Feitinha pro poeta

“A bebida tá subindo/A cabeça enlouquecendo/O clima tá esquentando/Só vai dar eu e você/Pra gente então fazer o que, hein?/Bara, bara, bará/Bere, bere, berê.” Em pleno outono de 2013, um dos sucessos musicais da temporada é Bará, Berê, do excerto de letra supracitado. Interpretada por Michel Teló, um sem número de duplas de sertanejo universitário e expoentes do arrocha – subgênero que mistura elementos da música caipira ao axé e ao baião –, a “canção”, um exercício de minimalismo e mau gosto, tem a autoria disputada, atualmente, por três diferentes compositores. Até o momento, o pai da criança é Dorgival Dantas de Paiva, que registrou a “obra”. O embate judicial era mais que previsível, justamente como ocorreu com a primitiva Aí, se Eu te Pego, que deu a Teló projeção mundial – lógico, a bolada não será tão espetacular quanto à da milionária antecessora, mas uma generosa concessão de direitos autorais bloqueados aguarda o verdadeiro “autor” de Bará, Berê.
 

Episódios como esses demonstram o quanto um País respeitado mundialmente pela qualidade de sua música popular mergulhou em um rasante vertiginoso de conceitos estéticos consolidados desde os tempos de Donga e Pixinguinha. Em um cenário como esse, são mais que bem-vindos certos lançamentos da indústria fonográfica, que procuram valorizar o legado de verdadeiros artistas populares, como foi o poetinha Vinicius de Moraes, que completaria 100 anos de nascimento em 22 de outubro e tinha, convenhamos, muito mais elegância para tratar as mulheres e narrar seus momentos de embriaguez. A data especial inspirou a Universal a lançar uma caixa, composta de 20 CDs, com centenas de registros de Vinicius, alguns tão preciosos quanto raros. 
 

Um dos mais importantes e prolíficos letristas da música popular brasileira, Vinicius ganhou do amigo Tom Jobim o apelido de “poetinha”. Não somente pela qualidade de suas letras, mas por ter, de fato, iniciado sua carreira artística como poeta. Ele, talvez, recorresse a um homérico porre de uísque se tivesse, hoje, de disputar espaço com produções tão chulas. É o que podemos presumir ao mergulhar na vasta obra musical deixada por ele em uma carreira marcada por grandes parcerias que resultaram em canções compostas com Tom Jobim, Carlinhos Lyra, João Gilberto, Baden Powell e seu derradeiro e jovem parceiro, por mais de dez anos, o também exímio violonista Toquinho. 
 

Entre os títulos reunidos em A Bênção Vinicius, a Arca do Poeta, alguns são históricos. Como Orfeu da Conceição, a trilha sonora da peça teatral homônima que consolidou a faceta de dramaturgo do diplomata, que também foi jornalista. Na releitura, o clássico da mitologia grega Orfeu é transposto para um morro carioca. Iniciada em 1942, a peça foi montada pela primeira vez em 1956, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e sua trilha marcou o início da parceria com Tom. Três anos depois, Orfeu Negro, a adaptação cinematográfica do francês Marcel Camus – com trilha sonora protagonizada por Tom, Agostinho dos Santos e Luiz Bonfá – foi a grande vencedora da Palma de Ouro do Festival de Cannes e também venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1959, mesmo ano de lançamento do marco-zero da bossa nova, o álbum Chega de Saudade, de João Gilberto. A partir daí, olhos e ouvidos do mundo começaram a se voltar para o Brasil, instigados por aquela nova música impregnada de beleza – e Vinicius foi um dos principais nomes dessa revolução. 
 

A caixa, que traz um livreto com texto elucidativo de Tárik de Souza, ainda passa por momentos divisores: o primeiro álbum lançado pelo histórico selo Elenco Vinicius & Odete Lara, que marca o feliz encontro do poeta com a atriz e musa de voz marcante; Os Afro-Sambas de Badden e Vinicius, lançado em 1966, que eterniza a parceria com um dos maiores violonistas do País, iniciada em 1962, com a criação do clássico Berimbau.

ENCONTROS – Destaques da caixa marcam parcerias com Jobim, Baden e Caymmi

Nesse relançamento, um porém: a omissão da bela capa original do pequeno, mas importante selo Forma, dos produtores Roberto Quartin e Wadih Gebara. Outro regaste é a trilha do filme Garota de Ipanema, lançado por Leon Hirzsman, em 1967, que além de Vinicius e Tom, inclui outros craques, como Eumir Deodato, Luiz Eça, Quarteto em Cy e Elis Regina. Ao lidar com obras tão ricas, a nostalgia desses tempos áureos é inevitável, mas deveria também servir de farol para artistas, produtores e ouvintes, e apontar saídas em tempos tão obscuros para a música popular feita no País. 


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