Três dias de cordas soltas no segundo final de semana de agosto. O multiinstrumentista e agitador cultural Arismar do Espírito Santo dirige, toca, comanda, enche de simpatia e de muita música boa o auditório do Teatro do Sesc Pompéia. O projeto Cordas à Solta uniu, em um ambiente intimista, dez consagrados solistas das cordas brasileiras em três encontros que misturaram gêneros, ritmos e origens. Do sagrado ao profano, do clássico ao popular, do samba à valsa, do raga (um dos nomes dado à sonoridade da música clássica indiana) ao rock, do choro ao baião. Foram apenas três dias, mas Arismar deixou clara a vontade de expandir o projeto. Em cada uma das noites, subiram ao palco quatro convidados dos mais variados estilos, que, reunidos por afinidades sonoras, proporcionaram apresentações únicas ao público. Nos encontros, circularam Arismar do Espírito Santo, Alberto Marsicano, Fábio Tagliaferri, Filó Machado, Heraldo do Monte, Joel Nascimento, Kiko Loureiro, Michel Leme, Rogério Caetano e Thiago Espírito Santo, time de solistas que compôs o cenário simples e aconchegante do final de semana musical.
No primeiro dia o mote foi “À interpretação”, descrito por Arismar como “o dia da delicadeza, valsas, choros e baiões reunidos em um concerto de ricos melodistas”. No dia seguinte, imperou “À diversidade”, a soma de timbres e temas criados no ato, junto à releitura de clássicos da música do Brasil. Em “À atitude”, um encontro de jovens músicos com composições próprias e outras já consagradas tomou conta do domingo, Dia dos Pais. “Nada melhor do que comemorá-lo aqui, entre amigos, músicos e meu filhão.” Contradizendo o dito popular de que em casa de ferreiro o espeto é de pau, Thiago Espírito Santo, 27 anos, é baixista, compositor e violonista, e filho de Arismar com a pianista Silvia Góes. Já é considerado um dos expoentes da música instrumental brasileira, tendo tocado com Hermeto Pascoal, Yamandú Costa, Hamilton de Hollanda e Dominguinhos.
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Luzes se apagam e tocam os três sinais. Última noite e Arismar entra sozinho no palco, onde faz um solo de guitarra. O seu corpo parece acompanhar a música que ele próprio produz. Toca duas músicas, vez ou outra emite sons com a boca, assobios e murmúrios, e sola seu instrumento com maestria. Para lhe acompanhar na terceira música, entra Rogério Caetano que, conhecido como o “Rogerinho 7 Cordas”, é considerado pelos críticos e músicos brasileiros um virtuoso do violão de sete cordas. Ele já gravou com grandes nomes da música popular, como Zeca Pagodinho, Maria Bethânia, Fundo de Quintal, Martinho da Vila, Tereza Cristina e Lenine, e está desenvolvendo uma nova escola desse instrumento no Brasil.
Violão e guitarra se harmonizam, deixando a entender que o choro, samba e a bossa são variações sobre um mesmo tema: a improvisação. Entra, então, Thiago. Desliza com elegância e intimidade seus longos dedos no contrabaixo. Contorce-se e levanta-se, no embalo da canção Goiás/São Paulo, que interpreta junto com Rogerinho. A impressão que se tem é a de que estão extremamente embalados pelo som que criam, entrando em um transe corporal e sonoro. Pai e filho interpretam juntos “Toca Menino”, música de Thiago, e é aí que entra Kiko Loureiro, o guitarrista da banda heavy metal brasileira Angra. Kiko, mais reconhecido internacionalmente do que nas terras de samba e pandeiro, hoje é referência para o heavy metal melódico mundial. Sobre essa sua fácil adequação e flexibilidade no território musical, Loureiro comenta ter sempre transitado por universos musicais distintos: “O rock me pegou na adolescência, quando assisti na TV o Rock in Rio. Porém, ao mesmo tempo, sempre gostei de música brasileira. Sempre almejei ter esta habilidade musical, das harmonias complexas e o lirismo das melodias colocadas de forma tão popular. Passava do Iron Maiden para um Edu Lobo sem problema algum, e tocar com músicos da MPB, principalmente com o Arismar, é uma aula indescritível”, afirma.
Kiko tocou sua “Feijão de Corda” com Thiago e Arismar. Três estilos musicais, três músicos, cada um na sua e todos em um só ritmo, transitando entre o baião, o xote e o forró. Arismar então, apresenta uma delicada versão instrumental de “Corcovado”, de Tom Jobim. Emenda com outras canções e improvisa sempre. Enfim, música de qualidade, popular e brasileira, num clima extremamente intimista e acolhedor. O show vai chegando ao fim e, então, as 20 cordas se encontram. Fazem-se soar numa mesma harmonia, mas, no palco, as particularidades de cada artista se revelam. Para a saideira, a música “Sonhando Acordado”, dele próprio, tocada pelos quatro. Terminam com o bis da canção “Cadê a Marreca?” de Arismar, e as cordas, apesar de estarem presas e esticadas nas extremidades do violão, baixo e guitarras, parecem soltas, fazendo sua união precisa e imprecisa nas ondas sonoras. No limite entre o corpo e a alma.
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