Feldmann diz que governo de SP negligenciou crise

Feldmann em reunião com Aécio e coordenador do programa de governo Antonio Anastasia no diretório estadual do PSDB em SP, no último dia 15. (Foto: PSDB)
Feldmann em reunião com Aécio e coordenador do programa de governo Antonio Anastasia no diretório estadual do PSDB em SP, no último dia 15. (Foto: PSDB)

Apesar da torcida, as chuvas dos últimos dias foram insuficientes para reverter a tendência de esgotamento do Sistema Cantareira. Na quinta-feira 29, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), a capacidade do reservatório estava próxima de 25%, e seguia em queda. Segundo meteorologistas, não é razoável supor que as chuvas voltem com a intensidade exigida para a recomposição do Cantareira, ao menos até o fim de outubro.

Responsável pela área de meio ambiente do programa de governo de Aécio Neves, o ex-deputado federal Fabio Feldmann não esconde sua preocupação com a crise do Sistema Cantareira, cuja magnitude, afirma ele, tem sido mascarada pelas autoridades, a começar pela administração de Geraldo Alckmin.

“Na minha opinião, os governos, particularmente o de São Paulo, negligenciaram a crise”, diz Feldmann, secretário de meio ambiente do governo Mário Covas, entre 1995 e 1998. “Temos uma situação que não será resolvida neste ano e poderá se agravar a tal ponto que tenhamos de ir para um racionamento radical”, diz. Feldmann considera negativa a forma como o chamado volume morto foi incorporado à estratégia de comunicação do governo estadual. “A campanha da Sabesp, dizendo que aumentou o volume morto para 28% [o índice registrado na sexta-feira 23 de maio, quando a entrevista foi realizada], me parece uma loucura, sinaliza para a sociedade que estamos com a crise sob controle, quando não estamos.”

 

Brasileiros: Como o sr. avalia a situação do Sistema Cantareira?

Fabio Feldmann: Nos registros históricos que temos, de 84 anos, só houve uma seca grande como esta, na década de 50, de três anos e tinha inclusive mais água do que a atual. Hoje a disponibilidade de água equivale a 60% da disponível àquela altura. Segundo os técnicos, uma seca como esta ocorre a cada 3,3 mil anos, ou seja, vivemos um momento atípico, isso é importante falar. Estamos realmente em uma estiagem muito grande, que pode durar três anos ou mais. É um quadro muito grave, o que significa que as decisões a serem tomadas têm de ser muito radicais.

Brasileiros: Em que sentido?

Feldmann: Como se sabe, o Sistema Cantareira é responsável pelo abastecimento de 40% da região metropolitana e de 50% da cidade de São Paulo. Estamos falando de uma crise em São Paulo, mas o Cantareira também abastece outras cidades. Estou preocupado porque não estou vendo o poder público pensar na perspectiva de não ter água, o que significaria um racionamento de três dias sem água e dois com, o que é grave. Temos uma situação que não será resolvida neste ano e poderá se agravar a tal ponto que tenhamos de ir para um racionamento radical.

Brasileiros: Como assim?

Feldmann: Teríamos de estar preparando a sociedade para isso. No caso dos hospitais, por exemplo, o que será feito com a hemodiálise? Os hospitais dependem de água, por isso precisam se preparar. Pessoalmente, acho que o governo está deixando de encarar a crise na magnitude que ela tem.

Brasileiros: O sr. se refere a qual governo?

Feldmann: O poder público de modo geral. Há o governo de São Paulo, mas também o governo federal através da ANA (Agência Nacional de Águas), pois o Cantareira é uma outorga federal por ter origem em Minas Gerais. Para resumir a novela, eu diria que não podemos desperdiçar a crise. E a sociedade brasileira precisa repensar aquela ideia de que somos um país abundante em água. E começar a compreender melhor esses fenômenos meteorológicos, já que falta chuva aqui e há muita chuva na Amazônia, lá no rio Madeira. Com toda a honestidade, temos de repensar essas questões todas e compreendê-las melhor. Agora, o poder público não está levando a falta de água na magnitude devida. Precisaria preparar a sociedade para a hipótese de racionamento.

