Filosofia para Princesas

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Guillermo Kuitca. Foto: Silvia Zamboni

Como se reconstrói o pensamento estético de um artista a partir de uma retrospectiva? O mais comum é agrupar unidades temáticas contextuais que comportem a multiplicação de materiais pertinentes e colocar a pluralização das interrogantes que tangenciam as obras. Quais poderiam ser então os problemas estéticos ativados pela mediação de constituição da linha do tempo? No caso da retrospectiva do argentino Guillermo Kuitca na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com cerca de 50 trabalhos, de 1980 a 2013, com a participação ativa do artista e a curadoria de Giancarlo Hannud, a escolha foi projetar hipóteses e formalizá-las com citações exemplares. No entanto, pela própria limitação do número de obras e de espaço, em alguns momentos deixam veladas a problemática do autor, suas dinâmicas conceituais e psicológicas.

Filosofia para Princesas marca a presença de Kuitca no Brasil e deixa o rastro de um artista de 53 anos, que começou nas artes aos 13 anos e aos 19, dotado de uma homogeneidade especulativa, se infiltrou no universo secreto da coreógrafa alemã Pina Bausch. Inspirado nos movimentos, desenvolveu uma obra precoce. Aos 22 anos, ele já maravilhava o circuito de arte de Buenos Aires ao manejar um rigoroso tecido imantado pela força historiográfica de sua obra. Aos trinta e poucos anos é legitimado na dOCUMENTA de Kassel, de 1992, que lhe dá a chancela internacional para se tornar um artista transcendente. Portenho, com residência no bairro de Belgrano, Kuitca é um dos artistas argentinos mais consagrados no mundo das artes. Suas obras estão, entre outras, nas celebradas coleções nova-iorquinas do MoMA e do Metropolitan.

Converso com Kuitca no octógono da Pinacoteca, em São Paulo, no marco zero da retrospectiva, tomado pela instalação Le Sacre (A Sagração), 1992, adquirida pelo The Museum of Fine Arts, Houston. O eixo de variações temáticas é construído por diferentes mapas, que usam como suporte a superfície de 54 colchões. Os desenhos impressos sobre eles são inconclusos, fragmentados, com seus nomes geográficos alterados. O projeto serialista se repete de forma diferente, de acordo com espaço a ser “instalado”, apontando novas hipóteses estruturais da transmissão de significados. O esquema comunicativo se dá por uma linguagem informativa que restitui um conceito mais complexo, e que discuto com Kuitca. “Escolhemos essa obra para dialogar com a arquitetura potente do átrio da Pinacoteca. O local pedia um trabalho com essa definição mais categórica. Se observada dos andares de cima do edifício, temos uma percepção vertical da instalação.” Aproximar-se e afastar-se do objeto trabalhado é uma característica de Kuitca. Há obras que parecem ter sido criadas sob a perspectiva de um observador que está em um patamar superior. “Em outros locais, essa obra foi montada com outras configurações, surgindo uma topografia irregular. Aqui, optei por uma solução mais frontal e direta.” Em 2000, Kuitca fez uma individual na Fundação Cartier em Paris, na sequência teve uma retrospectiva no Reina Sofia, em Madri, e depois a maior homenagem de sua carreira, quando ocupou grande parte do Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA).

Kuitca já experimentava as facilidades que hoje temos, no Google, por exemplo, de utilizar as funções de zoom para aproximar ou afastar os objetos. A cama, como elemento, está sempre próxima ao corpo humano e os mapas impressos no colchão são um contraponto, fazendo pensar em coisas que estão muito distantes de nós. “É como se estivéssemos com o olho sempre flutuando sobre o trabalho, pronto para se afastar ou para pousar sobre ele.” A mesma experiência ele aplica quando projeta o interior de um apartamento, com toda sua intimidade, ou uma pista de aeroporto durante a aterrissagem de um avião.

Somam-se a essa série cartográfica pinturas de plantas arquitetônicas de diversos espaços, como teatros e casas de óperas. Sua pintura permeia um neoexpressionismo diferente de outros artistas do movimento, é mais objetiva, com muita geografia e não pura subjetividade, está sempre ligada à ideia de localização. Com o tempo, sua pintura se libertou da dimensão do sentido do corte fronteiriço. O que era a borda ou limite dos mapas desaparece e dá lugar a traços livres, quase abstratos.

“Algumas de minhas obras, apesar de eu ainda as ter feito quase adolescente, tiveram uma influência política da situação da época, quando ainda tínhamos a ditadura militar. Era uma espécie de resposta ao que estávamos vivendo. Algumas eram emotivas e descarnadas ao mesmo tempo. Depois, me libertei dessa proposta que, para mim, resultava banal. Não me considero um artista político como gênero. Essas obras eram respostas quase ilustrativas à opressão.”

No início da carreira, Kuitca tinha obsessão por números, assim como o polonês Roman Opalka. Dessa fase, há um desenho nada banal em que registra sobre papel o número de desaparecidos políticos durante o governo militar da ditadura argentina. “Esses trabalhos falavam de uma realidade, mas não me tocavam. Com os mapas, fui encontrando um sentido para minha obra, mais próximo de mim mesmo. Em outros artistas, a arte política não me incomoda. Eu gosto da frontalidade, admiro artistas que são frontais politicamente.”

Dividindo a mostra, uma esteira de malas de aeroportos é colocada no centro da exposição e representa o deslocamento contínuo do homem contemporâneo. “É uma imagem simbólica do movimento de rotação e do limbo. Aqui não há malas, nem pessoas, é uma peça que gira sem nenhum sentido, representa um paradoxo entre essa mobilidade permanente e a imobilidade de estar sempre no mesmo lugar. “O homem global também gira pelo mundo sem nenhum sentido nem direção. Esse ir e vir é terrível. É um vácuo. Essa obra baliza, compartilha o sentido dessa retrospectiva e abraça todos os demais trabalhos.”

Experiência artística é, para Kuitca, romper com esse estado de coisas e conviver com o fato de que a obra está perpassada de silêncios. Toda retrospectiva tenta abrir o campo de significação provisória e, com isso, cair na leitura superficial, muitas vezes confundida com uma curadoria equivocada.


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