A Le Lis Blanc tem 40 lojas e produz e revende para 150 lojas multimarcas. Os números são de causar inveja a um figurão da Fiesp. A empresa chega a 1,5 milhão de peças ao ano. Cada coleção pode se estender a três mil itens, sempre incluindo moda para trabalho, lazer e festas, artigos de decoração e, claro, uma água de colônia floral, para fazer jus ao nome da loja, O Lírio Branco. À frente dessa indústria, dirigida a um público de luxo, está Traudi Guida, 62 anos – aparentando menos, mas muito menos -, uma paulistana que diz ter aversão a tratar com dinheiro. É comum a grandes empresários esconder as origens modestas debaixo dos tapetes persas. A extrovertida Traudi – que foi casada com um repórter de primeira linha, Antônio Carlos Guida – foge à regra. Por exemplo: revela, sem qualquer prurido, os tempos que morou numa pensão com um banheiro para cinco quartos. Lembra, também, da época em que, no modesto bairro da Cidade Adhemar, cobria as janelas com papel por falta de dindim para as cortinas. Conta, ainda, a relação conflituosa com um pai fugidio, que, depois de idas e vindas, desapareceu.
Brasileiros – Você começou com uma loja pequena, a Snupy, e hoje tem a Le Lis Blanc. Como foi essa ascensão?
Traudi Guida – Comecei na Rua Tabapuã, no Itaim Bibi, em São Paulo. Meus vizinhos eram um barbeiro e um funileiro. Isso foi em 1969. Meu namorado na época, o Antônio Carlos, foi o meu incentivador. Quando comecei a namorá-lo, eu trabalhava numa loja na Alameda Lorena, a Angelita.
Brasileiros – Uma com nome esquisito?
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T.G. -Isso. Era “Ah, se eu Pudesse Arfar nos Braços Argentinos de Angelita”. Foi lá que aprendi tudo. Comecei como vendedora, em 1967. Fazia a faculdade de Direito na PUC, de manhã. Quando descobri que gostava mais da lojinha do que da faculdade, larguei. Montei a Snupy, com o fundo de garantia da minha mãe. Eu tinha uma sócia que ficou grávida e saiu. Resolvi tocar sozinha. Foi duro.
Brasileiros – E por que o nome Snupy?
T.G. – O cachorrinho estava na moda. Mas não podia registrar Snoopy, então registrei Snupy. Ideia de jerico. Mas começamos a ir superbem. O movimento de moda em São Paulo estava no início: o Renato Kherlakian ainda nem tinha a Zoomp, a Glória Coelho, da G, estava começando. Uma confecçãozinha aqui, outra ali, todo o mundo meio “sacoleiro”. Vendiam para minha loja. A Snupy ia tão bem que mudamos para um ponto maior e melhor, na Rua Mário Ferraz. Aí, abri a Estoque, uma ponta de estoque. Foi um sucesso. Não havia ponta de estoque de marca boa.
Brasileiros – Você inventou?
T.G. – Eu e a Rahyja Afraenge, minha sócia. Ela me procurou porque sabia que eu queria montar algo diferente para aproveitar o ponto da Tabapuã, que ficou vazio. A Rahyja já vendia saldo de confecções na faculdade. Conversamos. “Vamos abrir uma loja? Vamos.” Abrimos e a Estoque explodiu. Tinha até pipoqueiro na porta… Aí tive a ideia de abrir a Work-out. Outro sucesso. O ponto era da Neza César, que resolveu ser minha sócia, nem sabia o que era. Como ela tinha uma fábrica de roupas, deu tudo certo.
Brasileiros – Como você explica essa sensibilidade de antever o que vai entrar na moda?
T.G. – Eu ficava no balcão na Snupy e tinha sensibilidade para sacar o comportamento das pessoas. Moda é muito dirigida por comportamento. Certa vez, apareceu uma menina, abriu uma mala e disse: “Tenho umas roupas de moletom…”. Eu não trabalhava com esse tipo de artigo, mas perguntei: “Posso comprar calça de uma cor e blusão de outra?”. Então apareceu gente que não frequentava a loja. Foi aí que os negócios foram mesmo para a frente. Trabalhei demais, mas abrimos lojas em Salvador, Rio de Janeiro. Comecei a não concordar, achei que não tínhamos estrutura para tanto.
Brasileiros – A Work-out chegou a ter quantas lojas?
T.G. – No Rio de Janeiro, em Salvador, em Goiânia e duas em São Paulo. Tudo isso em muito pouco tempo.
