembro que tinha um telão com as pirâmides do Egito…

Brasileiros – E você cantava que gênero musical, Milton?
M.H. –
Cantava de tudo. De Pepino Di Capri a Bossa Nova. Dos 13 aos 15 anos, fui uma espécie de crooner, não só do Cheik, mas de outros bares e de festas em clubes. Manaus era uma cidade portuária com uma vida noturna intensa. A cidade sempre esteve presente no imaginário do europeu, por causa do Teatro Amazonas.

Brasileiros – Em Manaus, sua formação foi em escola pública?
M.H. –
Sempre estudei em escola pública. Algo positivo e fundamental para minha literatura, pois essa experiência, na minha infância e primeira juventude, me fez conhecer pessoas de várias classes sociais. Hoje, a escola é segregada e conviver com essas diferenças foi fundamental para conhecer a cidade. Fui aos espaços mais marginais da cidade, porque eu tinha amigos que moravam nesses lugares.

Brasileiros – E como foi seu contato com a Amazônia profunda?
M.H. –
A floresta sempre esteve muito presente na cidade, diferentemente do projeto de Brasília, que isolou o cerrado, algo que me assustou quando cheguei lá, um projeto escultural que isolava a natureza da cidade, ao contrário dos projetos do Le Corbusier, que integravam a cidade à natureza.

Brasileiros –  E você concluiu isso logo que chegou a Brasília?
M.H. –
Eu ainda não tinha essa consciência, mas percebi que havia algo “errado” ali. Para mim, Brasília foi das cidades mais exóticas que conheci. Um espaço que embriaga e isola.

Brasileiros – Você ficou lá em um período difícil, pós-AI-5…
M.H. –
Estive lá em um dos piores momentos da ditadura. A UnB (a Universidade de Brasília) foi fechada e até mesmo o Colégio de Aplicação, onde estudei, que ficava na entrada da faculdade, foi fechado pelos militares.

Brasileiros – E nesse período, qual era seu posicionamento político?
M.H. –
Eu militava no movimento estudantil. Pouco depois, muita gente pirou, se drogou…

Brasileiros – Era também a época da contracultura…
M.H. –
Sim, e meu grupo de amigos não era militante no sentido partidário. Aliás, se eu tivesse entrado em um grupo desses, não sei nem se eu estaria aqui conversando com você. Muita gente morreu, outros foram para a guerrilha. Entre 1969 e 1973, o regime aniquilou quase tudo. Ou você ia para a total clandestinidade ou entrava para a luta armada. Nosso grupo era um pouco desbundado e criticado pela esquerda dogmática.

Brasileiros – A polarização política forçava essa interpretação…
M.H. –
Já em São Paulo, fazíamos uma revista, Poetação, durou cinco números, eu Rubens Matuck, Roseli Nakagawa e a Tânia Parma. Traduzíamos poesias e publicávamos novos poemas. Uma revista muito bonita e artesanal, mas éramos atacados pelos trotskistas.

Brasileiros – Em que período você cursou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP?
M.H. –
Cheguei a São Paulo em 1970, e me formei na FAU em 1977. Uma das faculdades mais politizadas e, ao mesmo tempo, uma das mais desbundadas do campus da USP, onde existiam as duas coisas, os malucos da esquerda e a esquerda dogmática.

Brasileiros – E havia muito conflito entre as duas partes?
M.H. –
O inimigo comum existia, mas havia brigas, discussões internas e mil divisões. Meia hora de reunião e me perguntava: “O que estou fazendo aqui?”. Morei em comunidades de esquerda, com militantes de vários partidos, mas eu era apenas um franco-atirador. Não tinha liderança e nem conseguia liderar nada. O que me interessava era fazer a revista de poesia.

Brasileiros – E o que motivou sua saída do País?
M.H. –
Fui preso na invasão da PUC pelos militares, em setembro de 1977. Dois anos depois, decidi cair fora do Brasil. Antes de partir, trabalhei como repórter freelance, para a IstoÉ!.

Brasileiros – Nosso diretor-adjunto, Nirlando Beirão, que escrevia para a IstoÉ!, falou de sua visita à redação para tentar publicar um primeiro texto…
M.H. –
Escrevi um artigo sobre uma exposição na FAU e fui até a redação da Isto É!. Lembro que cheguei, barbudão, na maior cara de pau, e disse: “Quero falar com o diretor de Redação”. Nirlando surgiu da escada, me olhou meio de cima, publicou o texto e me convidou para escrever outras coisas. Em 1980, fui para a Espanha, onde passei seis meses em Madri, e quase oito em Barcelona, a cidade mais encantadora na qual vivi. Depois, fiquei em Paris, por dois anos, e foi lá que comecei a escrever o Relato de um Certo Oriente, meu primeiro romance.

