O prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad, quer construir pontes. Quando tinha 25 anos, ele chegou a investir em um empreendimento imobiliário, em sociedade com um cunhado engenheiro, mas acabou muito mais atraído pela atividade acadêmica. Dessa vez, em harmonia com a trajetória que o levou à gestão pública e culminou em seis anos à frente do Ministério da Educação, seu interesse vai muito além do cimento e do concreto. Haddad quer construir pontes que aproximem as pessoas e liguem diferentes instâncias do poder. Não por acaso, ao comemorar a vitória na Avenida Paulista, ele falou em derrubar o “muro da vergonha” que separa a cidade rica da pobre.
Os movimentos seguintes incluíram visitas à presidenta Dilma Rousseff, ao governador Geraldo Alckmin e ao prefeito Gilberto Kassab. “Desde a redemocratização, sou o primeiro prefeito eleito em São Paulo com o apoio da presidência da República. Não é coincidência episódica, mas uma oportunidade histórica de estabelecer um padrão de relacionamento diferenciado da maior metrópole do País com o governo central”, disse Haddad à Brasileiros. “Com o governador Alckmin, queremos manter e aprofundar parcerias, independentemente de partido político. Agora é hora de centrar esforços na execução de um plano de governo que saiu vitorioso das urnas. Com o prefeito Kassab, há um ritual de passagem, com todas as garantias que uma transição democrática representa, ainda que eu tenha me apresentado como o candidato da mudança.”
Na entrevista realizada enquanto ele fazia a mala para uma breve viagem de descanso pós-eleitoral com a mulher, Ana Estela (leia, a seguir, entrevista com ela), Haddad demonstrou estar em paz. Lembrado de que no segundo turno passou por ataques similares aos sofridos por Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 e por Dilma em 2010, o prefeito eleito não deixou transparecer a menor mágoa. “O eleitor está corrigindo esse tipo de desvio de conduta. O candidato que lançou mão de expedientes pouco recomendáveis perdeu votos. Quando se afastou daquilo que tinha comprometido a sua credibilidade, retornou basicamente ao patamar do início do segundo turno.”
Para completar, Haddad recordou, sem citar o nome do tucano José Serra, que a “curva em ‘u’ descendente coincidiu com a instrumentalização de pessoas”. Por alguns momentos, parecia que tinha incorporado o papel de analista exercido no final dos anos 1990 na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), quando coordenou a criação da tabela de preços de veículos que virou referência no mercado nacional.
Pouco depois, o são-paulino Haddad comentou sem nenhum abalo tuítes da palmeirense Soninha Francine (PPS), candidata à prefeitura derrotada no primeiro turno da eleição. No mais recente tuíte, Soninha fez referência ao Arco do Futuro, o projeto de obras viárias que integra o programa de governo de Haddad. “Se 10% das obras do ‘Arco do Futuro’ tiverem começado daqui a quatro anos, eu faço uma tatuagem do Lula com o boné do Corinthians”, escreveu Soninha. Haddad se limitou a fazer uma comparação: “É mais simpático do que a manifestação anterior dela. Eu prefiro esse”. Em tuíte anterior, durante o segundo turno da campanha, ela chegou a chamar Haddad de “filho da p…”. Assim mesmo, com reticências.
Futebol, quitutes e política
Por outro lado, ele deu risada ao responder se foi indicado candidato por Lula por ser “são-paulino e da USP” ou se era pelo fato de presentear o ex-presidente com quibes da Tenda do Nilo, um tradicional restaurante árabe (leia sobre a casa à página 67) que fica perto de sua casa, no bairro do Paraíso: “Acho que por todas as variáveis”. Os quibes são mesmo saborosos, mas a escolha de Lula se deu pela aposta em renovar os quadros do PT – o mesmo processo protagonizado por Dilma em 2010 – e pela firmeza de Haddad em não atender a pedidos políticos para preencher vagas do Ministério da Educação. Outro fator essencial foi o Programa Universidade para Todos (ProUni), que Haddad apresentou a Lula e executou. Ao contrário do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o ProUni só dá alegria. Criado em 2005, já atendeu a mais de um milhão de estudantes, 67% deles com bolsas integrais, e é hoje um dos trunfos do governo no setor educacional.
Disputar cargos eletivos não fazia parte dos planos de Haddad. Formado pela conceituada Faculdade de Direito da USP, também conhecida como Faculdade do Largo de São Francisco, ele tem mestrado em Economia e doutorado em Filosofia. Há 15 anos é professor concursado do Departamento de Ciência Política da USP, do qual se licenciou para assumir sucessivos postos na gestão pública. Primeiro, como chefe de gabinete da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, durante a gestão Marta Suplicy. Depois, na condição de assessor especial do Ministério do Planejamento e, mais tarde, como ministro da Educação.