Brasileiros – Você teve financiamento de alguém?
T.G. – Nada. Nunca na vida recorri a empréstimo de banco. Sempre foi com dinheiro próprio. Cabeça de chinês, né? Você ganha, mas não enfia no bolso. É por isso que chinês chega onde chega. Todo mundo achava que a gente estava nadando no dinheiro, mas não estávamos. A firma estava sólida, a gente tinha um pró-labore, mas, durante muitos anos, não podíamos sair desse pró-labore. Não era assim: “Ah, esse mês tem tanto a mais, vamos gastar”. Eu tinha a Estoque com a Rahyja, com loja na Tabapuã, na Oscar Freire e na Praça Vilaboim, e mantinha ainda a Snupy. Aí, a Estoque começou a ficar enorme. O Antônio Carlos e Rahyja trabalhando que nem loucos.
Brasileiros – O Antônio Carlos trabalhou com a gente no Jornal da República, depois na IstoÉ e, paralelamente, ia tocando as lojas com você. Aí chegou um momento em que ele saiu, não foi?
T.G. – Saiu porque não dava mais. Ele cuidava da parte financeira da Work-out, da Estoque e ainda olhava a Snoopy.
Brasileiros – E vocês brigavam muito?
T.G. – Pelos negócios, nunca. Brigávamos por outras coisas, porque ele era um pentelho, machista italiano, um horror… Um dia, esperei ele chegar em casa e falei: “Nunca mais ponho o pé na Work-out”. Ele quase caiu da cadeira: “Mas Traudi, cai dinheiro na nossa cabeça”. Eu respondi: “Não vou mais. Não quero mais aquilo”. Nunca briguei com Neza, mas peguei horror. E não fui mais lá. Passou um ano e pouco e a Work-out quebrou.
Brasileiros – Você vendeu sua parte para a Neza?
T.G. – Tive um rabo, meu filho. O Renato Kherlakian, da Zoomp, disse para o Antônio Carlos: “Vocês estão fritos, não vão conseguir vender a parte da Traudi”. E não é que nisso sai uma matéria de capa sobre a Work-out na Vejinha? Aí foi fácil vender. Foi o maior rabo que eu já vi na minha vida, foi Deus.
Brasileiros – A Neza não podia, antes disso, comprar a sua parte?
T.G. – Ela não tinha grana. Nesse meio tempo, o pessoal do Shopping Iguatemi procurou o Antônio Carlos. Estavam fazendo uma expansão, queriam lojas boas, como a Snupy. O ponto no Iguatemi é muito caro, mas, como era expansão, era possível pagar em parcelas. O Antônio Carlos achou que abrir outra loja sem a Rahyja não iria dar certo. Não queríamos continuar com a Snupy porque ela não era sócia e o shopping não aceitava a Estoque, porque era uma loja de saldos. Além disso, ficou difícil conseguir saldo das grandes confecções, porque elas próprias começaram a abrir suas próprias lojas de saldos. Então, a proposta do Antônio Carlos foi abrir uma outra loja, com um novo nome. E nasceu a Le Lis.
Era uma lojinha. Pensei: “Vamos abrir uma loja com um nível bom, mas com um preço barato”. Comprei tecido, fabriquei para a loja, sem atravessador. Comecei a fazer isso num espaço de 46 m2. A loja pegou… Tínhamos de fechar a porta no sábado porque a loja era muito pequena, não cabia todo mundo, a gente perdia o controle.
Brasileiros – Quantas lojas Le Lis existem hoje?
T.G. – Quarenta. E vendemos por atacado para 150 multimarcas.
Brasileiros – Quantos funcionários são hoje?
T.G. – Acho que 1.600.
Brasileiros – E quando você abriu o capital?
T.G. – Em julho de 2007, acho. Nessa parte de números eu sou um traste.
Brasileiros – E como você deu esse pulo? Na Le Lis, foram você e a Rahyja.
T.G. – E o Antônio Carlos, que faleceu. Resolvemos transformar tudo em Le Lis. Isso foi há dezesseis anos.
Brasileiros – E quem passou a cuidar do dinheiro?
