Flores Raras não deixa de ser uma visão do país pelo olhar de uma estrangeira. Claro que também é uma bela história de amor entre duas mulheres: Elisabeth Bishop (1911-1979), considerada a maior poeta americana do século 20, e Lota de Macedo Soares (1910-1967), forte e decidida, que desde cedo manteve uma relação complicada com o pai, José Eduardo de Macedo Soares, dono de um dos jornais mais influentes do Rio de Janeiro, o Diário Carioca. Lota, que nasceu em Paris, aprendeu a ser prática e sozinha. Sua futura companheira, Elizabeth Bishop, que foi criada por parentes, era fragilizada pelas fortes perdas que sofreu – o pai morreu quando ela tinha 8 meses e a mãe, não suportando a ausência do marido, viveu o restante da vida em clínicas psiquiátricas. Adulta, Elizabeth encontrou no álcool uma maneira de suportar sua dor. Em 1951, desencontrada de si mesma, ela chega ao Brasil, onde se sente ainda mais isolada e sem rumo. O exílio se torna mais agudo pelo estranhamento do que os hábitos exagerados e a falta de educação que os brasileiros lhe causam. Costumava dizer: “O Brasil é mesmo um horror”. É nesse estado de espírito que Lota a encontra. Durante os 15 anos que viveram juntas, os comportamentos se alteram e é isso o que conta o mais recente filme de Bruno Barreto.
É no Brasil, um lugar que Elizabeth não compreendia direito e não aceitava, que sua poesia ganha força e contorno. “Pode ser que me sentisse uma Bishop invertida. Eu, nos Estados Unidos, sendo brasileiro; ela, no Brasil, sendo americana”, diz Bruno Barreto, ao falar do19º. filme de sua carreira. Ele recebeu a reportagem de Brasileiros em seu apartamento localizado na Alameda Franca, nos Jardins, bairro nobre paulistano. Carioca de nascimento, Barreto mora em São Paulo desde 2005, quando deixou Nova York após sua separação da atriz Amy Irving, com quem viveu junto por 15 anos.
Detentor da segunda maior bilheteria do cinema nacional com Dona flor e Seus Dois Maridos (1976), superado apenas por Tropa de Elite 2 (2010), de José Padilha, Barreto revela que, entre tantos filmes que fez, desgosta de uns, gosta um pouco de outros, mas três considera os seus melhores: Atos de Amor (1985), que fez nos Estados Unidos, O Romance da Empregada (1987) e Última Parada 174 (2008), que não teve a bilheteria que ele esperava.
Fazia cinco anos que Bruno Barreto não lançava um filme. Depois de Flores Raras, ele lança Crô – O Filme, uma comédia baseado no personagem Crô, da novela Fina Estampa, de Aguinaldo Silva (Rede Globo), que foi interpretado pelo ator Marcelo Serrado – que viverá o papel do pianista João Carlos em cinebiografia de Barreto.
Na entrevista à Brasileiros, o cineasta falou de Flores Raras, do Oscar, dos acasos que o levaram a querer filmar a história de Elizabeth e Lota, das críticas sobre suas escolhas como diretor, da família e da difícil relação com seus pais, Lucy e Luiz Carlos Barreto, o Barretão.
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Brasileiros – Você, que concorreu ao Oscar pelo filme O Que É Isso, Companheiro?, de 1997, acha que tem chance de ser o indicado pelo Brasil para concorrer com Flores Raras à premiação do próximo ano na categoria de Filme Estrangeiro?
Bruno Barreto – Não por que a primeira ou a segunda regra, não sei, da Academia [de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood] é que, para concorrer nessa categoria, o filme precisa ser falado, a maior parte do tempo, em um idioma que não seja o inglês. E Flores Raras é falado em inglês quase na totalidade, só uns 5% do filme tem diálogos em português. Muito pouco.
Brasileiros – Existe a possibilidade de Flores Raras ser lançado nos Estados Unidos?
B.B. – Acabei de chegar de Nova York para cuidar disso. Apesar de ser diretor, às vezes preciso fazer essas coisas, mesmo não gostando muito. O filme vai ser lançado em cinco cidades americanas: Nova Iork, São Francisco, Boston, Los Angeles e Chicago.
Brasileiros – O filme teve uma boa carreira nos festivais internacionais, inclusive chegou a ganhar alguns prêmios, não foi?
B.B. – Ele teve uma carreira muito boa. Nos Estados Unidos, passou pelos festivais de Los Angeles, de Tribeca, em Nova York, e São Francisco. Começamos a carreira internacional do filme no último Festival de Berlim, em fevereiro último. Nos festivais de Los Angeles e São Francisco, ganhamos dois prêmios, um de público e outro de melhor drama. O Festival Framelime, em São Francisco, é o maior festival gay do mundo. Lá, nosso filme teve o segundo maior público. Depois desses prêmios e da recepção que tivemos nos Estados Unidos, estou começando a acreditar que o longa tem chances de ser indicado ao Oscar.
