Já se sabia que Gilberto Freyre (1900-1987) seria o grande homenageado da oitava edição da Feira Literária Internacional de Paraty, a Flip. Comemoram-se os 110 anos do nascimento do sociólogo pernambucano. Surpresa ocorreu quando foi divulgada a programação do evento, que terá início em 4 de agosto, com uma mesa formada pelo sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso e o cientista político Luiz Felipe de Alencastro, debatendo o tema Casa Grande e Senzala – Um Livro Perene. A principal obra de Freyre, lançada em 1933 é – e sempre será – um marco do pensamento social no Brasil. Por que então a surpresa?
Pois bem, Fernando Henrique faz parte da geração de sociólogos que despontou na Universidade de São Paulo, nos anos 1950, tecendo críticas veementes ao “Mestre de Apipucos” – como Freyre, narcisista assumido, gostava de ser chamado, sendo Apipucos o bairro do Recife onde se fixou depois de estudar seis anos nas universidades de Baylor e Colúmbia, nos Estados Unidos.
Em linhas gerais, o grupo da USP, tendo à frente Florestan Fernandes, se insurgia contra duas teses de Freyre, que enxergava uma “democracia racial” no Brasil e via cordialidade nos nossos colonizadores: “Os mais cristãos dos colonizadores modernos”. Os sociólogos centrados em São Paulo consideravam essa visão romantizada. Tornou-se famosa a frase de Florestan Fernandes, ao definir a questão étnica no País: “O brasileiro tem preconceito de ter preconceito”. Em miúdos, para ele democracia social era um mito.
As desavenças tornaram-se maiores a partir de 1964, após o golpe militar, por razões políticas. Enquanto Florestan Fernandes, Fernando Henrique e demais integrantes do grupo da USP perdiam os cargos de professores e se viam perseguidos pelo novo regime, o “Mestre de Apipucos” passava a tecer loas à ditadura. Mais tarde, inclusive, defendeu o AI-5. O choque era inevitável.
Agora, a Editora Global está reeditando a vasta obra de Gilberto Freyre. Entre as novidades, Fernando Henrique Cardoso assina o prefácio de Casa Grande e Senzala. Será lançado, também, um inédito de Freyre, o livro de memórias De Menino a Homem, que abrange o período de 1930 a 1984 em que, entre outras confissões, o sociólogo pernambucano aborda um caso homossexual que teve na Alemanha. Esta foi a entrevista que FHC concedeu à Brasileiros, por e-mail:
Brasileiros – Em uma entrevista a Folha de S.Paulo, o senhor disse que a Universidade de São Paulo (USP), particularmente em função das ideias do sociólogo Florestan Fernandes, “ajudou a ofuscar a faceta mais inovadora da obra de Gilberto Freyre”. Qual seria essa faceta? O senhor reconhece que Gilberto Freyre “estava anos luz à frente da USP no que diz respeito à ideia de miscigenação com um valor”. Fale-nos um pouco a respeito.
Fernando Henrique Cardoso – Não foi só Florestan Fernandes. Todos nós, da USP dos anos 1950, estávamos obcecados por formar a sociologia como uma disciplina “científica”. Gilberto e muitos dos que nos antecederam pareciam-nos, então, “ensaístas”. Suas conclusões não se baseavam em pesquisas rigorosas. Por isso, tivemos dificuldade em ver que, embora fosse assim – e nem sempre, pois Gilberto Freyre também fez pesquisas -, muitos dos trabalhos anteriores à escola sociológica de São Paulo iluminaram aspectos importantes da formação brasileira, destacando-se o próprio Gilberto Freyre entre os dois ou três autores mais importantes. E não só por ter chamado a atenção para o significado da miscigenação como um valor.
Brasileiros – A crítica mais frequente ao trabalho de Gilberto Freyre é a ideia da “democracia racial”. No entanto, o historiador Alberto da Costa e Silva sustenta que Freyre usava essa definição com restrição e hesitação. Inclusive, já em Casa Grande e Senzala, tratava do sadismo que imperava no regime escravista brasileiro e reconhecia com nitidez as formas diferentes da escravidão nos Estados Unidos e no Brasil e nas relações entre senhores e escravos. Enfim, qual a posição de Freyre a esse respeito?