T.G. – Quando o Antônio Carlos faleceu, a Rahyja passou a cuidar e foi uma coisa horrível, ela ficou desesperada e eu também. Depois de um ano e pouco, a Rahyja falou: “Traudi, vamos chamar meu irmão Alexandre, que é jovem, fez economia e administração na Fundação Getúlio Vargas (FGV), porque eu não estou aguentando mais”. O Alexandre era jovem, cabeça boa. E aí apareceu muita gente querendo abrir Le Lis no Brasil, como franquia. Surgiu a ideia de abrir uma loja grande no Iguatemi. Pensei num conceito de dar conforto para consumidor, a loja tinha quase 300 m2. Todo mundo dizendo que éramos duas débeis mentais… E foi um sucesso. Era um conceito completamente novo para São Paulo. Tinha sofá, carpete, servíamos vinho e jornal para os homens.
Brasileiros – Você deixava os homens tranquilos para a mulherada gastar dinheiro.
T.G. – É, eles amavam.
Brasileiros – E o nome Le Lis Blanc, como surgiu?
T.G. – Acho o francês lindo. E tinha de ser uma flor, não me pergunte por quê. Le Lis Blanc é o nome da flor da dinastia francesa. Achei bonito. Aí começou a aparecer gente do Brasil inteiro querendo abrir loja. A Rahyja pegava o avião e ia conhecer a praça. Eu ficava. Tinha de fazer as roupas. A Rahyja e algumas funcionárias fizeram umas duzentas viagens. Não participei de nenhuma, graças a Deus. A gente abriu o atacado licenciado, também.
Brasileiros – Como é a configuração hoje?
T.G. – Hoje, é uma empresa de capital aberto. Eu e o Alexandre temos uma parcela. Antes de morrer, a Rahyja deixou tudo organizado, passou a parte para os filhos, que são herdeiros. E temos investidores. O controle acionário é da Artesia e dos investidores. A Artesia não é um fundo. É um grupo com três pessoas. (A Artesia Gestão de Recursos comprou 51% da operação em 2007).
Brasileiros – Quanto de roupa você faz hoje?
T.G. – São onze pessoas trabalhando com estilo, tudo separado por células – a célula do algodão, a do jeans, a da alfaiataria, a da seda, a da malharia… Alguém tem de coordenar isso tudo e esse alguém hoje sou eu.
Brasileiros – Você viaja muito?
T.G. – Viajava mais para os Estados Unidos, Paris, essas coisas. E pesquisava. Hoje não, a gente viaja várias vezes por ano… Vou à China, à Índia. Mas o porcentual de importado é pequeno. O Brasil nessa área, com essas leis protecionistas. Você não pode contar muito com o importado. Mas também abrimos a seção Casa, de decoração, em que tudo é comprado fora do Brasil.
Brasileiros – Como é que foi sua infância? Qual a sua descendência?
T.G. – De alemães. Minha infância foi difícil pra caramba. Mamãe nasceu no Brasil, era filha de alemães e com vinte anos foi para Alemanha. Ela se chamava Erna, mamãe faleceu…
Brasileiros – E seu pai, como se chamava?
T.G. – Otto. Meus avós tiveram uma vida muito difícil, mas a mamãe era raspa do tacho e foi a única que teve possibilidade de estudar. Ela estudou no Olinda Schüller, atual Colégio Porto Seguro. Participou de uma viagem do colégio para Alemanha. Quando a minha mãe estava na Alemanha, estourou a guerra. Ela ficou com medo de voltar. Não tinha garantia de chegar no Brasil. Minha mãe ficou lá sete anos, quando conheceu meu pai. Durante três anos, minha avó achou que minha mãe tivesse morrido. Não havia correspondência. Parou tudo. Pela rádio alemã, não sei como, minha mãe conseguiu mandar um recado para a minha avó, dizendo que estava viva. Meus pais pegaram um navio na França e vieram pra cá. Minha mãe chegou grávida, minha avó quase caiu da cadeira e fez meu pai se casar com minha mãe.
Brasileiros – Você é filha única?
T.G. – Eu tenho um meio irmão. Meu pai foi para Argentina tentar a vida e minha mãe ficou aqui. De Buenos Aires, ele começou a escrever: “Vem pra cá”. Minha mãe foi e ficamos um ano em Buenos Aires. Aí, voltamos pro Brasil. Meu pai retornou para a Argentina, e minha mãe descobriu que ele estava meio enganchado com uma amiga, entendeu? Eu tinha quatro anos. Meu pai esqueceu essa filha. Para sobreviver, no começo, minha mãe trabalhou como enfermeira particular. Ela tinha aprendido o ofício durante a guerra. Só famílias muito ricas de São Paulo tinham enfermeiras particulares e elas tinham de ser alemãs. Eram famílias turcas, moravam na Avenida Brasil, naqueles casarões. Ganhava-se bem cuidando de bebês para essas famílias. Mas minha mãe tinha de dormir no emprego e foi minha avó que me criou. Ela tinha 74 anos e foi minha mãe mesmo.