Brasileiros – As interpretações de Miranda Otto, que vive Elisabeth Bishop, e Glória Pires, que interpreta Lota de Macedo Soares, seriam suas maiores chances de indicação ao Oscar?
B.B. – Certamente. Não será surpresa nenhuma para a gente se elas receberem indicações de Melhor Atriz Principal, porque é uma história de amor entre duas mulheres e as atrizes estão muito bem. Glória é fenomenal, não há nada que possa resumir seu talento. Ela não era fluente em inglês e interpretar em outro idioma não é fácil, mesmo para atores estrangeiros que vivem há anos nos Estados Unidos, como o Antonio Bandeiras, que até hoje interpreta com sotaque.
Brasileiros – O filme teve alguma crítica favorável quando passou pelos festivais americanos?
B.B. – Saíram algumas críticas elogiosas em veículos especializados, como Hollywood Report, cuja crítica foi muito boa, e Screen International, que é inglês e fez uma crítica um tanto esquizofrênica.
Brasileiros – O que diz a critica?
B.B. – Começa dizendo o seguinte: “Não seria absurdo dizer que, se Elizabeth Bishop visse esse filme, ela ia ficar mortificada”. Se você ler só isso, vai achar que o filme é uma merda, que Elizabeth Bishop iria detestar. Aí, segue: “Pelo fato de ela ter sido muito reservada”. Realmente, Elizabeth era reservada, e o filme mostra uma parte da vida dela, não documentário. Então, esse argumento que ela iria ficar mortificada não faz o menor sentido. Ela ficaria mortificada ao ouvir seus poemas sendo declamados em público. Inclusive, isso é mostrado em uma cena do filme.
Brasileiros – Você só foi convencido a filmar a história de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo anos depois de ter sido apresentado ao projeto por sua mãe, Lucy Barreto. Pode nos contar um pouco o histórico desse projeto?
B.B. – O histórico desse projeto é cheio de personagens, principalmente mulheres. Minha mãe comprou os direitos do livro Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, em 1997. Ela veio a mim e contou a história de Elizabeth e Lota. Mas não me interessei por ela. Aí, minha mãe contou a história ao Hector Babenco, que também não se interessou. Sete anos depois, em 2004, eu tinha acabado de filmar O Casamento de Romeu e Julieta, que é baseado em um conto de Mário Prata. Eu e ele trabalhamos no início do roteiro do filme, mas o roteiro é de Marcos Caruso e Jandira Martins. Nesses encontros, Mário me disse que sua ex-mulher Marta Góes, mãe dos seus filhos, tinha escrito um monólogo sobre Elizabeth Bishop [Um Porto para Elizabeth Bishop], que era perfeito para Amy [Amy Irving, ex-mulher de Barreto] fazer. Eu nem me lembrava de que Mário Prata tinha sido casado com Marta Góes. Mas ele me pediu para dar o texto a Amy, que não fala muito bem o português, mas lê. No final, ela adorou o monólogo, telefonou para Marta e as duas fizeram uma versão do texto em inglês. Eu fiz uma viagem, nunca vou me esquecer, em julho de 2004, para Ouro Preto, com Amy, que se preparava para fazer o monólogo nos palcos americano. Ficamos hospedados na casa que pertenceu a Elizabeth, quando ela morou na cidade mineira. Dormimos na cama que tinha sido dela. Os donos dessa casa preservaram quase tudo que foi dela. Quando fomos dormir, disse a Amy: “Cuidado para não me chamar de Lota hoje á noite”. (risos).
Brasileiros – Depois dessa viagem, vocês foram para os Estados Unidos para que Amy Irving montasse a peça lá?
B.B. – O incrível dessa primeira montagem é que foi no teatro da universidade Vassar College, onde Elizabeth Bishop tinha estudado. Foi vendo Amy fazendo Bishop no palco, no monólogo da Marta, que me convenci que queria contar aquela história. Foi vendo aquela história sendo encenada no palco do teatro daquela universidade que fui me lembrar da história que minha mãe tinha me contado lá atrás. Automaticamente, comecei a me coçar e pensei em voz alta: “Pô, essa história é a mesma que minha mãe tinha tentado me convencer a filmar, é a mesma história do livro que ela comprou os direitos”. Só depois, li o livro Flores Raras e Banalíssimas. Então, foi por meio do monólogo da Marta que Amy encenou que me convenci da ideia de minha mãe. Mas não posso me esquecer da atriz Regina Braga, que primeiro pediu a Marta que escreve um monólogo sobre Elizabeth Bishop para ela interpretar. Foram essas mulheres que me convenceram de querer filmar essa história.
Brasileiros – Sua mãe deve ter ficado, ao mesmo tempo, grata a essas mulheres e chateada com você por não ter sido ela quem lhe convenceu?