Brasileiros – E antes disso, você teve outras experiências narrativas que foram parar na gaveta?
M.H. –
Escrevi vários contos que foram parar no lixo. Publiquei, em 1978, um livro de poesias, chamado Amazonas, Palavras e Imagens de um Rio Entre Ruínas. Uma edição artesanal, bem bonita, com três fotógrafos registrando imagens da Amazônia, João Luiz Musa, Sônia da Silva Laurenz e Isabel Gouvêa. Antes, aos 16 anos, no Correio Braziliense, tive meu primeiro poema publicado. O movimento estudantil em Brasília e os períodos em que vivi em São Paulo e em Paris serão temas do meu novo romance.

Brasileiros – Você tem uma previsão de conclusão ou lançamento?
M.H. –
Pode demorar mais seis meses, um ano… Difícil precisar. A literatura depende do tempo e o romance não  somente é uma narrativa sobre a passagem do tempo, como também depende da experiência do tempo. Acho um erro escrever sobre o passado recente. O melhor passado para a literatura é o remoto. É esse passado que dá espessura à memória e à imaginação.

Brasileiros – Quanto tempo levou para concluir o Relato de um Certo Oriente?
M.H. –
Uns cinco anos. Terminei de escrevê-lo quando voltei de Paris para Manaus, em 1987, aos 35 anos, mas ainda esperei dois anos para ele ser publicado pela Cia. das Letras. Não tinha e não tenho a  mínima pressa.

Brasileiros – Enquanto não se convence de que o livro está pronto, você é rigoroso, faz muitas revisões?
M.H. –
Sempre fiz e tenho pilhas de manuscritos. Quando termino uma obra não sinto essa ânsia de publicar. Um pouco por pudor, porque acho que já se publica muita coisa no mundo, outro tanto porque nossa tradição literária é forte e acho que, se for para publicar, tem de ser algo minimamente razoável. O Relato saiu em 1989, e logo vieram as traduções. Algo que me surpreendeu. Não esperava, mas o livro foi parar até nos Estados Unidos, um dos países mais difíceis para autores estrangeiros. Só 5% dos títulos de ficção publicados nos Estados Unidos são obras traduzidas.

Brasileiros – E você se preocupa em manter uma unidade autoral? 
M.H. –
Cada narrativa é fruto de uma experiência de leitura e de vida. E essas experiências vão assumindo contornos diferentes, pois são filtradas diferentemente a cada momento da sua vida. Por questões que não te tocavam havia dez anos, e hoje te tocam. O sentido histórico do romance é muito importante. O romance não pode dar as costas para a história. Não falo do romance como uma reinvenção da história, mas da experiência histórica do seu tempo.

Brasileiros – E como você acha que interpreta essa história?
M.H. –
Tentei, desde o começo, tratar da memória difusa, em uma Manaus que é uma cidade quase ausente, opaca, e fui ao lado subjetivo, íntimo, aos novelos da memória que predominam sobre a ação. O Relato é um romance difícil. Há nele jogos temporais que desencorajam quem quer uma narrativa sequencial. Eu estava perplexo com a destruição de Manaus e decidi escrever um romance onde a cidade estivesse presente.

Brasileiros – Há muitas teses acadêmicas sobre sua obra, o que acha delas?
M.H. –
Acho um exagero, mas há uma riqueza de análises que vão desde a memória do narrador, até questões sobre migração e um estudo comparativo, sob o mito do duplo, entre Dois Irmãos e Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Há também interpretações lacanianas e freudianas, que me dão um pouco de medo.

Brasileiros – Poderia falar de sua relação com a psicanálise?
M.H. –
Fiz psicanálise e fui expulso por minha analista. “Fora daqui, vai escrever!”, disse ela. Fui escrever e houve essa perplexidade dos críticos, quando lancei o Relato. O Bosi (professor e crítico literário Alfredo Bosi) disse algo como: “De onde se esperava uma narrativa sobre índios, a floresta ou seringueiros, veio um relato sobre a memória e a reconstrução de vidas passadas”. Alguns romances meus entraram para o vestibular de universidades federais e caíram no interesse de milhares de jovens.

Brasileiros – E como você vê essa nova geração de leitores?
M.H. –
Penso que, por um lado, eles estão cercados de informação e por outro de um vazio de reflexão. Mas acho também que existem jovens antenados, revoltados e prontos para o combate, porque o ser humano não é conformado. Basta acordar de mau humor para estar em desacordo com o mundo. A ultradireita, que faz apologia da indústria de armas, não vingou nos Estados Unidos, agora. Perdeu a eleição presidencial e bom seria que houvesse um repúdio mundial à indústria de armas.

