Foto: Divulgação/nVersos
Foto: Divulgação/nVersos

Há histórias hilariantes na autobiografia de Norma Bengell, lançada pela editora nVersos – que tem por título só o nome da atriz. Uma delas se passa no Hotel De La Ville, em Roma, nos tempos de Dolce Vita do cinema italiano. Norma viu o traseiro de um homem gordo que, agachado, amarrava os sapatos. Não resistiu.

“Dei um tapinha e disse, em bom português: ‘Que bundão!’.” O proprietário dos glúteos era Orson Welles. Desarmado, o cineasta desandou a rir.

Corta para a cerimônia de entrega do Prêmio Governador do Estado, em São Paulo. Norma recebia o galardão das mãos de outro rotundo cidadão – o então governador Adhemar de Barros –, em virtude de sua atuação no histórico Os Cafajestes, de Ruy Guerra, filme em que protagonizara, em 1962, a primeira cena de nu frontal no cinema brasileiro. Estava acompanhada pelo ator italiano Gabriele Tinti, o único homem com que se casou de papel passado.

Adhemar mediu o consorte de cima a baixo e invejou-lhe a sorte, comentando em linguagem de estadista: “Ah, então é você o italiano que está nas bocas, hein? Felizardo! E você é a dona boa que ficou nua no filme?”.

Embora constrangida, Norma agradeceu o prêmio, mas devolveu o cheque à primeira-dama de São Paulo, Leonor de Barros, para ser destinado às obras de caridade. Dona Leonor, que passaria à história como carola e discreta, viu naquele altruísmo uma afronta: “Sua danada, está achando pouco?”.

A personagem desses casos antológicos teve um fim tristíssimo. Morreu aos 78 anos, em 2013, de um câncer de pulmão. Havia seis anos não andava, consequência de dois tombos caseiros e sequelas na coluna. Entrevada em uma cadeira de rodas, fumando dois maços diários de Marlboro dourado, amargava a morte recente de sua companheira por décadas, Sandra, e, ainda, uma crise financeira que lhe obrigava, mês a mês, a vender os móveis da residência.

Estava inconformada com a ausência dos amigos – “Todos sumiram” é a última frase da autobiografia – e, tanto ou mais, com as renitentes acusações de ter se locupletado com o dinheiro do erário, angariado para produzir o filme O Guarani, que dirigira em 1996. Em virtude desse imbróglio, havia sido indiciada pelo Ministério Público por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e apropriação indébita.

Quando o caixão da carioca Norma Bengell foi fechado, apenas 15 pessoas estavam em torno do corpo que seduziu levas e levas de espectadores no teatro, no cinema e na TV. Os últimos anos de calvário da estrela, todavia, são relatados na autobiografia de modo sucinto e sem a carga emocional de outros capítulos. Isso se explica pela maneira como o livro foi feito. Norma escreveu os relatos em duas etapas. A primeira entre 1975 e 1977. A segunda no final dos anos 1990.

O material estava acumulando poeira, deteriorando em uma edícula da casa da atriz, no Rio de Janeiro. Norma já sofria de frequentes lapsos de memória.

Em 2007, ao saber que a artista mantinha um acervo de fotos, cartazes e outros objetos, a produtora cultural Christina Caneca ofereceu-se para organizá-lo. “Dali talvez saísse algo que rendesse a Norma algum dinheiro. Era a minha ideia”, diz Christina. Nessa busca, com a ajuda da empregada da casa, os escritos foram encontrados. “Virou uma caça ao tesouro. Estava tudo espalhado. Montei como se fosse um quebra-cabeça.”

Por coincidência, a nVersos procurou Norma, propondo uma biografia. Christina já havia estruturado a maior parte da obra. Uma equipe de entrevistadores da editora incumbiu-se de atualizar as informações e preencher os anos faltantes. Disso resultou um livro com flutuações de estilo e algumas incongruências e saltos cronológicos. Ainda assim, afiado.

Numa época em que sortidas figuras públicas procuram barrar livros biográficos com a fúria de Torquemada, o relato de Norma assombra pela transparência. A filha única de um modesto imigrante belga afinador de pianos com uma moça bem nascida, deserdada pela família em virtude do casamento, despe-se sem pudor. Ali estão as reminiscências artísticas, desde os primeiros shows como vedete (das boas) e cantora (das ótimas), da deslumbrante garota de 1,72 m, criada em um quarto e sala de Copacabana. É o depoimento de uma atriz corajosa, que trabalhou com alguns dos principais cineastas brasileiros. De Carlos Manga a Glauber Rocha. Foram 64 filmes, incluindo os nove rodados na Itália. Norma escreveu: “Não sou uma atriz genial, mas tenho uma vantagem: quando me movo, parece que estou tomada”.

Há também as recordações do teatro, seja levando à cena peças de escritores que renovaram a dramaturgia nacional – como Antonio Bivar e José Vicente – ou atuando em Portugal e na França, onde foi duas vezes dirigida por outro artista de vanguarda: Patrice Chéreau. Graças a essas andanças, a mulher que abandonou os estudos formais aos 16 anos falava inglês, francês, espanhol e italiano. Uma confissão: “Sempre fiquei muito nervosa em todas as estreias. Por isso, deixava um penico na coxia. Antes de entrar em cena, fazia xixi e evitava molhar as calças no palco”.