Autor de cinco livros, entre eles Desorganizando o Consenso: Nove Entrevistas com Intelectuais à Esquerda, Haddad também tem forte ligação com as obras que estuda. Em 1995, quando fazia o doutorado, perdeu um de seus livros. Era um volume de Economia e Sociedade, do intelectual alemão Max Weber (1864-1920), repleto de anotações que havia feito nas margens das páginas. Haddad ficou tão desconsolado que sua reação acabou entrando para o folclore familiar.
– Estela, roubaram o meu Weber. Minhas anotações viraram pó, lamentou Haddad com a mulher, ao chegar em casa.
– Roubaram? Onde estava o livro?, perguntou Ana Estela.
– No estacionamento da faculdade. Dentro do carro, explicou o então doutorando.
– Quebraram o vidro?
– Não. Levaram o carro.
O automóvel, um Santana, jamais foi encontrado. Haddad, no entanto, se afligiu mesmo foi com o sumiço do clássico das ciências sociais. Durante anos ele também tratou como preciosidades os livros que empilhava na sobreloja da Mercantil Paulista de Tecidos, de seu pai, o libanês Khalil Haddad. Nos tempos da faculdade – famosa por ter entre seus antigos alunos figuras como Rui Barbosa e Joaquim Nabuco –, Haddad saía do Largo São Francisco em direção à rua Comendador Abdo Schahin, uma travessa da 25 de Março, no centro da cidade. Foi lá que seu pai abriu o comércio atacadista ao chegar ao Brasil, em 1947. E foi atrás do balcão da loja de tecidos que Haddad teve seu primeiro posto de trabalho. Em casa, contava com a dedicação da mãe, Norma Thereza Goussain Haddad, filha de libaneses nascida no Brasil. Formada pelo sofisticado Liceu Pasteur, ela não exerceu o magistério para cuidar da família. Hoje, dedica-se à filantropia e preside o Grupo Socorrista Maria de Nazaré, que é espírita. O pai de Haddad, por outro lado, estudou apenas até os 8 anos. “Minha mãe teve mais sorte”, comentou certa vez o prefeito eleito.
Uma das principais referências da família é o avô paterno, Cury Habib Haddad, que lutou contra o domínio francês no Líbano, no período posterior à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Destacou-se tanto pela militância política quanto pela religiosa. Depois de ficar viúvo, tornou-se padre da Igreja Cristã Ortodoxa do Líbano. Morreu no Brasil, cinco anos antes de Haddad neto nascer, em 25 de janeiro, dia do aniversário da cidade de São Paulo. O prefeito eleito é o segundo dos três filhos de Khalil e Norma. E o único homem. Na adolescência, era um aluno aplicado, mas sem grandes imersões pelas ciências humanas.
“Cumpria as tarefas com profissionalismo: tinha um esplêndido boletim; e tinha um sonho conectado com a facilidade que demonstrava com a matemática e a física: tornar-me engenheiro”, escreveu Haddad no começo de 1997, na publicação Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo. “Eis que, meses antes do exame vestibular, um cataclisma abalou minha família: meu pai, que se encontrava em situação financeira difícil, foi envolvido numa trama muito bem urdida por um estelionatário, pondo a perder o único bem que lhe restara: sua própria casa. Essa inesperada condição de sem-teto fez-me prometer a mim mesmo que jamais passaria por uma situação similar. O caminho para isso dava no Largo de São Francisco, onde se encontra a velha Academia de Direito. E para lá eu fui.”
No terceiro ano da faculdade, depois de ler muito Marx, ele mergulhou na militância estudantil e disputou a sua primeira eleição – a única até a campanha que pavimentou seu caminho à prefeitura de São Paulo. Na escola de Direito fundada em 1827, Haddad elegeu-se presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto. Na época, era conhecido como Dandão. Verdade que na campanha o Haddad muitas vezes virou Andrade entre eleitores com pouca familiaridade com nomes de origem estrangeira. Como o restante da família, os filhos Frederico, 20 anos, e Ana Carolina, 12 anos, se divertiram ao saber do “Andrade”.
Ele, enquanto ministro
Filiado ao PT desde 1983, Haddad nunca participou da corrente majoritária do partido, Construindo um Brasil Novo (CNB), à qual pertence Lula. Como se não bastasse, assinou em 2005 o manifesto intitulado Mensagem ao Partido, que propunha a refundação do PT. Ainda assim, foi convocado por Lula para encabeçar a pasta da Educação, em substituição ao atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. O gaúcho, por sua vez, havia assumido a presidência do PT, cuja cúpula havia sido dizimada pelo escândalo do mensalão.