Brasileiros: A esta altura o racionamento de água parece bastante provável, não?

Feldmann: É provável sim, por isso deveria ser criado um comitê de crise, talvez envolvendo o governo federal, o estadual e as prefeituras. Não sei, por exemplo, como Campinas e essas outras cidades vão fazer… Como elas vão fazer? Simplesmente não vai ter água, ponto, acabou. Não é uma hipótese, mas uma probabilidade muito alta.

Brasileiros: Em 2004, quando houve a renovação da outorga, o governo paulista comprometeu-se a tomar várias medidas para reduzir a dependência do Cantareira. Conversei ontem com a diretora do Instituto Mineiro de Gestão das Águas, Marília de Melo, segundo quem os compromissos assumidos não foram levados em conta nesses dez anos, muito pouco foi feito.

Feldmann: Pois é, mas o que isso mostra? Mostra que a governança de água no Brasil precisa ser repensada. Se a outorga interessa a Minas, a São Paulo ou ao Rio de Janeiro, seria preciso monitorar essa questão o tempo todo. Um dado que não comentei é que a questão da água se antecipou. Se tivéssemos conversado há seis anos, eu já diria que faltaria água, mas a escassez antecipou-se muito devido à condição muito especial da estiagem. A crise implica em repensar toda a governança, mas a sociedade brasileira não se apropriou desse debate. A sociedade envolve o poder público, que deveria acompanhar essa questão com mais detalhes, e a sociedade civil, de certa maneira também, exigindo, cobrando. Na minha opinião, os governos, especialmente o de São Paulo, negligenciaram a crise. O que quero dizer com isso é que precisamos sair disso, repensar a governança, já que a outorga não foi cumprida.

Brasileiros: São Paulo não cumpre o combinado, a Agência Nacional de Águas, por sua vez, também não faz nada, e fica por isso mesmo?

Feldmann: Todo mundo foi pego de calça curta nessa crise, esse é o fato. Acompanho a outorga há muitos anos, fui relator da Lei dos Recursos Hídricos, acompanho também a ANA. Quando fui secretário do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos, os comitês (de bacias) faziam parte da secretaria. Mas eu não sou daqueles que agora dizem que tinham avisado, ninguém avisou porque não estava no repertório uma estiagem desta magnitude. Por isso será preciso repensar a outorga de uma maneira geral, repensar as medidas de conservação de águas, a questão das perdas da Sabesp, mas também todos os usos de água, como posso reduzir o consumo.

Brasileiros: O marco regulatório precisa ser revisto?

Feldmann: Não acho que precise ser revisto, mas precisa ser levado a sério, porque a outorga é instrumento superimportante. É preciso exigir, disponibilizar, analisar as informações. Daqui para diante será preciso acompanhar desde o nível do reservatório até o perfil estatístico das chuvas, enfim, tudo isso. A outorga não pode ser uma coisa burocrática, precisa ser muito debatida, até pelos interessados. Na medida em que São Paulo deixou de cumprir as medidas que estavam na outorga, as cidades que dependem do Cantareira também deveriam monitorar isso, colocar isso para a sociedade, que seria o mais importante. Hoje há problemas inclusive de comunicação. A campanha da Sabesp, dizendo que aumentou o volume morto para 28% [índice registrado na sexta-feira 23 de maio, quando a entrevista foi realizada], me parece uma loucura, sinaliza para a sociedade que estamos com a crise sob controle, quando não estamos.

Brasileiros: Ao contrário, não?

Feldmann: Exatamente.

Brasileiros: Sem querer ser catastrofista, qual o pior cenário hoje?