Brasileiros – Uma família de mulheres fortes…
T.G. – Ela morreu com noventa… Você pensa que minha avó pegava táxi? Ela nasceu na Alemanha, na guerra de 1914, eles imigraram para cá. Minha família tinha aquela mentalidade de época de guerra, não se jogava casca de beterraba no lixo e nem casca de abacaxi, fervia-se e se fazia suco. Minha infância foi assim. A gente não tinha dinheiro.
Brasileiros – Onde vocês moravam?
T.G. – Eu morei numa pensão na Rua Haddock Lobo por dois anos com minha mãe. Foi difícil para caramba, porque eu era adolescente, estudava em colégio bom, no Liceu Eduardo Prado. Eu tinha amigas ricas e morava em pensão. Eram cinco quartos por banheiro. Foi difícil.
Brasileiros – Depois de cuidar de criança na Avenida Brasil, a sua mãe foi trabalhar com o quê?
T.G. – No escritório do marido de uma amiga dela, que era um lunático. Era químico e começou a fazer um negócio que ele dizia ser mágico e vendia para espantar mosquito. Chama-se senhor Endlein, não me lembro o sobrenome. E ele ainda repartia o escritório com um corretor de seguros.
Brasileiros – Você ainda fala alemão?
T.G. – Eu tenho um vocabulário infantil, porque parei de falar alemão com seis anos. Ah, antes de trabalhar com o senhor Endlein, minha mãe trabalhou numa fábrica na Penha, como secretária. Ela falava alemão fluentemente. Foi quando minha avó resolveu construir uma casa em Suzano, onde tinha um terreninho. Morei lá. Você acredita que até hoje eu tenho saudades da minha avó? Ela foi o máximo. Sabe que tudo deu certo na minha vida por causa do amor da minha avó? Ela era enlouquecida por mim. Tinha tido oito filhos, meu avô largou dela por causa de outra mulher quando ele estava superbem de vida. Bom, né? Quando estávamos morando em Suzano, uma das filhas da minha avó ficou viúva e convidou. “Voltem para São Paulo.” Viemos. Minha tia não deixava eu me sentir à vontade na casa dela, onde só se falava alemão. Meus amigos não entendiam nada. Eu tinha ódio, renegava a língua. Minha mãe viu que eu sofria tanto que me pôs um ano num bom colégio interno, em Rio Claro.
Brasileiros – Por mais problemas financeiros que tinha, sua mãe fazia sacrifício para você estudar em escolas legais.
T.G. – Sempre. Nós morando em pensão, eu estudando em uma boa escola. Também estive no Mackenzie. Naquela época, eu era feia pra cacete, desbotada. Aos dezesseis anos, dei uma desabrochada, não sei o que aconteceu. Comecei a fazer sucesso e me convidaram pra ser uma das garotas que desfilavam na Loja Clipper. Saiu no jornal e tudo. Eu fazia sucesso, mas na escola minhas notas eram péssimas. Repeti no Mackenzie. Comecei a andar com um pessoal, assim, pesado, não de drogas essas coisas, porque droga nunca passou na minha vida. A minha mãe falou: “O quê? Repetiu de ano? Vai estudar em Caraguatatuba”. Um tio tinha um hotel superlegal em Maranduba, chamado Picaré. Eu morei lá um ano. Andava de ônibus 24 km pra ir e voltar da escola. Lá, estudei em colégio estadual. Na época, eles eram muito bons. Tudo que eu sei de francês aprendi lá.
Brasileiros – Você era muito namo-radeira?
T.G. – Não. Eu era muito menina. Comecei a entender que era mulher com dezesseis anos.
Brasileiros – O Antônio Carlos você conheceu com que idade?
T.G. – Ah, eu era mais velha que ele quatro anos. Acho que eu tinha vinte e quatro… A gente se conheceu na Faculdade de Direito, na FMU. Ele fez, mas eu larguei.
Brasileiros – E seu pai?