Na manhã seguinte à posse como ministro, Haddad entrou em uma locadora de vídeos do Lago Sul, em Brasília, acompanhado de Frederico, então com 13 anos. Encontrou o editor Eduardo Holanda, da Brasileiros, que também é cliente do estabelecimento. Eles se cumprimentaram e brincaram com Frederico, que vestira terno e gravata para a posse. DVDs escolhidos, Haddad se despediu e foi embora. O gerente da locadora, perguntou então a Holanda: “Eu não vi esse rapaz na tevê ontem ou anteontem?” Em seguida, o comerciário ficou abismado ao saber de que se tratava do ministro da Educação empossado por Lula. “Mas meu amigo, ele é freguês antigo. Como é que pode ministro dirigindo o próprio carro, sem segurança?”, perguntou o gerente, já contando a identidade do cliente para uma funcionária.
Na verdade, a família Haddad é desse jeito. Karin Nazar, assessora de Ana Estela, anda preocupada com o fato de a futura primeira-dama não ter mudado o estilo de vida e continuar dirigindo ela própria o seu Mitsubishi ASX prata. “É que ela ficou conhecida”, argumenta Karin. De fato. Embora não tenha sido planejado, Ana Estela acabou assumindo um papel de destaque na campanha do marido e tem tudo para ser muito mais do que a mulher do prefeito. “Nós ainda não paramos para pensar nisso, mas também não tínhamos parado para pensar no papel dela na campanha”, comenta Haddad. “E, aos meus olhos, ela teve uma atuação muito espontânea e interessante.” Ana Estela, por sua vez, pretende retomar seus próprios compromissos. E dar suporte para que o marido faça uma grande administração. Algo do tipo cada um para um lado, os dois para o mesmo lado.
QUIBES PARA LULA
Há algumas semanas é impossível pedir, por telefone, os deliciosos quibes da Tenda do Nilo, o pequeno, mas tradicionalíssimo restaurante árabe da esquina das ruas Coronel Oscar Porto e Abílio Soares, no bairro do Paraíso, em São Paulo. Mesmo no balcão, há um limite de duas unidades por cliente. O racionamento tem origem na campanha eleitoral à Prefeitura, quando veio a público, em março, a notícia de que o candidato Fernando Haddad, do PT, havia levado uma bandeja do quitute ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então convalescente do tratamento contra câncer na laringe, e o agradou em cheio. A demanda cresceu junto com a popularidade do petista, mas a estrutura da Tenda do Nilo permaneceu a mesma. Dona Xmune Isper, que toca o restaurante ao lado da irmã Olinda, e é responsável por tudo o que sai da cozinha, passou a preparar tantos quibes que teve um problema na mão esquerda. Foi operada e liberada para o trabalho, mas em seguida passou a sentir dores no ombro. E a falta de quibes parece só ter aumentado a fama do estabelecimento, que só abre no horário de almoço, de segunda a sábado, e abriga no máximo 23 clientes nas poucas mesas disponíveis.
A sócia da casa também se incomoda com os cada vez mais frequentes pedidos de fotos e as perguntas sobre seu grau de amizade com o prefeito eleito. “Ele é apenas um bom cliente, um vizinho que frequenta nosso restaurante há pelo menos três anos”, afirma. “Aliás, o prato preferido do Haddad nem é o quibe, é o Fatte (principal especialidade das irmãs Isper, uma mistura de pão árabe torrado, carne, grão-de-bico, coalhada fresca, castanhas de caju e alho frito), que faz os olhos dele brilharem.” A sobremesa que o petista “ama de paixão” – nas palavras de Olinda – é a Mil e Uma Noites, um bolo de semolina umedecido com água de laranjeira e mel árabe, com cobertura de creme de nata e pistache moído. “Uma pessoa me disse que estava tentando comer aqui pela oitava vez”, conta Olinda, numa queixa que rapidamente cede lugar ao orgulho de fazer “a melhor comida árabe caseira de São Paulo”. “Até quem não é de origem árabe diz que o paladar é especial”, diz. Ela também revela que as especiarias usadas em algumas receitas vêm diretamente do Líbano, terra onde foi criada a mãe, Bárbara. Nascida na Síria e viúva de um brasileiro, a matriarca trouxe três filhos ainda pequenos para o País e ensinou às duas filhas – em idioma árabe, porque nunca aprendeu a falar português – os segredos da culinária de lá.
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