F.H.C. – Tem razão Costa e Silva. Mas a ideia de uma “democracia racial”, embora apontasse para as diferenças de situação entre o que ocorreu nos Estados Unidos e no Brasil, não se sustentava, como não se sustenta. Essa foi uma das razões que distanciou os sociólogos paulistas que estudaram os negros e o preconceito da obra de Gilberto Freyre.
Para FHC, Freyre era mais avançado que seu tempo. Aqui, o escritor e seus licores, fotografado em 1980 por Hélio Campos Mello |
Brasileiros – Como o senhor enxerga a atualidade da obra de Freyre? E quais os pontos em que ela deixou de ser elucidativa para a compreensão da formação da nossa nação e do nosso povo?
F.H.C. – Acho que Freyre criou um “mito fundador”. Ao idealizar a democracia racial e ao edulcorar o relacionamento entre negros e brancos, ele ajudou a propor um ideal. Algumas de suas descrições e interpretações não têm sustentação nos fatos, mas a reiteração de que “somos mestiços” e o engrandecimento dessa mestiçagem são elementos positivos na aceitação de modelos de conduta não-discriminatórios. Há mais do que isso: Gilberto foi precursor da moderna Sociologia da vida cotidiana e de olhar o País, não apenas pela ótica da classe dominante, apesar de haver, como já dito, mitificado a relação casa grande-senzala. Olhou para a cozinha, para as receitas, olhou para os anúncios dos jornais. Enfim, inovou na temática e na metodologia.
Brasileiros – Como avalia a multiplicidade de elementos usados por Freyre para desenvolver suas pesquisas, como Sociologia, Antropologia, Psicologia, História e Economia?
F.H.C. – Novamente, ao não se ater aos limites formais de cada disciplina; ao ser, como se diz agora, interdisciplinar em suas abordagens, ele foi precursor.
Brasileiros – O senhor reconhece que, mesmo cometendo alguns exageros em suas análises, Gilberto Freyre tinha audácia de pensar. Esse elemento parece ter se perdido de vista da maioria dos nossos intelectuais, dos nossos pensadores?
F.H.C. – Concordo plenamente.
Brasileiros – A Editora Global lançará De Menino a Homem, que traz, entre outras coisas, relatos íntimos de Freyre acerca de suas experiências sexuais. Ele é um dos poucos intelectuais que tratou abertamente da sua sexualidade e a do Brasil. Por que esse tema ainda é visto com ressalvas no meio acadêmico e na própria sociedade brasileira?
F.H.C. – Esse tema é tratado com reserva em toda parte, e não só no Brasil. Aliás, talvez a sociedade brasileira seja menos tímida em aceitar a discussão da sexualidade do que muitas sociedades ocidentais, para não mencionar outras culturas que têm uma relação ainda mais difícil ao lidar com temas sexuais. O fato de Gilberto Freyre ter aberto espaço até mesmo no plano pessoal para discutir o comportamento sexual mostra o quanto ele era mais avançado que seu tempo.
Brasileiros – Nas últimas três décadas, a historiografia brasileira vem sendo reavaliada, com novas interpretações. Uma delas se debruça sobre o período colonial. No livro História do Brasil com Empreendedores, Jorge Caldeira mostra que – diferentemente de autores como Caio Prado Júnior, que focavam apenas o mercado exportador – nossa economia colonial tinha um mercado interno dinâmico, com empreendedores, fazendo com que nossa economia crescesse mais que a da metrópole, Portugal. O senhor conhece o livro? Qual sua opinião? Como fica a obra de Gilberto Freyre nesse novo panorama da historiografia?
F.H.C. – Claro que conheço o livro do Jorge Caldeira. Este último e os demais. Especialmente, convém ler Um Banqueiro do Sertão, que ajuda a fundamentar as interpretações expostas na História do Brasil com Empreendedores. As adições interpretativas de Caldeira não diminuem, obviamente, o significado pioneiro das obras de Caio Prado e de Oliveira Vianna (a quem, aparentemente, o primeiro devia mais do que reconhecido), mas ajudam a ampliar nosso conhecimento e nosso horizonte interpretativo. Como Gilberto Freyre baseou suas análises mais na sociedade que na economia, apesar de implicitamente adotar a dicotomia grande proprietário-escravidão, as críticas de Jorge Caldeira não o atingem diretamente.
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