Brasileiros – A tecnologia tem avançado tão rapidamente que às vezes a ficção científica acaba se confundindo com o próprio presente. Como você vê isso?
China Miévile – A relação da ficção científica com a previsão do futuro, em termos de tecnologia, é quase que totalmente casual. Sempre vão dizer que isso ou aquilo foi “inspirado pela” ficção científica, como o satélite, e por aí vai, e de fato seria até ridículo afirmar que engenheiros e inventores nunca foram influenciados por programas de TV ou algo parecido. Ao mesmo tempo, a ideia de que o gênero seja responsável por transformações tecnológicas, mesmo que em parte, é bem pouco científica; primeiro, porque não há pesquisas a respeito, e, segundo, porque boa parte dos criadores de novas tecnologias tem também outras fontes de inspiração, como a fantasia (pense nas capas de invisibilidade), sonhos ou mesmo ideias que surgem do nada. A realidade é bem mais complexa e cheia de conflitos.
Do ponto de vista literário, não vejo nenhum problema nessa relação entre a tecnologia e a ficção científica, tanto no sentido da capacidade premonitória (muito pouca ou quase nenhuma que não seja meramente casual) quanto no sentido contrário, quando a ficção “erra”. Há muita “ciência” nos livros de ficção que foi refutada pela realidade, e eu acho que isso não tem a menor importância.
Claro, pode ser muito intrigante ou interessante ou digno de nota ou mesmo psicologicamente prazeroso se houver, de fato, algum tipo de convergência entre o real e o ficcional, mas eu não tiraria nenhuma conclusão daí. No fim das contas, a proporção de ficção científica que se mistura de fato à realidade é mínima em relação ao que é aberrante (prefiro usar essa palavra a “errado”, pois isso implicaria dar muita importância à “previsão tecnológica”) e distante da plausibilidade ou do rigor.
O que me interessa é a sociologia da tecnologia, e ainda que eu não ache que a convergência entre o real e o literário seja desinteressante, presto muito mais atenção se os militares gastam dinheiro não apenas em armas convencionais mas também em pesquisas biológicas. Acho que faz parte de uma certa automitificação de alguns escritores (poucos) se considerarem importantes previsores do futuro.
Há algum tempo Jonathan Franzen declarou que todo romance deveria ter um papel social. Como conhecido militante de esquerda, você concorda com ele?
O romance, quer se queira ou não, tem um papel social, mas a natureza desse papel é, me parece, muito mais sutil e complexa do que está de alguma forma implícito. E é assim por uma série de motivos (muitos deles óbvios). Acho desimportante a velha questão de se é possível fazer “boa arte” que tenha uma mensagem ou ideologia, pois simplesmente não considero o romance como um bom veículo para propaganda de qualquer tipo. É perfeitamente possível gostar muito de um livro que explicita argumentos dos quais você discorda frontalmente. Se você tenta investir um romance de um papel social específico, independentemente de ser capaz de escrever um bom romance ou não (e eu não sou daqueles que acham que um romance político é necessariamente ruim) vai ficar desapontado com o baixo poder de intervenção propagandística de seu livro.
Claro que isso não é motivo para que os escritores não se preocupem com as imagens e ideias que colocam em seu trabalho, já que a ficção, como peça de cultura, é, entre outras coisas, sintomática de sua sociedade. Ter um ceticismo jovial a respeito do papel social dos romances não implica perder o rigor com eventuais incitações ao racismo ou à violência sexista ou coisas desse tipo que possam surgir. Isso é indiscutível. Só acho que se deve ter uma atitude mais humilde, de ler ficção como sintoma e não como intervenção.
Em alguns países, como o Brasil, não há uma tradição de autores de ficção científica, ainda que haja muitos leitores do gênero. Com segue imaginar algum motivo para que seja assim? O que espera da recepção de seu primeiro livro no Brasil?
Tenho certeza de que um especialista em literatura brasileira vai poder te dar uma resposta mais completa a essa questão, mas eu receio não ser capaz! Não tenho o conhecimento necessário, seria leviano chutar.
Uma coisa que certamente me fascina é o interesse cada vez maior que os gêneros fantasia e ficção científica têm despertado globalmente; acho que é um fenômeno que pede uma avaliação séria e bem documentada. Teria de se levar em conta, por exemplo: a importância da literatura como expressão artística de um país; seu papel no desenvolvimento do imaginário de uma comunidade, quem sabe até como forma de resistência a um império; o diálogo com outras tradições locais de representação, realistas ou não; a discussão sobre liberdade de expressão e o uso concomitante de narrativas dissidentes e oficiais; as ideologias locais de família, Estado e capital, e a convivência de diferentes visões sobre arte realista e não-realista; o desenvolvimento das editoras, gráficas e mídias capitalistas; o incentivo à leitura; a renda média; e por aí vai…ou seja, muito mais do que qualquer ruminação superficial que eu pudesse fazer. A boa notícia é que em alguns meios essa pesquisa parece estar sendo feita. De qualquer forma, acredito que uma das causas desse interesse seja a globalização da cultura geek e da internet.
Quanto à recepção do meu livro no Brasil, não tenho a menor ideia, sou certamente a pior pessoa do mundo pra falar sobre isso! Claro que eu espero que seja bem recebido. Por algum motivo, A Cidade & a Cidade é particularmente um livro que traz, para muitos leitores, uma ressonância com suas próprias cidades e experiências. Adoraria que esse fosse também o caso no Brasil.
Deixe um comentário