B.B. – (risos) Pois é, para você ver como são as coisas. Depois de tudo isso, fui ler o livro que minha mãe tinha me apresentado e adorei a história. Mas o filme não é uma adaptação, é inspirado no livro. Eu li em torno de oito livros sobre Elizabeth Bishop e Lota de Macedo. Carolina Kotscho leu outros tantos [o roteiro final é de Marthew Chapman e Julie Sayres, baseado no roteiro de Carolina Kotscho]. Depois dessas leituras, chegamos à história que conto no filme.
Brasileiros – Alguma relação entre o exílio de Elizabeth no Brasil e a sua própria história, a de um cineasta brasileiro nos Estados Unidos?
B.B. – Pode ser que eu me sentisse uma Bishop invertida. Um brasileiro nos Estados Unidos, e ela americana no Brasil. Mas isso não era motivo suficiente para querer contar essa história. Eu, para contar uma história, preciso depurá-la muito, tem de haver um vetor. E o vetor é a pergunta: “Por que eu quero contar essa história?”.
Brasileiros – O que você acha quando alguns críticos o acusam de entrar em projetos com o intuito de simplesmente ganhar dinheiro, de fazer filmes que estão na moda. Última Parada 174 (2008) pegava carona nos filmes de favela e de bandidos, bem diferente da maioria de sua produção anterior, que focava a classe média. Depois de Flores Raras, seu próximo longa será Crô – O Filme, uma comédia baseada em um personagem de sucesso em uma novela de Aguinaldo Silva. Isso é apenas coincidência?
B.B. – Eu acho que, quando entro em um filme, que é muito difícil de fazer, tenho de estar movido por alguma curiosidade. Faço filmes dos quais sinto curiosidade.
Brasileiros – Seu próximo filme surge justamente no momento em que comédias da Globo Filmes têm sucesso garantido de bilheteria nos cinemas?
B.B. – Não acho coincidência. Agora você quer falar do [filme] Crô?
Brasileiros – Não é isso, só queria saber de sua opinião a esse respeito…
B.B. – Então, vamos lá. Não estava nem pensando em fazer Crô, quando fui procurar o Marcelo Serrado. Queria convidá-lo a fazer um longa sobre a vida de João Carlos Martins [pianista], que deverá ser lançado nos cinemas depois de Crô – O Filme. Queria saber o que ele achava do projeto, se topava interpretar João no meu filme. Isso aconteceu no meio das filmagens de Flores Raras. E foi nesse encontro que falei que tinha adorado o personagem Crô, que ele viveu na novela de Aguinaldo Silva [Fina Estampa]. Eu não tinha assistido a toda novela, que é impossível, mas vi os 20 primeiros capítulos. Adorei o personagem e disse ao Marcelo que eu o comparava aos personagens de Jerry Lewis, que amo até hoje. Marcelo me falou da possibilidade de fazer um especial na programação de fim de ano da Globo. Perguntei: “Por que não fazemos um filme baseado no personagem do Crô?”. O projeto nasceu dessa conversa sobre o filme de João. As pessoas que vão assistir Crô, verão que nada tem a ver com as comédias que estão sendo feitas no Brasil. Não estou me desfazendo delas. Se dão certo, alguma coisa tem de bom. Respeito o sucesso, mas não sou escravo dele. Pode até ser que Crô não faça tanto sucesso (risos). O filme tem elementos dessas comédias, mas é outra coisa. Se eu quisesse só fazer sucesso comercial não faria Flores Raras, que é um filme na contramão disso. Mas, por coincidência, quem diria que 2013 fosse o ano gay, do casamento gay. A coincidência, se podemos pensar assim, é que o filme chega aos cinemas nesse momento.
Brasileiros – Como é a sua relação com os seus pais, Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto?
B.B. – É complicada, sobretudo com meu pai. Sempre tive uma relação de igual para igual com ele, por isso brigamos muito ao longo de todos esses anos. Ao mesmo tempo, é um convívio rico e afetuoso, sem espaço para hipocrisias. No entanto, sempre admirei a relação de afeto entre meus pais. Eles são insuportavelmente felizes juntos (risos). Agora, estou ciente que chegou a hora de cuidar mais deles do que eles de mim.
Brasileiros – Fábio Barreto, seu irmão e também cineasta, está em coma desde 2009, quando sofreu um acidente de carro no Rio de Janeiro. Como você e sua família lidam com essa difícil situação?
B.B. – Esse acidente foi uma tragédia que abateu nossa família e não cessa nunca. É muito estranho saber que ele está lá em uma cama, sem se comunicar, sem mostrar nenhuma reação, sem consciência. Foi muito triste e doloroso para os meus pais, principalmente. Acho que só agora eles passaram a aceitar um pouco mais, mas mesmo assim sofrem muito. O que aconteceu com Fábio foi uma crônica de um acidente anunciado. Ele sempre teve certos problemas, sempre foi muito delicado. Acho que para qualquer um fazer cinema é conviver com muita pressão. No caso dele, essa pressão era brutal.
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