T.G. – A família do meu pai, na Alemanha, tinha muito dinheiro. Uma das minhas tias tinha uma escola em que só estudavam nobres. E meu avô, pai do meu pai, queria que minha mãe me mandasse para a Alemanha para ser educada nesse colégio. Minha mãe falou: “Aqui, que eu vou mandar! Eu nunca mais vou ver minha filha.” Eu podia ter sido educada por nobres, tá? Aí, meu avô morreu e eu nunca mais tive notícias da família. Meu pai nunca perguntou se precisava de dentista, médico… Minha mãe nunca mais viu meu pai. Quando eu tinha nove anos, ele escreveu, dizendo que estava vindo da Europa e iria descer em Santos. Perguntava se alguém poderia me levar até lá para que ele me visse. Minha mãe me levou, ele olhou para mim – eu era ruiva, ruiva, ruiva – pegou a minha mão e disse: “Eu quero uma foto”. Tirou uma foto de nós dois juntos, num daqueles fotógrafos da época. Subiu no navio e foi embora. Quando eu tinha uns dezoito anos, comecei a ficar com raiva dele. Ele estava superbem de grana, tinha fazenda… Ele falava sete línguas.
Brasileiros – Como ele aprendeu sete línguas?
T.G. – Ele foi educado com governanta, aprendendo muitas línguas, além do alemão, francês e italiano. Ele não serviu na guerra, ele fugiu, foi pra Grécia, foi ser pintor de parede. Tenho umas fotos dele pintando parede. Aprendeu grego. Depois foi para a Argentina, trabalhava como corretor de imóveis. A Argentina era um país maravilhoso, então meu pai começou a trabalhar só em casas de alto padrão. Montou um escritório, ganhou dinheiro, tinha galpões industriais…
Brasileiros – Ficou rico.
T.G. – Eu não digo rico, mas ficou superbem. Eu tinha raiva da minha mãe trabalhar do jeito que ela trabalhava. Eu falei: “Quer saber, eu vou escrever uma carta pro meu pai”. Demorei uns três dias para escrever a carta, “sou sangue do seu sangue”, foi horrível. Tirei uma foto e mandei. Você acredita que o nego respondeu? Ele escreveu assim: “Você tem razão, eu estou te mandando uma passagem e você vem pra cá”. Fui pra Argentina para ficar uns quinze dias. Fiquei seis meses, me adaptei superbem. Mas foi horrível eu ter encontrado meu pai.
Brasileiros – Ele já estava casado com outra mulher?
T. G. – Casado, e a anta da mulher vai ao aeroporto me buscar com a família. Você acha?
Brasileiros – Com o filho e tudo?
T.G. – O filho era um toquinho, a mulher tinha duas filhas, que meu pai criava – todos esperando aquele ser estranho do Brasil.
Brasileiros – E você foi sozinha?
T.G. – Sozinha. Eu tinha uns dezenove. Meu pai só falando em alemão comigo, ai meu Deus. A mulher dele era húngara. Eu pensava: “Nossa, o que eu estou fazendo aqui? Quero ir embora”. Meu pai chegou para mim e disse: “Só que você não vai ficar em casa hospedada. Vai ficar na casa da sua tia” – que eu também não conhecia. Mais um choque. Chego na casa da minha tia e a família inteira na sala, me esperando. Eu tinha uma prima com a cabeça superaberta. Ela viu a minha angústia e me convidou para subir para o quarto. Subi e comecei a chorar. “Meu pai me joga na casa dos outros, quero ir embora.” Minha tia tinha quatro filhos adolescentes e eu me adaptei naquela casa. Não queria nem ver meu pai. Nessa fase, eu era bem bonitinha e fui convidada para fazer uma campanha publicitária. Ganhei uma grana e saí em todos outdoors em Buenos Aires. Foi um lançamento de um sabonete chamado U-Lite. Naquela época, minha mãe escrevia cartas desesperadas porque eu não voltava. Minha avó morria de saudades.
Brasileiros – Quanto tempo você ficou na Argentina?
T.G. – Seis meses, me dei pessimamente com meu pai. Voltei ao Brasil e, um ano depois, meu pai convidou: “Vamos para Portillo esquiar”. Eu decidi tentar de novo me encontrar com meu pai. Fui pra Portillo, no Chile, com ele e a filha mais nova da mulher dele. Eu adorava a garota.
Brasileiros – Você já esquiava?