Feldmann: O pior cenário é as chuvas não virem em outubro e novembro no volume necessário e termos de fazer o racionamento de três dias sem água e dois dias com água, com a sociedade tendo de se adaptar. Em Recife já houve uma experiência semelhante. Quem puder irá fazer poços. Nos condomínios, a água pode ser liberada para encher as caixas duas horas ao dia. O lado positivo será o de colocar no cotidiano que a água é um bem escasso.

Brasileiros: Como o sr. avalia o uso do volume morto?

Feldmann: A esta altura não temos alternativa. É como estou dizendo, não tem água. A minha opinião é que ninguém percebeu que não tem água, ponto.

Brasileiros: Na Grande São Paulo, há muita água, mas poluída, imprópria para o consumo.

Feldmann: Pois é, não está disponível, e essa é outra discussão. Poderíamos em tese ter acesso à água do Tietê e do Pinheiros, mas ela não está disponível. Agora, a questão do volume morto, existem várias questões, como a vida aquática que existe lá e que ficou irrelevante neste momento, já que a crise é tão grave que preciso disponibilizar tudo o que temos. A Sabesp errou na comunicação porque ao falar do volume morto da maneira como falou dá a entender de que a coisa está resolvida. Pode vir um período de muita chuva e tudo o que estou dizendo perderá o sentido, mas não existe nenhum indicador neste momento de que isso irá acontecer com certeza, ou seja, estamos andando no fio da navalha.

Brasileiros: Há quem critique o atual modelo pelo fato de a Sabesp ser uma empresa de economia mista, com ações na Bolsa, e que precisa dar lucro e responder aos acionistas. Essa não é uma questão complicada?

Feldmann: É uma questão periférica, foi graças a este modelo que a Sabesp pode captar recursos para fazer grande parte dos investimentos que tem feito. O grave problema no Brasil é que o Estado tem uma capacidade muito reduzida de fazer investimentos. O Brasil vive um grave problema é uma pequena capacidade de poupança do Estado. Agora, existe um conflito de interesses na Sabesp que é o fato de vender água e ter de vender menos água. No momento de muita abundância, a empresa vive de vender água, quando é necessário para a sociedade economizar água, como conceito.  Quando fui secretário de Meio Ambiente, a Sabesp ainda não estava na Bolsa de Valores, e eu queria que a Sabesp assumisse o controle dos mananciais por ter recursos. Àquela altura eu tinha uma secretaria com 15 pessoas para a região metropolitana e com invasão de mananciais.

Brasileiros: Quais as opções então?

Feldmann: A questão da água está muito mal equacionada, tanto do lado da oferta como no esgoto. Precisaríamos repensar o consumo, mesmo na crise, mas a saída escolhida passa sempre por ampliar a oferta, agora com a exploração do São Lourenço ou trazer água do Paraíba do Sul. Existe um drama no Brasil em dois temas, a conservação de água e a de energia. Não se consegue mobilizar interesses para haver vontade política para medidas dramáticas nessas duas áreas. Mobiliza-se para ampliar a oferta, como construir hidrelétricas e até térmicas, ou grandes obras de engenharia, no caso da água, mas a ponta frágil aqui é o consumo.

Brasileiros: No Sistema Cantareira, ainda não começou de fato a cobrança de água retirada diretamente dos rios, certo? A agricultura, por exemplo, não paga para retirar água da irrigação, que responde por mais de 30% da demanda total em São Paulo.

Feldmann: A cobrança começou, mas ainda é muito incipiente. E essa talvez seja a maior crítica para a Agência Nacional de Águas [ANA]. A ideia da ANA, já que temos agências de petróleo, energia, era criar uma agência de água para sinalizar que se trata de um bem tão importante quanto os demais, um recurso igualmente escasso. Como seria feito? Por meio da cobrança pelo uso da água. Existem poucas experiências no Brasil de cobrança. Há no Paraíba do Su, na bacia do Piracicaba, mas é muito pouco. E há uma resistência no setor de agricultura. Por isso eu queria que a crise refletisse o fato de a água ser um bem escasso.

 

 


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