Brasileiros – A propósito, você defenderia que o Brasil tem lições de convívio para oferecer a israelenses e palestinos?
M.H. –
O conflito entre eles é um problema da ocupação de terras e a questão é desocupar as terras palestinas e dialogar com suas lideranças. Essa história de dizer que são todos terroristas é uma balela. Você não pode falar em paz e ao mesmo tempo ocupar um território que não é seu. Esse governo pode levar Israel ao abismo, não pensa na paz. Acho também que o exemplo do Brasil é a mestiçagem, mas estamos longe de ser uma sociedade pacificada. Não sei se podemos dar exemplo. Basta ver o que está acontecendo agora, não só em São Paulo, mas em todo o País. Em Manaus, a violência é extrema.

Brasileiros – Você acha que os recentes avanços sociais não tiveram ainda eficácia para reduzir a criminalidade?
M.H. –
Vivemos em uma sociedade de consumidores sem cidadania. Onde deveria haver uma política de bem-estar social, ela não existe. Medir os avanços sociais somente pelo consumo é um erro ou uma distorção. Deveríamos garantir um futuro melhor para nossos filhos, pois consumir não é garantia de nada. Já não sei se esse “progresso” é bom para o Brasil.

Brasileiros – Que avaliação você faz da gestão da presidenta Dilma Rousseff?
M.H. –
Eu acho provável até que a presidente Dilma faça o melhor governo dos últimos 50 anos. Ela tem determinação e atitude ética, mas não governa sozinha, precisa fazer concessões, como fizeram o Lula e o FHC. Não consigo ser tão eufórico, mas também acho que o Brasil está condenado a ser importante. Nosso grande nó é a educação, mas o País tem recursos de sobra para investir nela e é preciso agir. Estamos falando de algo que coincide com uma fala do narrador de Dois Irmãos, para a mãe, uma índia. Em certo momento, ele diz a ela: “Ninguém se liberta só com palavras”. É o que penso também. Mobilização é fundamental.

UM ROMANCE ENTRE A ITÁLIA E O BRASIL
DRUMMOND Arrebatado pelos versos do poeta, Arsillo iniciou suas pesquisas sobre o Brasil. No alto, a capa da primeira edição da revista Cultura Brasiliana

O italiano Vincenzo Arsillo é professor de Literatura Portuguesa e Brasileira, da Università Ca’Foscari Venezia, em Veneza, na Itália. Em visita ao Brasil para aprofundar pesquisas de seu novo livro (onde analisará aspectos memoriais das obras de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto), Arsillo chegou ao País dias depois de Milton Hatoum retornar da Europa e ficou hospedado na casa do amigo.

Apaixonado pelo Brasil, o italiano morou aqui em 1996, quando foi bolsista da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Experiência que, posteriormente, resultaria em dois livros dedicados à poesia brasileira (inéditos por aqui), La Fantasia della Memoria. Saggio Su Manuel Bandeira, dedicado ao poeta recifense,e La Nostalgia Del Presente, Modernità e Città nella Poesia di Carlos Drummond de Andrade, sobre a imagem das cidades na obra de Drummond.

Arsillo produz agora um terceiro título, também dedicado aos dois poetas e a outro gigante: “Estou concluindo uma análise da poesia brasileira do século 20, sob a perspectiva da memória, em três de suas principais figuras, João Cabral, Bandeira e Drummond”. A paixão de Arsillo pelo Brasil surgiu em 1987, em um encontro com os célebres versos do Poema de Sete Faces, de Drummond, incluído em uma coletânea traduzida, na Itália, por seu saudoso amigo e grande escritor, Antonio Tabucchi, morto em março de 2012. “Voltar a esse amor antigo, talvez, seja uma forma de agradecer a Drummond por tudo que conheci depois. Topei, por acaso, com seus versos ‘Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução’, e fiquei atônito. Dois anos depois, comecei a estudar língua portuguesa”.

Arsillo também lançará, em janeiro de 2013, o segundo número da revista Cultura Brasiliana (dedicado a Clarice Lispector). A publicação é feita com o apoio da Embaixada do Brasil, na Itália, e foi lançada em setembro. Sobre o amigo Milton, Arsillo observa: “Li o Relato, três anos depois de lançado. Para Milton, pode ser constrangedor identificá-lo a um lugar, mas essa ‘voz’ de Manaus chamou muito minha atenção. É um dos livros que eu mais dei de presente para amigos e quase todos eles me falaram dessa “voz” que parece pertencer e não pertencer ao leitor. Esse é um dos méritos da narrativa do Milton, deixar sempre alguma coisa em segredo.

O intelectual não pode ter a presunção de explicar tudo. A literatura nunca é honesta, é sempre ficção, mas há nos livros do Milton uma escrita de tensão, de grande honestidade. Podemos dividir os escritores entre escritores ‘de mar’ e ‘de rio’ e não sei se Milton concorda, mas acho que ele é como o Joseph Conrad, um escritor de rio, um escritor da passagem”. Com um sorriso tímido, Hatoum sugere que endossa a opinião do ‘amico’.


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