O mais impressionante no livro é a sem-cerimônia com que descreve sua vida pessoal. Com Crueza, relata romances, embates com a ditadura e os moralistas e, ainda, os penosos anos de exílio. Há imersões rodrigueanas nas memórias da moça que sentiu desejo sexual pela primeira vez tendo por objeto o próprio pai, viu-se abordada pelo padrinho e perdeu a virgindade aos 17 anos com um rapaz que viria a currá-la – como se dizia na época. Também foi vítima de estupro de outro namorado, o ator francês Alain Delon, depois de terminado o relacionamento – e a quem descreve como “bonitinho, mas ordinário”.

Em Paris, um alto funcionário do Itamarati também tentou forçá-la, sem êxito, dentro da própria embaixada. Já o italiano Luciano Vincenzoni, roteirista do cineasta Sergio Leone, bebia champanhe dos sapatos de Norma e transava vestido.

“Tive muitos homens, mas nenhum me ofereceria amor sem prisão”, resumiu. Entre eles, Arnaldo (casado, pai de três filhos, secretário de Jango Goulart e o primeiro que a fez gozar, aos 23 anos); os atores Agildo Ribeiro (“um ótimo amante”), Reginaldo Faria, Renato Salvatori e Robert Loggia; e o diretor Anselmo Duarte. “Hoje sei que sexo por sexo é uma merda e paixão e tesão acabam.” Arrependimento? Só dos muitos abortos. “Fiquei tão traumatizada que acabei inventando um filho imaginário, com fotos e tudo, que carregava comigo.”

Sua vida amorosa passou por uma reviravolta ao conhecer a jornalista – e hoje terapeuta – Gilda Grillo, “linda, inteligente, emancipada”. Tiveram um romance de sete anos. No turbulento ano de 1968, Norma não era figura exemplar aos olhos da ditadura. “Eu fazia teatro e cinema de vanguarda, frequentava manifestações políticas e vivia com uma mulher.”

Seu horror aos desmandos do governo levou-a a reagir por impulso. Fisicamente, inclusive. Na Passeata dos 100 Mil, em 1968, no Rio de Janeiro, ao ver um soldado segurando o braço de Tônia Carrero e dando ordem de prisão à atriz, não tolerou. “Dei uma joelhada no saco dele. Ele largou Tônia na hora.” Mais tarde, quando agentes da repressão invadiram seu quarto, em São Paulo, o reflexo também foi epidérmico. Ao ver um policial andando de quatro pela casa, deu-lhe um pé na bunda – ao pé da letra. Reafirmando seu inconformismo, Norma concedeu entrevista pregando o fim do Exército e cedeu às mães de presos políticos o teatro onde atuava, “para que denunciassem a precariedade das prisões”. O resultado: ameaças de morte, um sequestro, três prisões, sucessivos interrogatórios. Em um deles, pediu ao coronel Luiz Helvécio Leite para ir ao banheiro. O inquisidor disse que iria junto, “para ver se xixi de comunista era vermelho”. Os homens da censura mandaram avisar: mesmo que montasse A Branca de Neve não iriam liberar. O exílio foi inevitável.

Em Paris, passou a morar em um apartamento mínimo, que estava imundo. Deprimiu-se. “Entrei em parafuso.” Conseguiu manter a sanidade. Entre outras incursões, procurou a escritora Simone de Beauvoir, a atriz Delphine Seyring e o ativista Régis Debray para ajudá-la na libertação de Inês Etienne Romeu, então a única presa política condenada à prisão perpétua no Brasil. O presidente Geisel faria a revisão do processo. Foi Norma quem incentivou a jornalista Lúcia Romeu, irmã de Inês, a encontrá-lo.

Momentos - Norma Bengell aos 75 anos e na capa do livro, ainda jovem - Foto: Divulgação/nVersos
Momentos – Norma Bengell aos 75 anos e na capa do livro, ainda jovem – Foto: Divulgação/nVersos

Na volta ao Brasil, Norma era, antes de tudo, uma feminista. Tal disposição passou a causar-lhe atritos na carreira. Convidada para o segundo papel principal da telenovela Dancin’ Days (1978), da Globo, discutiu com o diretor Daniel Filho e o autor da trama, Gilberto Braga. A emissora preferiu dispensá-la, mesmo tendo de regravar 12 capítulos com Joana Fomm em seu lugar.

Sua fama de “difícil”, aliada ao fato de ter perdido o viço de sex symbol, diminuíram os convites para atuar. Lançou-se na direção em 1988, em Eternamente Pagu, um longa-metragem sobre a escritora modernista e militante comunista Patrícia Galvão, outra mulher de personalidade vigorosa. Seu segundo e derradeiro longa-metragem de ficção atrás das câmeras foi o fatídico O Guarani, baseado na obra de José de Alencar. “Não houve nenhuma má-fé por parte da Norma”, diz Christina Caneca. “Ela foi muito mal assessorada por quem cuidava das finanças do filme.” Como diretora, ainda rodaria dois documentários sobre as maiores pianistas brasileiras de música erudita: Magdalena Tagliaferro e Guimar Novaes. Sempre as mulheres fortes.

Christina Caneca afirma ter reunido poemas, crônicas e a correspondência de Norma – com muitas cartas de Glauber Rocha. O suficiente para um segundo volume dos escritos de uma artista que, segundo o produtor e apresentador Luiz Carlos Miele, “viveu uma vida que é um roteiro pronto”. Embora sem happy end.


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