T.G. – Nunca. Imagina se eu tinha dinheiro pra esquiar. Meu pai esquiava pra caramba. Ele ia toda hora pra Áustria. Chegamos lá e, um dia, ele sentou no quarto e chorou, chorou, chorou e falou: “Eu nunca fiz nada por você, você vai procurar um apartamento para comprar e não sei o quê…”. Aí, quando eu cheguei no Brasil contei para minha mãe. Ela havia comprado uma casa pela Caixa Econômica, na Cidade Adhemar. Tinha uns tiros à noite, a barra lá era pesada. Mas depois de morar em pensão, ter uma casinha… Durante um ano, tínhamos de por papel nos vidros porque não havia dinheiro pra por cortina. Minha avó ficou morando com a outra filha, em Maranduba. Já estava muito velhinha. Eu fui procurar apartamento, já que meu pai disse que ia me dar um. Achei um, que ele achou caro. Fui outra vez para Buenos Aires, a relação já foi um pouco melhor. Mas não adianta. Você não tem amor de filho para pai se você não convive com ele.
Brasileiros – Seu pai morreu quando?
T. G. – Um dia, olha só, quando eu cheguei em minha casa, depois da loja, encontrei minha mãe lendo uma carta: meu pai tinha saído para velejar e nunca mais voltou. Nunca acharam o corpo, nem o barco, nada.
Brasileiros – Quem escreveu a carta?
T. G. – Era uma carta anônima. O cara dizendo que eu era herdeira de não sei quanto, que ele sabia que meu pai tinha uma filha legítima no Brasil e que procurasse não sei o quê. E assinava assim: “Senhor”. E dizia: “Por favor, responda para a caixa postal tal”. Minha mãe respondeu dizendo que não acreditava na morte do meu pai e que ela não ia se corresponder com um anônimo. A pessoa escreveu de novo, dizendo ela comparecesse no escritório do advogado X. Minha mãe ligou para minha tia e foi pra Buenos Aires. A essa altura, ela era diretora-adjunta do senhor Endlein, que, veja só, havia se tornado dono de uma fábrica gigantesca em Diadema, de tubos e conexões de aço. Ficou milionário. Bem, minha mãe e minha tia foram ao escritório do tal do advogado: “Aqui está uma procuração para senhora assinar e me dar todos os poderes. Sua filha tem uma herança considerável, mas tem de ser em branco”. Mas olha que história louca. Antes de morrer, de sumir, meu pai tinha tirado tudo do nome dele. Quer dizer, não ficou nada para a gente. Sempre me perguntam se eu nuca pensei se meu pai continuou vivo. Não. Ele tinha um filho que amava muito e, na época, estava convalescendo de queimaduras horríveis.
Brasileiros – E de onde que veio essa sua mão de fazer roupa legal? De sua mãe?
T. G. – Não, nem da minha avó. Mas eu fiz sempre… Quando eu era dura, frequentava a casa de umas amigas que moravam superbem. Eu observava as roupas e ia comprar o pano nas Pernambucanas, copiava, achava costureira no Jardim Miriam. Eu adorava roupa. Por isso, me pararam na rua, perguntando se eu queria ir trabalhar na Angelita. Eu me vestia bem, mas não tinha grana.
Brasileiros – E quantos filhos você tem?
T. G. – Dois. O Bruno e o Bento. O Bruno é ator, diretor de teatro, e o Bento tem um fundo de investimento, mexe com dinheiro. Um é água e o outro é vinho, entendeu? Mas são maravilhosos, incríveis.
Brasileiros – Você ainda faz vitrine?
T. G. – As do Iguatemi, eu faço. Essa parte visual da loja é o que eu mais gosto de fazer. Tem gente que foca ganhar dinheiro, eu nunca foquei o dinheiro, foi sem querer. Juro por Deus, tanto que, se largar dinheiro na minha mão, eu perco tudo. Hoje, quem cuida de tudo é o Bento, com 27 anos.
Brasileiros – Você tem fotos daquela alemãozada toda?
T. G. – Tenho uma foto com minha avó que é alucinante. Ela mandava eu pôr a mãozinha pra trás pra tirar fotografia, sabe? Coisa de alemão. Ela me pôs um colarzinho de pérolas.
Brasileiros – Você gosta de comida alemã?
T. G. – Eu gostava de umas coisas. Alemão não janta, só toma lanche à noite.
Brasileiros – O almoço é aquele festival
T. G. – Mas nunca teve essa coisa de vir quatrocentos pratos à mesa. É uma proteína e um carboidrato. Se tem batata, não tem arroz. Na minha casa sempre foi assim. E à noite, um lanche. Sobremesa era sagu, que era barato.
Brasileiros – E hoje você gosta de comer o quê?
T. G. – Eu me alimento superbem, não como gordura, não como frituras, como arroz integral. No domingo, é pipoca, é sorvete, é pizza. Fiz um check-up agora, está tudo ótimo.
Brasileiros – E quanto você está fumando?
T. G. – Muito.
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